Íntegra da matéria do Globo
Por: Marcia Cezimbra
Que a psicanálise ajuda a viver melhor, os bons terapeutas e seus pacientes já sabem há décadas. Mas agora neurocientistas europeus e americanos comprovam, em exames do cérebro em laboratórios de imagens de alta tecnologia, que a psicanálise — tida por muitos como um discurso ficcional — tem fundamento científico. Sigmund Freud estava certo em suas descrições do funcionamento da mente humana.
Os neurocientistas constataram que o que move o ser humano, como Freud dizia, são impulsos inconscientes, que sofrem repressão para não se tornarem conscientes. E confirmaram que as experiências da primeira infância influenciam o padrão de conexões cerebrais que moldam a nossa personalidade e a saúde mental para o resto da vida. Tecnologias de imagens mostram que a psicoterapia também atua no cérebro, alterando circuitos neuroquímicos.
Outra descoberta, feita por neurocientistas como Joseph Le Doux, identificou os sistemas de memória que controlam o aprendizado emocional. Le Doux demonstrou a existência de uma via neuronal que conecta as informações coletadas pela percepção às estruturas do cérebro responsáveis por reações de medo. A ação dos neurotransmissores, sobretudo a dopamina, mostram que a compulsão, como Freud dizia em suas experiências com a cocaína, está ligada à busca pelo prazer que ele chamava de libido e que tem um fundamento neuroquímico. Além disto, as pesquisas apontam em direção ambiciosa: provar que a produção inconsciente de imagens nos sonhos tem por base efeitos de neurotransmissores em certas fases do sono, controladas por uma rede de circuitos "instintivos-motivacionais" do cérebro. Noutras palavras: os sonhos seriam gerados por motivações inconscientes, num paralelo ao dito freudiano de que "os sonhos são a realização de desejos inconscientes".
O professor de neuropsicologia Mark Solms, em artigo da revista "Scientific American", afirma que os neurocientistas ficaram tão empolgados com as descobertas que criaram a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise. A idéia de reconciliar neurologia e psicanálise numa teoria unificada resultou na revista "Neuro-psychoanalysis", da qual fazem parte especialistas internacionalmente reconhecidos como Antonio R. Damasio, Joseph E. LeDoux, Benjamin Libet e Eric Kandel, prêmio Nobel de medicina de 2000.
— É interessante que a psicanálise, negada como ciência no século XX, seja cientificamente comprovada por neurologistas cognitivos — diz o psicanalista Joel Birman.
Estudo mostra cérebro que Freud imaginou
Ateoria freudiana da estruturação do psiquismo, de 1933, fugia da anatomia cerebral da época. Para Freud, o sistema psíquico era formado pelo inconsciente (id), fonte dos impulsos e da motivação dos seres humanos. Boa parte desses impulsos eram limitados pelo consciente (ego), para impedir que eles comprometessem o pensamento racional. Havia também o superego, uma estrutura que intermediava os conflitos entre o ego e o id, constituída em boa parte pelas leis da cultura. Quando essa repressão não funcionava bem, segundo Freud, ocorriam as fobias, o pânico, as obsessões, os ataques histéricos, a psicose. A psicanálise teria então a função de trazer o inconsciente à consciência, elaborando o que exatamente deu origem às ações inconscientes.
Hoje estes processos mentais inconscientes foram comprovados em laboratórios de neurocientistas. Os mapeamentos neurológicos recentes combinam com as concepções de Freud. O tronco encefálico reticulado e o sistema límbico, responsáveis por instintos e impulsos, correspondem ao id freudiano. Na região frontal ventral, que lida com a inibição consciente e seletiva desses impulsos inconscientes, estaria a repressão proveniente do ego. Na região frontal dorsal, que controla as funções conscientes, estaria o superego freudiano. O superego e o ego também estariam no córtex posterior, que percebe o mundo exterior.
Os exames mostram como a repressão de lembranças é deliberada e seletiva: danos da região parietal direita fazem com que a pessoa não perceba danos físicos, como a paralisia de um braço. Danos na região límbica frontal, que controla aspectos essenciais da consciência, por exemplo, faz com que a pessoa invente histórias fantásticas a seu respeito, sem contatar imagens inconscientes que tem de si mesma.
O resgate da teoria dos sonhos
As idéias de Freud de que os sonhos são um modo de vislumbrar desejos inconscientes foi desacreditada a partir dos anos 1950, quando pesquisas mostraram a relação entre o ato de sonhar e o movimento rápido dos olhos (o sono REM), este controlado por substâncias químicas, como a acetilcolina, e estruturas cerebrais que nada tinham a ver com emoção e motivação. Hoje, pesquisas mostram que os sonhos e o sono REM são controlados por mecanismos distintos, embora interajam. Segundo o professor Mark Solms, os sonhos são produzidos por circuitos instintivos-motivacionais do cérebro. "A conceituação "psicológica" dos sonhos voltou a ser cientificamente respeitável", escreveu ele na "Scientific American".
Exames confirmam memória corporal
Uma das confirmações importantes da neurociência refere-se ao funcionamento da memória: as estruturas cerebrais essenciais para a formação de memória consciente não funcionam durante os primeiros dois anos de vida. As vivências desse período não ficam registradas no cérebro, mas no corpo. A constatação mostra que Freud também estava certo ao dizer que "o eu é acima de tudo corporal", em "O ego e o id" (1923). E explica ainda o que Freud chamava de amnésia infantil. Hoje, os neurocientistas mostram que esse período não foi esquecido, mas não vem à consciência porque, quando foi vivido, não foi registrado pelo cérebro, que não estava pronto.
A memória está nos olhos, na boca, nas vísceras
O psicanalista Joel Birman considera esta comprovação importante para que alguns psicanalistas percebam que, sem uma abordagem afetiva, que dê acesso à memória corporal, não há tratamento:
— Uma parcela significativa da psicanálise esqueceu que o psíquico é corporal. Foi por isso que as chamadas terapias corporais, como a bioenergética e as reichianas, ampliaram-se tanto em todo mundo, nas últimas décadas.
Birman diz que esta memória, que não está concentrada no cérebro, será mantida a vida inteira nos olhos, na boca, no abdômen, nos dedos:
— São as zonas erogenizáveis pela relação da mãe com o bebê. Nessa fase, o cérebro não tem ainda a mielinização das fibras nervosas e a memória se mantém no corpo. É por isso que o psicanalista precisa desenvolver uma linguagem afetiva, que chamo de linguagem das intensidades, para que ele tenha acesso a essa corporeidade.
Wilson Chebabi diz que o analista também deve trabalhar com seu corpo:
— Não tocando o paciente, mas como presença física e acompanhamento emocional de vivências que não foram registradas como lembranças, mas como ambiência.
Freud no laboratório
AÇÕES INCONSCIENTES: Freud constatou que o ser humano é movido por impulsos inconscientes, mas uma força repressora impediria que estas motivações se tornem conscientes. Quando essa repressão não funciona bem, poderiam ocorrer ataques histéricos, obsessões, fobias, pânico e surtos psicóticos. A função da psicanálise seria rastrear a origem dos sintomas neuróticos e retrabalhar tais associações mentais de modo a aniquilar o seu poder. Agora, neurocientistas comprovaram a existência de processos mentais inconscientes por meio de exames do cérebro em laboratório.
MEMÓRIA VISCERAL: Os neurocientistas comprovaram que as estruturas cerebrais essenciais para a formação de memória consciente não são funcionais durante os primeiros dois anos de vida. Isso explica o que Freud chamava de amnésia infantil ou recalque primário. Esta memória ficou retida no corpo e, por ser anterior à formação completa do cérebro, não é articulada mentalmente.
RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: A neurociência comprovou em laboratórios que as experiências dos primeiros meses de vida entre mãe e bebê influenciam o padrão de conexões cerebrais de modo a moldar a nossa personalidade e a saúde mental futuras.
MEMÓRIA EMOCIONAL: Uma via neuronal sob o córtex consciente conecta a percepção presente com estruturas primitivas responsáveis pela geração de medo. Como essa via neuronal atravessa o hipocampo, acontecimentos presentes desencadeiam lembranças emocionalmente importantes, provocando sensações que parecem irracionais.
HOMEM-ANIMAL: Freud chocou ao pensar o homem como um animal de instintos primitivos, sexuais, infantis e às vezes agressivos. Hoje a neurociência classifica o ser humano como um animal que, como todos os mamíferos, tem quatro circuitos cerebrais instintivos: o de recompensa e busca (principio do prazer), regulado pelo neurotransmissor dopamina e envolvido com os quadros de compulsão e vício; o circuito de raiva e de agressões raivosas, não predatórias; de medo e ansiedade (agressão); e, por fim, o de pânico, circuito cerebral que comanda os impulsos maternais e as relações sociais.
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