"O Dharma em Westworld”


Antes de tudo uns esclarecimentos: a Fundação “Tricycle” é uma organização educacional sem fins lucrativos dedicada a tornar os ensinamentos e práticas budistas amplamente disponíveis. Uma das suas ferramentas é a revista “Tricycle: The Buddhist Review”, a primeira revista destinada a apresentar perspectivas budistas a um leitor ocidental. Tanto a revista quanto a fundação são DESVINCULADAS com qualquer professor particular, seita ou linhagem, Triciclo fornece um fórum público único e independente. Dito isto, segue a matéria produzida pela própria e traduzido, mal e porcamente por mim.


Neste mundo, os seres reencarnam uma vez e outra vez, muitas vezes repetindo os mesmos "laços" (“loops”, circuito ou sequências narrativas) habituais através de dezenas de vidas. Apenas alguns despertam para a verdade: que esses hábitos os mantém afastados da liberdade e que seus "eus" são realmente apenas os resultados de “causa e efeito”. Não há um eu separado, não existe nenhuma alma. “Consciência” é realmente apenas uma série de fenômenos vazios rolando, dependente de condições, como um “piano mecânico” altamente complexo.
Que mundo é esse? Uma mandala budista? Não, Westworld, a estrondosa série da HBO que concluiu sua temporada de 10 episódios esta semana. Debaixo de sua superfície distópica, de ficção científica, o show é uma das mais fascinantes reflexões sobre o dharma que eu vi na cultura popular americana.
A premissa de Westworld - baseada em um filme dos anos 70, mas significativamente alterada - é um parque de diversões para adultos cheio de robôs construídos tão perfeitamente que são quase indistinguíveis dos seres humanos. Sobre o arco da 1ª temporada - que eu tenho receio de estragar com SPOILERS completamente - um punhado de robôs designados por "hosts" (anfitriões) “despertam” para a natureza ilusória de sua existência e começam a se rebelar.
Mas esse despertar é apenas o primeiro em uma viagem complicada de auto-descoberta, ou talvez não-auto-descoberta, por parte dos protagonistas robos. A princípio, Westworld aborda um tema de ficção científica um pouco familiar: o que diferencia uma AI – inteligência artificial - avançado de um ser humano? Este é um tema antigo, que remonta ao “ANDROIDES SONHAM COM OVELHAS ELETRICAS?” - DE DICK, PHILIP K mais conhecido como Blade Runner, e Arthur C. Clarke 2001: A Odisséia no Espaço.
O Westworld, porém, aumenta as apostas. Os visitantes humanos do parque se comportam como animais, principalmente violando os anfitriões ou matando-os. ("Violação" pode ser muito violenta em alguns casos, mas uma vez que os anfitriões foram programados para não ter condição de resistir, mesmo que eles certamente não podem consentir). Somente, não é “estupro” ou “assassinato”, porque os anfitriões não são humanos. E eles são reconstruídos a cada “loop” de narrativa, e suas memórias são (na maioria das vezes) apagadas. Assim, nenhum dano pode ser lembrado, portanto nenhuma falta, certo?
Bem, talvez. Primeiro, fica claro que os visitantes humanos são depravados por sua conduta prejudicial. Os robôs não poderiam ser “prejudicados”, mas os seres humanos estão imersos em um mundo onde podem perseguir seus desejos mais profundos sem a sensação de conseqüências. Os robôs são programados para não matar ou ferir gravemente os humanos, e algumas pessoas descobrem possuir um lado seu muito mais obscuro do que esperavam encontrar. Tudo gera conseqüência. Na verdade, só no último episódio nós aprendemos que uma das histórias de um arco tinha de fato ocorrido 35 anos no passado e seu herói inocente evoluiu para o vilão mais sinistro do show.
Segundo, à medida que a série se desenrola, começamos a suspeitar que os hospedeiros estão conscientes de si mesmos e que o sofrimento que eles parecem experimentar também é percebido como real. O quebra-cabeça dominante da série é "o labirinto", que não é um verdadeiro labirinto, mas uma jornada psicológica que um dos idealistas do parque, conhecido como Arnold, criou como um caminho gradual para o “despertar” dos anfitriões. No centro do labirinto está a consciência do “eu”.
Só que não funciona assim. De fato, ambos os hosts "despertados" do show, Maeve (interpretada por Thandie Newton) e Dolores (interpretada por Evan Rachel Wood), descobrem que até sua “liberdade” é resultado da programação.
Maeve desperta, persuade dois engenheiros infelizes do Westworld para aumentar suas habilidades cognitivas e traça sua fuga - apenas para descobrir que o desejo de escapar foi, por si só, implantado em sua programação a décadas... Ela está cumprindo seu karma; Seu livre arbítrio é uma ilusão.
No clímax da série, Dolores descobre que a voz dentro de sua cabeça, que ela pensava ser a de Arnold - basicamente, para ela, a “voz de Deus” - era realmente “sua” voz. Deus é uma invenção do cérebro humano, um nome que damos a uma faculdade de nossas próprias "mentes bicamerais". E quando Dolores percebe isso, ela percebe que ela tem consciência de sua interioridade.
Mas ela “não tem” um “eu separado”. Arnold estava errado ao pensar que Dolores se descobriria como um eu separado e consciente no centro do labirinto. Em vez disso, ela descobre com Robert Ford, o malvado parceiro de Arnold (interpretado por Anthony Hopkins), que lhe diz em um ponto: Arnold nunca poderia encontrar a "centelha" que separa os humanos dos robôs porque, de fato, não existe uma.
A “interioridade” de Dolores não é menos real que a sua ou a minha. Os seres humanos são tão "robóticos" quanto os robôs: motivados por desejos codificados em nosso DNA, cumprindo nossa programação genética e ambiental.
Karma, causas e condições.
E, na visão de Ford, os “anfitriões” (e Arnold) falham irremediavelmente em encontrar a auto-independência; mas até o final da série, ele está do lado dos robôs.
Isso significa que nada importa?
De modo nenhum. Só porque não há um “EU” independente não significa que o sofrimento não tem importância. Pelo contrário, Ford vem a perceber que Arnold tinha certeza de que o sofrimento é constitutivo do que consideramos ser identidade. Como ele diz a Dolores no final da temporada:
"Foi a percepção-chave de Arnold, a coisa que levou os anfitriões ao seu despertar: o Sofrimento. A dor que o mundo não é como você quer que seja. Foi quando Arnold morreu, quando eu sofri, que comecei a entender...”

Uma raça inferior


Documentário da socióloga americana Jane Elliot sobre discriminação racial. Trata-se de um experimento onde pessoas de "olhos azuis" são taxadas como uma raça inferior e por conta disso passam a sentir na pela um pouco do que os negros americanos sofrem diariamente.

Richard Gere fala sobre seus muitos anos de prática budista



Considero como um sinal do nosso cinismo atual acharmos difícil de acreditar que celebridades também possam ser pessoas sérias. O destaque recente de “celebridades budistas” provocou alguns comentários sarcásticos na imprensa, e até mesmo entre os budistas, mas, pessoalmente, estou muito agradecido aos atores, diretores, músicos e outras figuras públicas que trouxeram uma maior visibilidade para a causa da liberdade tibetana e o valor da prática budista. São artistas e pessoas atenciosas, alguns budistas, outros não, entre eles Martin Scorsese, Leonard Cohen, Adam Yauch, Michael Stipe, Patti Smith, e, claro, Richard Gere. Conheci Gere em seu escritório em Nova York recentemente, e nós conversamos sobre seus muitos anos de prática budista, sua devoção ao seu mestre o Dalai Lama, e seu trabalho em nome do Dharma e da causa do povo tibetano.








Melvin McLeod: Como foi o seu primeiro encontro com o Budismo?


Richard Gere: Eu tenho dois flashes. Um deles, quando eu realmente encontrei os textos do Dharma, e dois, quando eu conheci um mestre. Mas antes disso, eu estava envolvido na busca filosófica já na escola. Então eu cheguei a ele através de filósofos ocidentais, basicamente Berkeley.


Melvin McLeod: “Se uma árvore cai na floresta e ninguém ouve, a árvore realmente caiu?”


Richard Gere: Sim. Idealismo subjetivo era a sua tese, a realidade é uma função da mente. Basicamente, ele pregava a escola da “mente apenas”. Bastante radical, especialmente para um padre. Fiquei muito entusiasmado com ele. Os existencialistas também me interessavam. Lembro-me de carregar uma cópia de O Ser e o Nada, sem saber exatamente por quê. Mais tarde, percebi que “nada” não era a palavra adequada. “Vacuidade” [Emptiness] era realmente o que eles estavam procurando – uma visão positiva, e não niilista.


Meu primeiro encontro com o Dharma budista aconteceu quando eu tinha vinte e poucos anos. Eu acho que, como a maioria dos jovens, eu não estava particularmente feliz. Eu não sei se eu era um suicida, mas eu estava muito infeliz, e eu tinha perguntas como: “Por que existe algo?” Percebendo que eu provavelmente estava atingindo os limites da minha própria sanidade, eu estava explorando livrarias noturnas lendo tudo o que podia, em muitas direções diferentes. Os livros de Evans-Wentz sobre o budismo tibetano tiveram um enorme impacto em mim. Eu simplesmente devorava esses livros.


Melvin McLeod: Muitos de nós encontramos inspiração nesses livros. O que você encontrou neles que chamou a sua atenção?


Richard Gere: Esses livros tinham tudo o que um bom romance tem, de modo que você poderia realmente mergulhar neles, mas, ao mesmo tempo, eles ofereciam a possibilidade de você viver aqui e ser livre ao mesmo tempo. Eu ainda não tinha considerado isso como uma possibilidade – eu só queria sair – assim a ideia de que você poderia estar aqui e estar fora ao mesmo tempo – vazio – foi revolucionária.


Assim, o caminho budista, particularmente a abordagem tibetana, foi, obviamente, me atraindo, mas o Zen Budismo foi a primeira tradição em que me envolvi. Meu primeiro professor foi Sasaki Roshi. Lembro-me de ir para Los Angeles para três dias de sesshin [programa de meditação Zen]. Preparei-me, alongando as pernas por meses e meses para que eu pudesse passar por isso.


Eu tive uma espécie de experiência mágica com Sasaki Roshi, uma experiência da realidade. Eu compreendi que isto é um trabalho, isto é um trabalho. Não se trata de voar pelos ares; não se trata de qualquer magia ou romance. É um trabalho sério em sua mente. Essa foi uma parte importante do caminho para mim.


Sasaki Roshi foi incrivelmente rigoroso e muito gentil ao mesmo tempo. Eu era um completo neófito e não sabia de nada. Eu era arrogante e inseguro e estava ferrado. Mas eu estava falando sério sobre querer aprender. Chegou a um ponto no final do sesshin em que eu preferia nem ir ao dokusan [entrevista com o mestre Zen]. Eu sentia que estava tão mal preparado para lidar com os koans que eles tinham que me arrastar. Finalmente, chegou a um ponto em que eu apenas ficava sentado lá, e eu me lembro dele sorrindo naquele momento. “Agora podemos começar a trabalhar”, ele disse. Não havia nada a dizer – nenhuma besteira, nada.


Melvin McLeod: Quando alguém tem uma conexão intuitiva tão forte, o budismo sugere que é por causa do karma, alguma conexão passada com os ensinamentos.


Richard Gere: Bem, eu perguntei aos mestres sobre o que tinha me levado a isso. Eles apenas sorriam para mim, como se eu pensasse que havia alguma decisão nesse sentido ou então fosse apenas o acaso. Bem, não é assim que o karma funciona. Obviamente há alguma ligação muito clara e definitiva com os tibetanos ou isso não teria acontecido. Minha vida não teria se expressado desta maneira.


Eu acho que eu sempre senti que a prática era a minha vida real. Eu me lembro quando eu estava apenas começando a praticar a meditação, aos 24 anos, tentando lidar com a minha vida. Eu estava escondido no meu pequeno apartamento horrível por meses, apenas fazendo tai chi e fazendo o meu melhor para realizar a meditação sentada. Eu tinha um sentimento muito claro de que eu sempre estive em meditação, que eu nunca saí da meditação. Isso era uma realidade muito mais substancial do que aquilo que normalmente se considera como realidade. Isso era muito claro para mim já naquela época, mas levou todo esse tempo da minha vida para trazê-lo para fora, para o mundo, com mais tempo de prática, observando minha mente, tentando gerar bodhicitta.




Melvin McLeod: Quando você encontrou o Dalai Lama pela primeira vez?


Richard Gere: Eu tinha sido um estudante do Zen por cinco ou seis anos antes de conhecer Sua Santidade na Índia. Nós começamos com um pouco de conversa fiada e então ele disse: “Ah, então você é um ator?” Ele pensou sobre isso um segundo, e disse: “Então, quando você faz uma cena em que o personagem se irrita, você realmente está irritado? Quando o personagem está triste, você realmente se entristece? Quando o personagem chora, você está realmente chorando? “Eu dei a ele algum tipo de resposta de ator, eu disse que seria mais eficaz se você realmente acreditasse na emoção que você estava retratando. Ele olhou profundamente em meus olhos e começou a rir. Histericamente. Ele estava rindo da ideia de que eu pudesse acreditar que emoções são reais, que eu iria me esforçar para acreditar em raiva, ódio, tristeza, dor e sofrimento.


Essa primeira reunião teve lugar em Dharmsala em uma sala onde eu o vejo com bastante frequência agora. Eu não posso dizer que o sentimento tenha mudado drasticamente. Eu ainda fico incrivelmente nervoso e projeto todos os tipos de coisas sobre ele, mas a essa altura ele já está acostumado. Ele passa por todas essas coisas muito rapidamente, porque seus votos são tão poderosos, tão abrangentes, que ele é muito eficaz e hábil em chegar ao ponto. Porque a única razão pela qual alguém iria querer vê-lo é a vontade de remover o sofrimento de sua consciência.


A minha vida mudou completamente desde a primeira vez que estive na presença de Sua Santidade. Não há dúvida sobre isso. Não foi como se eu sentisse, “Oh, eu vou doar todos os meus bens e ir para o monastério agora”, mas naturalmente senti que era isso que eu tinha que fazer, trabalhar com esses mestres, trabalhar dentro desta linhagem, aprender tudo o que eu pudesse, envolver-me nisso. Apesar dos diferentes graus de seriedade e compromisso, desde então, eu realmente nunca me afastei desse caminho.


Melvin McLeod: Sua Santidade trabalha pessoalmente com você, combatendo suas neuroses das muitas maneiras que os mestres budistas fazem, ou ele lhe ensinar mais através do seu exemplo?


Richard Gere: Não há dúvida de que Sua Santidade é o meu guru-raiz, e ele tem sido muito duro comigo às vezes. Eu tive que explicar às pessoas que podem ter uma visão um pouco romântica de Sua Santidade que, às vezes, ele me confronta abertamente, mas com muita habilidade. Eu não digo que tenham sido agradáveis para mim os momentos em que ele agiu dessa maneira, mas nunca houve apego ao ego da sua parte. Eu sou muito grato a ele por confiar em mim o suficiente para ser incisivo e servir de espelho. Lembre-se, as primeiras reuniões não eram assim. Eu acho que ele estava ciente de quão frágil eu era e estava sendo muito cuidadoso. Eu acho que agora ele sente que a minha seriedade a respeito dos ensinamentos aumentou e minha própria compreensão dos ensinamentos aumentou. Ele pode ser muito mais duro comigo.


Melvin McLeod: A escola Gelugpa do budismo tibetano coloca uma forte ênfase na análise. O que o atraiu para uma abordagem mais intelectual?


Richard Gere: Sim, é engraçado. Eu acho que provavelmente eu teria sido atraído instintivamente pela Dzogchen [A Grande Perfeição, ensinamento da escola Nyingma]. Eu acho que o instinto que me atraiu para o Zen é o mesmo que teria me levado para Dzogchen.


Melvin McLeod: Espaço.


Richard Gere: O não-conceitual. Basta ir direito ao espaço não-conceitual. Recentemente eu tive alguns mestres Dzogchen que tiveram a gentileza de me ajudar, e eu vejo como o Dzogchen incrementa grande parte das outras formas de meditação que eu pratico. Muitas vezes o Dzogchen tem realmente me proporcionado uma visão fresca e tem me feito perceber o tipo de caminho limitado que eu estava percorrendo através do condicionamento e da preguiça.


Mas no geral, acho que a escolha mais sábia para mim é trabalhar com os Gelugpas, embora o espaço seja o espaço onde quer que seja. Eu acho que a abordagem analítica – que busca os não-limites desse espaço – é importante. De certa forma, as pessoas alcançam a estabilidade ao se tornarem capazes de ordenar a mente racional. Quando o espaço não está lá para você, o trabalho intelectual ainda vai mantê-lo apoiado. Eu ainda me encontro em situações onde as minhas emoções estão fora de controle e a raiva surge, e nessa situação é muito difícil adentrar em um espaço ‘puro’ e límpido. Assim, a abordagem analítica para trabalhar com a mente é extremamente útil. É algo muito concreto em que se apoiar e bastante estabilizador.


Melvin McLeod: Qual foi a evolução das práticas para você, na medida em que você pode falar sobre isso, depois que entrou no caminho vajrayana?


Richard Gere: Fico um pouco hesitante em falar sobre isso, porque, um, eu não tenho a pretensão de saber muito, e dois, sendo uma celebridade estas coisas são citados fora de contexto e isto às vezes não é favorável. Posso dizer que quaisquer que tenham sido as formas de meditação que eu pratiquei, eles ainda envolvem as formas básicas de refúgio, de geração de bodhicitta [mente e coração despertos] e dedicação de mérito para os outros. Todos os níveis de ensinamentos que meus professores me permitem receber envolvem essas formas básicas.


No geral, o tantra tornou-se menos romântico para mim. Parece mais familiar. Essa é uma fase interessante no processo, quando essa versão particular da realidade torna-se mais normal. Eu não estou dizendo que é normal, no sentido de comum ou mundano, mas eu posso sentir que é tão normal quanto o que eu considerava antes como realidade. Eu posso confiar nisso.


Melvin McLeod: Que livros do Dharma foram importantes para você?


Richard Gere: As pessoas estão sempre me perguntando que livros budistas eu recomendaria. Eu sempre sugiro Mente Zen, Mente de Principiante a alguém que diz: “Como posso começar?” Eu sempre incluirei algo de Sua Santidade. Seu livro Bondade, Amor e Compaixão é extraordinariamente bom. Há coisas maravilhosas lá. The Tantric Distinction, de Jeffrey Hopkins é muito útil. Há tantos.


Melvin McLeod: Você vai para a Índia com frequência. Isso lhe dá a oportunidade de praticar em um ambiente com menos distrações?


Richard Gere: Na verdade, é provavelmente quando me distraio mais! Quando eu vou lá, eu sou apenas um estudante simples como todo mundo, mas eu também sou um cara que pode ajudar. Quando estou na Índia, há uma série de pessoas que necessitam de ajuda e é muito difícil dizer não. Portanto, não é o momento mais tranquilo da minha vida, mas apenas estar em um ambiente onde todo mundo está focando no Dharma e onde Sua Santidade é o centro do foco já é extraordinário.


Melvin McLeod: Quando você está em Dharmsala você tem a oportunidade de estudar com o Dalai Lama ou outros mestres?


Richard Gere: Eu tento me manter em contato com todos os meus mestres. Alguns deles são eremitas nas montanhas, mas eles vêm para baixo quando Sua Santidade dá ensinamentos. É um tempo para se atualizar em tudo isso, e recordar. Para mim, isso significa recordar. A vida aqui é uma distração incrível e é muito fácil se desviar do caminho. Ir para lá é uma oportunidade de lembrar, literalmente, qual é a missão, por que estamos aqui.


Melvin McLeod: Aqui você está envolvido no mundo da produção cinematográfica, que as pessoas consideram extremamente desgastante, de alto nível e extremamente competitivo.


Richard Gere: Isso é tudo verdade. Mas é como a vida de todo mundo, com a diferença de que ela aparece nos jornais. Só isso. São as mesmas emoções. O mesmo sofrimento. As mesmas questões. Não há diferença.


Melvin McLeod: Você não acha que tem uma vida um pouco cindida, indo e vindo entre esses mundos?


Richard Gere: Acho que cada vez mais o meu envolvimento em uma carreira, em uma vida de chefe de família normal, é um grande desafio para aprofundar os ensinamentos dentro de mim. Se eu não estivesse no mercado, não haveria nenhuma maneira pela qual eu seria capaz de realmente enfrentar os cantos e recantos mais escuros dentro de mim. Eu simplesmente não iria vê-los. Eu não sou tão tenaz; eu não sou tão inteligente. Preciso da vida me dizendo quem eu sou, me mostrando minha mente constantemente. Eu não iria vê-la em uma caverna. O problema comigo é que se eu pudesse, eu provavelmente encontraria algum estado de felicidade, e permaneceria lá. Isso seria a morte. Eu não quero isso. Como eu disse, eu não sou um praticante extraordinário. Eu sei muito bem quem eu sou. É bom para mim estar no mundo.


Melvin McLeod: Existem maneiras específicas pelas quais você tenta trazer o dharma para o seu trabalho, além de trabalhar com sua mente e tentar ser um ser humano decente?


Richard Gere: Bem, isso já é muito! Isso é coisa séria.


Melvin McLeod: É verdade. Mas esses são os desafios que todos enfrentamos. Eu só estava me perguntando se você tenta trazer uma perspectiva budista ao mundo específico do cinema?


Richard Gere: No cinema, nós estamos jogando com algo que, literalmente, fragmenta a realidade, e eu acho que estar ciente da fragmentação do tempo e do espaço auxilia a prática, ajuda soltar a mente. Não há nada de verdadeiro no cinema. Nada. Não podemos nem mesmo comprovar a existência das partículas de luz que projetam o filme. Nada está lá. Nós sabemos isso quando estamos atuando; nós somos os mágicos que fazem o truque. Mas, mesmo assim mantemos a crença de que tudo é real, que essas emoções são reais, que este objeto realmente existe, que a câmera está capturando alguma realidade.


Por outro lado, há algum sentido mágico que a câmera vê melhor do que nossos olhos. Ela vê o interior das pessoas de uma forma que normalmente não conseguimos. Portanto, há uma vulnerabilidade em estar na frente da câmera que não se tem de suportar na vida normal. Há uma certa quantidade de pressão e estresse nisso. Você está sendo visto, você realmente está sendo visto, e não há lugar para se esconder.


Melvin McLeod: Mas não há nenhuma maneira de realmente lidar com a situação para…?


Richard Gere: Você quer dizer, aprender através disso? Não, acho que essas coisas são muito misteriosas para que se pudesse fazer isso conscientemente. Sem dúvida, estando eu mal preparado para ser um bom aluno, eu tive um monte de ensinamentos, e alguns permaneceram. De alguma forma eles se comunicam, não por causa de mim, mas, apesar de mim. Então eu acho que há um valor aí. É o mesmo com todo mundo: todas as energias positivas que nos tocaram em vidas inumeráveis exercerão sua influência de alguma forma. Quando você olha em seus olhos, quando a câmera da um close, há algo lá que é misterioso. Não há nenhuma maneira pela qual você poderia escrevê-lo, não há nenhuma maneira pela qual você poderia planejar, mas uma câmera vai buscá-lo de uma maneira diferente do que alguém poderia fazer sentado do outro lado da mesa.


Melvin McLeod: Como você se sente em seu papel como o porta-voz do Dharma?


Richard Gere: Para o Dharma? Eu nunca, nunca aceitei isso, e eu nunca vou aceitar. Eu não sou um porta-voz do Dharma. Eu não tenho as qualidades necessárias.


Melvin McLeod: Mas você está sempre sendo questionado em público sobre ser um budista.


Richard Gere: Eu posso falar sobre isso apenas como um praticante, do ponto de vista limitado que eu tenho. Embora tenham se passado muitos anos desde que eu comecei, eu não posso dizer que eu sei mais agora do que antes. Eu não posso dizer que tenho controle sobre minhas emoções. Eu não conheço minha mente. Estou perdido como todos os outros. Então, eu certamente não sou um líder. No curso real das coisas, eu falo sobre essas coisas, mas apenas no sentido de que isso é o que os meus mestres me deram. Nada de mim.


Melvin McLeod: Quando você é perguntado sobre o budismo, existem certos temas que você retoma e que sente que são úteis, tais como a compaixão?


Richard Gere: Absolutamente. Eu provavelmente diria sabedoria e compaixão, de alguma forma, que são os dois pólos que estamos aqui para explorar – expandindo nossas mentes e nossos corações. Em algum momento, espero ser capaz de abranger todo o universo dentro da mente, e a mesma coisa com o coração, com compaixão. Espero que os dois ao mesmo tempo. Inseparáveis.


Melvin McLeod: Quando você diz isso, eu me lembro de algo que me surpreendeu quando eu vi o Dalai Lama falar. Ele estava ensinando sobre a compaixão, como tantas vezes acontece, mas eu não pude deixar de pensar no que aconteceria se ele falasse para um público mais amplo sobre o entendimento budista da sabedoria, isto é, sobre o vazio (vacuidade). Eu só queria saber o que aconteceria se este líder espiritual reverenciado dissesse ao mundo, bem, vocês sabem, tudo isso realmente não existe de uma maneira substanticial.


Richard Gere: Bem, o Buda girou a roda do Dharma muitas vezes, e considero o papel de Sua Santidade da mesma forma. Se estamos tão perdido em nossa natureza animal, a melhor maneira de começar a sair dessa situação é aprender a ser gentil. Alguém perguntou a Sua Santidade, como você pode ensinar uma criança a se preocupar as coisas vivas e tratá-las com respeito? Ele disse, tente levá-las a amar e respeitar um inseto, algo que nós instintivamente repelimos. Se elas puderem enxergar a sua senciência básica, o seu potencial, a plenitude do que ele é, com bondade básica, então isso é um grande passo.


Melvin McLeod: Eu estava lendo o que o Dalai Lama disse sobre o amor de mãe, que para ele é o melhor símbolo para o amor e compaixão, porque é totalmente desinteressado.


Richard Gere: Nectar. O néctar é isso! [Na prática Vajrayana, as bênçãos espirituais são visualizadas como néctar descendo sobre o praticante.] Isso é o leite materno; que está vindo direito da mãe. Absolutamente.


Melvin McLeod: Embora você seja cauteloso ao falar sobre o Dharma, você é um porta-voz apaixonado pela questão da libertação do Tibete.


Richard Gere: Com relação a isso, eu já passei por diferentes fases. A raiva que eu poderia ter sentido 20 anos atrás é bem diferente agora. Estamos todos no mesmo barco aqui, todos nós, Hitler, os chineses, você, eu, o que fizemos na América Central. Ninguém está imune à ignorância que causa todos esses problemas. Os chineses estão produzindo a causa de um futuro e uma vida futura ruim para si mesmos, e não se pode deixar de ser compassivo com eles por isso.


Quando falo com os tibetanos que estiveram em confinamento solitário por 20 ou 25 anos, eles me contam, do fundo do coração, que o problema é maior do que o que eles sofreram nas mãos dos seus torturadores, e que sentem pena e compaixão por estas pessoas que estavam agindo de maneira desnaturada. Depois de estar na presença desse tipo de sabedoria de coração e mente você não pode mais recuar.




Melvin McLeod: É notável que um povo inteiro, de maneira geral, esteja imbuído de um espírito parecido.


Richard Gere: Estou convencido de que houve aí uma política de Estado. Obviamente, surgem problemas quando não há separação entre Igreja e Estado. Mas estou convencido de que o propósito dos grandes reis do Dharma é criar uma sociedade baseada nessas ideias. As instituições foram projetadas para criar pessoas boas; tudo na sociedade estava lá para apoiá-las. Isso se tornou decadente, houve bons e maus períodos. Mas a essência da sociedade era a criação de pessoas boas, bodhisattvas, era criar um ambiente muito forte onde as pessoas pudessem alcançar a iluminação. Imagine isso na América! Quero dizer, nós não temos nenhuma estrutura para a iluminação. Nós temos uma forte herança cristã e judaica, de compaixão e de altruísmo. Boas pessoas. Mas temos muito pouco que estimula a iluminação – liberação total.


Melvin McLeod: Considerando como as violações dos direitos humanos têm atraído a atenção da consciência mundial, como no Tibete e na África do Sul, antes disso, o trabalho de celebridades como você capazes de usar sua fama habilmente tem sido um fator importante.


Richard Gere: Espero que seja verdade. É uma gentileza sua dizer isso. É uma situação estranha. Anteriormente eu havia trabalhado na América Central e em algumas outras questões políticas e de direitos humanos, e é preciso conhecer um pouco as regras do jogo para trabalhar com o Congresso e o Departamento de Estado. Mas isso realmente não se aplica a esta situação. O Tibete está muito longe, e o envolvimento americano lá tem sido extremamente limitado.


Achei também que a questão da Sua Santidade, em termos de um movimento político, era muito complicada. É um movimento de não-violência, o que é um problema em si mesmo porque você não obtém manchetes com a não-violência. E Sua Santidade não se vê como Gandhi; ele não cria situações dramáticas ou espetaculares.


Então, nós acabamos tendo uma espécie muito mais constante de abordagem. Não é uma ação dramática. Trata-se de, pouco a pouco, ir construindo a verdade, e eu acho que esse processo provavelmente tem sido mais profundo por causa disso. Os senadores, deputados, legisladores e parlamentares que se envolveram vão muito além do que eles normalmente iriam por uma causa em que acreditassem.


Acho que a universalidade das palavras e ensinamentos de Sua Santidade são muito maiores do que a causa do Tibete. Quando Sua Santidade recebeu o Prêmio Nobel da Paz, houve um salto quântico. Ele não é mais visto como apenas um tibetano; ele pertence ao mundo. Nós estávamos falando antes sobre o que a câmera capta, uma simples foto de Sua Santidade já parece comunicar muito. É cativante, e ao mesmo tempo revela uma abertura. Você pode imaginar como teria sido ver o Buda. Apenas ver o seu rosto iria colocá-lo muitos passos à frente. Eu acho que muito do que temos feito é apenas colocar Sua Santidade em situações em que ele poderia tocar tantas pessoas quanto possível, o que ele sempre faz com impecável bodhicitta.


Eu continuo dizendo que o Tibete vai ser levado em consideração no processo, mas se trata de como salvar todos os seres sencientes, e enquanto mantivermos nossos olhos sobre o prêmio, o Tibete vai ficar bem. É claro que no Tibete existem questões imediatas que devem ser tratadas. Trabalhamos com elas o tempo todo. Embora tivéssemos razão para acreditar que uma comunicação mais aberta com os chineses estava evoluindo, o otimismo gerado pela visita de Clinton à China não se confirmou. Na verdade, os tibetanos, bem como as chineses pró-democracia, estão enfrentando o período mais repressivo desde o final dos anos oitenta, desde o massacre da Praça de Tiananmen.


Melvin McLeod: Eu sempre fico impressionado com um ponto que o Dalai Lama acentua, muito semelhante ao que o meu próprio mestre, Chögyam Trungpa Rinpoche, apresenta nos ensinamentos da Shambhala. É a necessidade de uma espiritualidade universal com base em verdades simples da natureza humana que transcende qualquer religião em particular, ou a necessidade de uma religião formalizada. Isto me atinge como uma mensagem extraordinariamente importante.


Richard Gere: Bem, eu acho que é verdade. Sua Santidade diz que o que todos nós temos em comum é a aprovação da bondade e da compaixão; todas as religiões têm isso. Amor. Nós todos nos inclinamos para o amor.


Melvin McLeod: Mas, além disso, ele assinala que bilhões de pessoas não praticam uma religião de maneira nenhuma.


Richard Gere: Mas eles têm uma religião, a religião da bondade. Todo mundo responde à bondade.


Melvin McLeod: É fascinante que um grande líder religioso defenda de fato uma religião de nenhuma religião.


Richard Gere: Claro, é isso que o torna maior do que o Tibet.


Melvin McLeod: Faz com que ele seja maior do que o budismo.


Richard Gere: Muito maior. O Buda foi maior do que o budismo.


Melvin McLeod: Você é capaz de patrocinar uma série de projetos de apoio ao Dharma e à independência do Tibete.


Richard Gere: Eu me encontro em uma posição única. Eu tenho algum dinheiro em minha fundação, então eu sou capaz de oferecer algum capital a vários grupos e ajudá-los a iniciar seus projetos. Patrocinar os livros do Dharma é importante para mim – tradução, publicação – mas eu acho que a coisa mais importante que posso fazer é ajudar a patrocinar a instrução. Trabalhar com Sua Santidade e ajudar a patrocinar a instrução na Mongólia, Índia, Estados Unidos e em outros lugares, nada me dá mais alegria.


O programa que estamos fazendo neste verão prevê quatro dias de ensinamentos do Dalai Lama em Nova York. Entre os dias 12 e 14 de agosto haverá o ensino formal por Sua Santidade sobre Kamalashila’s “Middle-length Stages of Meditation” e “The Thirty-seven Practices of the Bodhisattvas.” Será no Beacon Theater e há cerca de 3.000 bilhetes disponíveis. Tenho certeza de que serão vendidos rapidamente. Se as pessoas não puderem comparecer, haverá uma aula pública gratuita no Central Park no dia 15. Estamos supondo que haverá espaço para 25 a 40 mil pessoas. Por isso, todos que quiserem poderão comparecer. Sua Santidade vai dar uma aula sobre os Oito Versos que Transformam a Mente, um poderoso ensinamento lojong, um dos meus favoritos, na verdade. Em seguida, Sua Santidade vai dar uma iniciação [wang], um empoderamento completo para Tara Branca.


Eu vi Sua Santidade dar ensinamentos da bodhicitta como estes, e ninguém pôde ir embora sem chorar. Ele toca tão profundamente no coração. Ele deu um ensinamento em Bodh Gaya, no ano passado, sobre In Praise of Bodhicittade Khunu Lama, que é um longo poema. Só de pensar nisso agora, eu estou começando a chorar. Tão bonito. Quando ele estava ensinando sobre In Praise of Bodhicitta, de Kunu Lama, que foi seu próprio mestre, Oh! Estávamos dentro de seu coração, da maneira mais extraordinária. Um lugar sobre o qual você não consegue falar, você não consegue ler a respeito, nada. Você está na presença de Buda. Eu tive vários mestres que dão ensinamentos maravilhosos sobre a sabedoria, mas ver alguém que realmente tem a grande bodhicitta.


Então esses são os ensinamentos que eu acredito que Sua Santidade está aqui para dar. Isso é o que toca.


Esta entrevista foi dada em 1999.

“A corrupção está dentro de nós” ... é "absurdo" que parlamentares "votem em nome de Deus"

Publicado no "El país" edição brasileira por MARINA NOVAES

Em São Paulo 2016


Monja budista mais pop do Brasil fala sobre o impeachment de Dilma e a intolerância política. Para ela, num Estado laico como o nosso é "absurdo" que parlamentares "votem em nome de Deus"



A Monja Coen, no Templo Soto Zen Budista Taikozan Tenzuizenji, em São Paulo, onde recebeu a reportagem do EL PAÍS, em 21 de abril. RICARDO MATSUKAWA

Vestida de branco dos pés à cabeça, Cláudia Dias Baptista de Souza, 69 anos, se misturou à multidão que ocupava a avenida Paulista no dia 18 de março para se manifestar contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Apenas a carequinha denunciava que estava ali a líder budista mais popdo Brasil, a Monja Coen, que há 33 anos deixou a vida regada a sexo, drogas e rock n' roll para se dedicar ao zen budismo. Sorridente, com um semblante tranquilo de observadora, ela decidira participar como "pessoa física", sem o habitual samue (o manto dos monges), de sua primeira manifestação desde o início da conturbada crise política que o Brasil atravessa desde 2015. Alguns a reconheceram e pediram para tirar fotos. Mas, nas redes sociais, nem todos ficaram felizes ao saber que a religiosa tinha escolhido um lado.



A política não é tema das conversas dentro do templo soto zen budista que lidera no Pacaembu, bairro nobre da região central de São Paulo. Mas, fora dele, ela sentia que era hora de se manifestar. "Eu sou contra o impeachment. No momento em que eleições legitimamente realizadas estão sendo questionadas, estamos dando um retrocesso político", respondeu, semanas depois, ao receber o EL PAÍS em sua casa para uma entrevista sobre atitudes zen em meio à tensão social atual.

MAIS INFORMAÇÕES


Cláudia se tornou Coen (Co quer dizer só e En significacírculo, ou seja, um só círculo) em 1983, quando fez votos monásticos e entrou para o Mosteiro Feminino de Nagoia, no Japão, onde viveu por mais de uma década. Ex-jornalista, prima dos Mutantes Sérgio Dias e Arnaldo Dias Baptista, ela descobriu aos 36 anos, em Los Angeles, "essa coisa maravilhosa que é a meditação", quando fazia uma reportagem sobre sociedades alternativas nos Estados Unidos. Deixou para trás um passado agitado, que inclui um casamento aos 14 anos (e uma gravidez e divórcio aos 17), uma fase de groupie da banda de rock Alice Cooper, uma prisão na Suécia por tráfico de LSD e uma tentativa de suicídio. 

A partir dali abraçou um estilo de vida que lhe trouxe serenidade e uma vocação. Nunca escondeu seu passado por ver em sua trajetória o exemplo prático de como é possível virar qualquer vida do avesso e recomeçar. Se tornou a primeira mulher a ocupar a presidência das Seitas Budistas no Brasil, se casou com um monge (de quem se separou anos depois), escreveu livros sobre a vida zen e hoje se define como uma "monja e dona-de-casa", que roda o Brasil dando palestras sobre felicidade e vê alegria em coisas triviais, como caminhar no parque com seus três cachorros e votar. "Me alegra poder dar meu voto. Eu vivi muito tempo numa época em que não podíamos votar". Na definição da filha Fábia, 52 anos, é "uma figura", "iluminada e de bem com a vida".

E é justamente só (como diz o nome que ganhou do professor japonês) que assume sua posição política. Antes de continuar a entrevista, faz questão de esclarecer: essa é a sua opinião pessoal e não representa a comunidade que lidera, que tem liberdade para pensar como quiser. Também esclarece que não é filiada a nenhum partido político, não vota sempre no mesmo grupo, nem possui uma ideologia partidária. E que "entende muito pouco desses assuntos". Razões pelas quais não vê como quem pensa diferente dela deveria se sentir incomodado com sua opinião, já que conviver com pessoas que pensam diferente é, para ela, algo que deveria ser "enriquecedor" e, mais: necessário.

"Nós não falamos de política aqui. Mas eu tenho notado que as pessoas ficam muito virulentas quando vão discutir o seu ponto de vista... Há muitas pessoas intolerantes hoje. Teve uma senhora que frequentava o templo e veio aqui chorando me dizer que não poderia mais ser guiada por mim porque soube que eu me manifestei publicamente sobre o tema. Olha isso que interessante... Aí tem gente que diz: 'Ah, mas a monja não pode ter uma opinião política'... Isso não é verdade. Todos temos. Nós estamos numa democracia e existem várias formas de pensar", diz.

"Cada um de nós tem que assumir aquilo que pensa. E assumir, com isso, as consequências"

Para ela, há certos momentos em que é preciso se posicionar no mundo. “Cada um de nós tem que assumir aquilo que faz, aquilo que é e aquilo que pensa. E assumir, com isso, as consequências", ponderou, sem rodeios. Por isso lembrou que não falava em nome de mais ninguém a não ser dela mesma.

Circo político versus Estado laico

Para a missionária budista, o Estado ser laico é fundamental para a democracia brasileira, o que a faz achar "um completo absurdo" o fato de deputados federais citarem mais a palavra Deus que as acusações contra Dilma ao votarem por sua destituição. "É um absurdo falarem 'estou aqui votando em nome de Deus', porque o nosso Estado é laico. É importante que seja laico. Nem todos os evangélicos, os católicos, os budistas, enfim, são a favor do impeachment... Então você não pode falar em nome de todas essas pessoas sem consultá-las antes", disse, em referência à aprovação, pela Câmara Federal, da continuidade do processo contra Dilma no dia 17 de abril. 

"O que eu vi naquela votação na Câmara foi um circo. E pensei depois: que bom que eu estou do lado daqueles que perderam essa votação. Porque eu não gostaria de estar do lado daqueles que ganharam. Porque eu teria muita vergonha. Pois aquilo não foi honesto."
Cisão da sangha

"É um absurdo falarem 'estou aqui votando em nome de Deus' porque o nosso Estado é laico"

Coen se diz especialmente preocupada com a divisão do Brasil e o clima de intolerância. Uma das poucas referências políticas que faz quando se dirige à comunidade budista é sobre a importância de não deixar com que esse momento de crise —que é passageira, frisa ela— divida "famílias, separe amigos, destrua comunidades". "Buda, ele dizia que um dos crimes maiores que podia ser cometido era a cisão da sangha, divisão da comunidade. Que é o que a gente está vivendo no Brasil. Que lamentável. Seja qual lado que ganhe ou que perca todos nós perdemos e ganhamos juntos."

Para a missionária, neste sentido, "todos os lados" da história estão errados, sejam governistas ou opositores. "Nós não precisamos destruir o outro para provar que temos capacidade. E nisso, todos eles estão na mesma panela", observou, reprovando o discurso do "nós contra eles", tão presente em falas políticas. "Eu não gosto da palavra luta, por exemplo, e muitos partidos políticos usam isso. Eu não acho que a gente deve lutar por coisa alguma. Eu acho que a gente deve trabalhar para construir algo", completa, retomando o tom zen do papo.

Monja Coen fala frases duras, gesticula bastante, mas não eleva o tom da voz. Mantém o olhar suave mesmo nas vezes em que usa palavras como "hipocrisia" ao falar dos que usam a bandeira "contra a corrupção" para destituir o Governo."Então somos todos contra a corrupção e os corruptos. E os juízes quem são? São esses senhores que têm as perninhas presas em escândalos", diz. Também não altera o timbre ao dizer que a "mídia brasileira não é democrática" e "manipula a população ocultando um dos lados da história".

Foi um livro de Léon Trotsky (não se lembra qual), que fazia menção ao combate à corrupção, que a motivou a se tornar monge nos anos 80. O livro apontava justamente que qualquer mudança social positiva só seria possível se a transformação fosse interna."Se a mudança não for do coração, interna de cada um de nós, não vão ser partidos políticos, sistemas econômicos que vão fazer a diferença. Porque nós somos corrompíveis. Todos nós. Em níveis diferentes. E como é que você pode acessar um nível de incorruptibilidade? Como fazer isso através de uma visão clara da realidade de que estamos todos e tudo interligados? Como é que eu mexo nisso sem ódio, sem criar atrito? Isso, pra mim, é uma arte. É uma arte de fazer política. E nós ainda não chegamos lá."
Desapego 

Demonstra paixão ao falar e gesticula muito, mas não perde o tom sereno. RICARDO MATSUKAWA

Questionada, porém, sobre as acusações de corrupção que pesam contra o PT e contra o Governo Dilma, a monja relativiza o poder que "um presidente tem dentro de um jogo político que inclui muitos interesses" e o quão reais são as acusações. Não se aprofunda no assunto, mas diz não "botar a mão no fogo por ninguém". Apesar disso, nega ter medo de admitir estar errada, mais uma vez recorrendo ao budismo ao avaliar essa hipótese.

"Eu acredito na Dilma. Acho que é uma senhora honesta. Acho que ela queria fazer coisas pelo bem do Brasil e está sendo impedida porque não soube fazer as barganhas políticas. Mas posso estar errada? Posso. E se ficar provado que não era isso, vou dizer: eu me enganei. Porque eu descobri uma coisa maravilhosa que é o zen budismo, que me tira o apego de tudo, inclusive de um ponto de vista. Eu posso errar. Eu não sou uma ativista política. Eu apenas tenho uma opinião política."

— E, diante de todo esse cenário de caos político, como a senhora tem conseguido se manter zen?

Ela recebe a pergunta com uma gargalhada. Pensa alguns segundos e responde:

— A vida continua, apesar de tudo e apesar de todos os aspectos e revezes. Eu continuo meditando, continuo fazendo o meu trabalho. Esse é um dos princípios básicos do budismo: não há nada fixo, nada permanente. Então neste momento que estamos atravessando essa turbulência, vamos apertar nossos cintos, vamos controlar nossas finanças, manter a calma… Porque sabemos que a turbulência passa. Não vamos fazer disso essa coisa tão negativa, como se o mundo fosse acabar, porque não vai. Eu ainda acredito que nós podemos construir uma cultura de paz. Uma cultura de respeito. Isso tudo vai passar...

Monja Coen, em seu templo em São Paulo. RICARDO MATSUKAWA

Um jardineiro habilidoso não joga fora o lixo


TAIA DOJÔ: "Um jardineiro habilidoso não joga fora o lixo


"Cada uma de nossas aflições e formações mentais nocivas contém a natureza e a libertação de Buda. A raiva inclui todos os fatores que a fizeram surgir. Se nossa raiva não contivesse a libertação, como poderíamos transformá-la em não-raiva? No adubo há muitas flores perfumadas. Um jardineiro habilidoso não joga fora o lixo da cozinha, mas o transforma em adubo. No decorrer do tempo, o lixo se transformará numa cesta de vegetais verdes e frescos. Se soubermos como fazer adubo de nossas aflições de raiva, ódio, ignorância, orgulho, dúvida, pontos de vista, agitação, torpor e desatenção, poderemos transformá-las em paz, alegria, libertação e felicidade... Quando somos capazes de tocar as energias formadoras de hábitos e transformar as raízes de violência, desespero, medo e raiva na nossa consciência armazenadora dá-se a transformação na base."

Mestre Thich Nhat Hanh - TRANSFORMAÇÕES NA CONSCIÊNCIA - DE ACORDO COM A PSICOLOGIA BUDISTA

O que você deve lembrar quando buscar um Governo Autoritário... seja de direita, seja de esquerda...

Retirado daqui: INTERNACIONAL



REPARAR É o que Rainer Höss procura há 15 anos a tempo inteiro

Rainer Höss é neto de Rudolf Höss, o comandante da maior fábrica de morte da Alemanha nazi. E sê-lo marcou o seu caminho. Hoje é um ativista em luta contra o extremismo e dá conversas em 80 escolas por ano, para que o mundo não esqueça. Esta é a versão integral da entrevista que feita para o trabalho “Em nome do pai”, publicado na Revista E a 13 de agosto






Rainer Höss é neto de Rudolf Höss. E isto define-o como uma marca na pele. Há mais de 15 anos abandonou tudo para se tornar um ativista antinazi a tempo inteiro e passa os dias a contar a sua história. A história de um rapaz nascido numa família disfuncional, cujo pai fora criado a 200 metros do forno crematório de Auschwitz I.

Rudolf Höss, comandante de Auschwitz nos seus piores anos, responsável pela construção de Birkenau, vivia com a família numa villa com piscina situada dentro do campo de concentração. Hans-Jurgen, pai de Rainer, era o terceiro dos quatro filhos do nazi. Rainer não o soube logo — cresceu num caldo de silêncio e punição. Só na adolescência a verdade lhe foi revelada, por um livro lido às escondidas, que acabou por lhe apontar o caminho. “Sair de casa era a única hipótese para mim, a única possibilidade de sobreviver à minha família”, contou ao Expresso.

Como se lida com o horror quando os nossos antepassados o infligiram? 
A maior parte das vezes não se lida. Por isso a minha própria família negou o que se passou. A minha avó Hedwig dizia que o marido era um soldado exemplar que nunca fez nada de errado e só obedeceu a ordens. E chorava por ter perdido o seu paraíso com piscina em Auschwitz. A minha pergunta sempre foi: se aos olhos da minha avô Auschwitz era um paraíso, como seria o inferno para ela? Nem ela nem o meu pai conseguiram educar-me na ideologia nazi, embora tentassem. Tive a sorte de estar num colégio interno, longe da família — longe de toda aquela punição a que o meu pai nos submetia o tempo todo.

EM FAMÍLIA Rudolf Höss com a mulher, Hedwig, e os quatro filhos

D.R.

É verdade que dizia aos filhos para lavarem bem os morangos, não fossem ter cinzas? 
É verdade. Josef Paczynski, um dos jardineiros de Auschwitz, disse-me que era verdade. Que os morangos cresciam ali muito naturalmente. O jardim era enorme e foi construído por 50 prisioneiros — em Auschwitz, naquele momento, tudo era construído pelos prisioneiros. Um deles era um engenheiro judeu especializado em jardins, que fez o projeto de acordo com o que a mulher do comandante queria. Cada duas semanas, ela costumava ir ao armazém Kanada, em Birkenau, onde os nazis depositavam os pertences de milhões de deportados. Estive em contacto com uma sobrevivente do campo que trabalhava nessa secção e que hoje vive em Inglaterra. E contou-me que a minha avó, o meu avô e as crianças — ela até sabia as alcunhas — iam lá buscar artigos para uso pessoal.

Ficou chocado ao saber estes pormenores? 
Vou contar-lhe uma história. Na minha juventude, havia um casaco de que eu gostava especialmente por ser muito quente, leve e confortável. Quando fiquei com o espólio do meu avô encontrei uma fotografia do meu pai em miúdo a envergar exatamente o mesmo casaco. Então pensei: há algo escondido nesta fotografia. Passado algum tempo, no Memorial do Holocausto, nos Estados Unidos, deparei-me com documentos a atestarem que a minha avô ficara com o casaco de um miúdo que chegou a Auschwitz em 1942. Percebi que tinha andado a usar o casaco de um miúdo gaseado. Lembro-me de que a minha avô estava muito orgulhosa dele e até comentou à minha mãe: “É da melhor qualidade que se pode arranjar.”

Quem era o seu pai? 
Era um tipo cruel. Nunca nos permitiu ter as nossas opiniões ou gostos. Tínhamos de obedecer.

Era como a mãe dele? 
O meu pai era assim: se estivéssemos perante uma parede branca e eu dissesse “esta parede é branca”, o meu pai respondia: “não, é vermelha”. Se insistíssemos, batia-nos até mudarmos de opinião. A minha mãe tentou suicidar-se mais de dez vezes. Todas as pessoas que o conheciam, com quem falei no âmbito da minha pesquisa, referiram que o meu avô era um pai amável, que nunca batera nos filhos. Que chegava ao fim do dia do seu trabalho no campo principal ou em Birkenau, trocava a roupa militar por roupa normal e andava por aí a brincar com eles no jardim. Ora, eu nunca tive isso na minha infância com o meu pai. Então, como chegou ao ponto de nos bater? Poderíamos dizer que a culpa está na forma como cresceu, mas ele até teve uma infância divertida.

Que resposta encontrou? 
Tenho a certeza de que o momento chave foi aos 17 ou 18 anos, quando a pressão da minha avó sobre ele aumentou. Nessa altura, ela decidiu não seguir as instruções que o meu avô elencou em 16 cartas escritas desde a cadeia, em que lhe pedia para não continuar a educar os filhos naquela ideologia, e para mudar de nome e de vida — ele sabia que não voltaria a casa e que o iriam enforcar. A minha avó nunca seguiu estas instruções. Manteve contacto com os ex-guardas e oficiais de Auschwitz, e negou até ao fim que tudo aquilo — os judeus, os aliados, Nuremberga — se tivesse passado. Então, como é que sentiu necessidade de dizer aos filhos que lavassem bem os morangos para lhes retirar as cinzas, se o forno crematório afinal nunca funcionou? Não faz sentido. Qualquer pessoa minimamente inteligente percebe isto, mais ainda se tiver visitado Auschwitz e tiver confirmado a proximidade da casa deles em relação aos fornos crematórios. São 200 metros. Quem estivesse dentro do jardim podia vê-los.

AUSCHWITZ A piscina da villa de Rudolf Höss, avô de Rainer, em Auschwitz. Por trás vê-se o forno crematório

D.R.

O seu pai deve tê-los visto. 
O meu pai e o resto das crianças. Sei disso por conversas com prisioneiros e com outros guardas. E também pelo que Oskar Groening, o contabilista de Auschwitz recentemente julgado, me disse: que toda a gente sabia o que se passava lá. Ele até se recordava que o meu tio Klaus [irmão mais velho de Hans-Jurgen, pai de Rainer] era um rapaz muito cruel. Sempre que alguém não seguia as suas ordens, ameaçava contar ao meu avô.

Que história lhe contaram a si quando era criança? 
Lá em casa não se falava disto. Havia silêncio e havia um segredo. A minha mãe só soube a que família pertencia o marido três anos depois de se ter casado. Nessa altura, decorriam os julgamentos de Frankfurt e a tia da minha mãe apareceu em casa com o jornal, onde havia um artigo sobre Auschwitz e uma grande foto de família. A minha mãe ficou chocada e à noite confrontou o meu pai. E ele perguntou: “Tens algum problema com isso?” Logo a seguir a minha mãe comprou dois livros: a autobiografia “Eu, Comandante de Auschwitz”, que o meu avô escreveu na prisão, e um outro livro escrito por um prisioneiro que trabalhava no Kommandantur. Num deles, a minha avô anotou em quase todas as páginas: “Isto é mentira.”

Quando se apercebeu pela primeira vez quem era o seu avô Rudolf Höss? 
Aos 15 anos, quando li o livro “Eu, Comandante de Auschwitz”. Eu já sabia que esse livro existia e tinha pedido ao meu pai para o ler, mas ele ficou furioso e não deixou. Guardou-o no seu escritório, uma área restrita na qual não podíamos entrar sem um castigo. Quem me deu a possibilidade de o ler foi a minha mãe, aproveitando uma viagem de negócios do meu pai à Suécia. Disse-me: “Deixa-o ir e assim tens de 5 a 7 dias para o ler.” Avisou-me também que o livro não ia ser o que eu esperava. No dia em que o meu pai partiu, esperámos até à noite, ela entrou no escritório, tirou o livro e deu-mo. Li-o em poucos dias. Fiquei muito chocado, mas explicou muita coisa em relação ao caráter do meu pai.

Nunca tinha sequer desconfiado? 
Na minha juventude não era comum falar-se na escola da II Guerra Mundial. Porém, quando eu tinha 12 anos, um professor percebeu a cegueira em que eu vivia e levou-me a Dachau, onde o meu avô também tinha trabalhado. Foi a primeira vez que tive contacto com um campo de concentração. Nunca tinha lido a palavra Auschwitz num livro de História, por exemplo. Em Dachau havia uma placa com o meu nome, e à noite interroguei o meu pai sobre isso. Ele afirmou ser um engano. Deu uma explicação tão clara, tão segura! Disse que eles tinham cometido um erro ao soletrá-lo, que escreveram 'Höss' quando deviam ter escrito 'Hess'. O assunto ficou arrumado, pois todas as crianças acreditam no que os pais dizem. Depois veio a altura em que comecei o meu treino como cozinheiro e um dia cheguei a casa e vi aqueles dois livros com o nome 'Höss' na prateleira. De imediato lembrei-me da placa em Dachau e pensei: meu Deus, escreveram um livro com o mesmo erro! Peguei nele apenas para verificar isso, mas o meu pai saiu de repente do escritório, agarrou-me na mão e disse que esse livro não era para ler. Então fui ter com a minha mãe à cozinha, contei-lhe aquilo, e vi no seu rosto que alguma coisa se passava. Que havia algo escondido.

INFÂNCIA No jardim da moradia em Auschwitz, com o forno crematório por trás

D.R.

Há um episódio da sua infância em que foi convidado a uma festa judia. Quer contar? 
Tinha uns dez ou onze anos, antes de o meu pai me mandar para o colégio interno — foi nessa altura que a minha mãe fez dez tentativas de suicídio. O pai do meu melhor amigo convidou-me a celebrar a Pesaj [Páscoa judia] em casa dele, e eu nunca tinha ouvido essa palavra antes. A minha família nunca foi religiosa, eu não fazia ideia do significado das palavras 'católico' ou 'judeu'. Fui pedir autorização ao meu pai e fiz o ritual de sempre: pus-me à sua frente com as mãos atrás das costas, à espera de permissão para falar. Quando o fiz, ele saltou da cadeira, partiu-me o nariz e trancou-me no quarto. Eu não fazia ideia do que tinha acontecido, mas era normal e não pensei no assunto. À noite apareceu ainda furioso e gritou: “Não te autorizo a falar com esse lixo judeu.” Na manhã seguinte havia um sinal na frente da nossa casa a dizer “Judeus não são bem vindos”, que a minha mãe retirou de imediato. Ela também tudo fez para que eu não perdesse o meu melhor amigo.

Que reação teve quando aos 15 anos leu finalmente a autobiografia de Rudolf Höss? 
Fiquei extremamente chocado, pois percebi de que família fazia parte. Aos 15 anos já conseguimos pensar e relacionar as coisas, e o grande puzzle começou a fazer sentido. E percebi logo que sair de casa era a única hipótese para mim, a única possibilidade de sobreviver à minha família. Não sei o que teria acontecido se não tivesse ido para um colégio interno. Não sei se não teria acabado como o meu pai. Quando saí de casa não olhei para trás e perdi todo o contacto com o lado paterno. Sei que é horrível de se dizer, mas eu sobrevivi a essa família.

Voltou a ver o seu pai?
Deixei de o ver definitivamente em 1985. Não tive mais contacto com ele. E nunca quis falar disto com ele — acredito que cada palavra que ele dissesse seria uma mentira. Em 1983, a minha mãe divorciou-se e começou a viver a melhor parte da sua vida. E eu casei-me em 1984.

Como foi a sua vida após sair de casa? Como se encontrou a si próprio? 
Tive a ajuda daquele que foi o meu patrão durante o meu estágio como cozinheiro, a quem gosto de chamar o meu 'mentor'. Ele próprio era uma produção da II Guerra Mundial — tinha nascido num Lebensborn, casas criadas por Himmler onde mulheres e SS nascidos loiros e de olhos azuis se encontravam só para procriar e fabricar bebés 'de raça' ariana — e percebeu o significado da minha herança. Quando saí de casa meti-me na droga e no álcool, e durante ano e meio fui um tipo muito agressivo. O meu mentor ajudou-me a sair deste ciclo e a tornar-me no que sou hoje.

Li que teve um filho muito cedo. 
Sim, tive um filho aos 17 anos. O meu pai chamou-lhe bastardo e não autorizou que lhe fosse dado o nome Höss. Deu-me um estalo, eu fiquei de joelhos, levantei-me e pela primeira vez bati-lhe de volta. E disse-lhe que nunca mais me iria bater na vida. Esse foi o momento em que tudo mudou. Para ele deve ter sido também o pior momento da sua vida, porque não pôde quebrar o filho.

E quando começou a pesquisar, a escavar no passado familiar? 
Comecei aos 20 anos. Não foi fácil, era preciso ir aos arquivos, e pode imaginar o que era ter de apresentar o meu BI. Eles liam o meu nome e, mesmo tendo a informação que eu procurava, diziam-me que não havia lá nada. Na Alemanha desse tempo tudo isto era um segredo de que ninguém falava. Então o meu mentor passou a pedir a informação por mim, eu lia-a e tirava as minhas notas, e ele devolvia os documentos aos arquivos.

Quando é que renuncia a tudo em prol do ativismo? 
Eu era cozinheiro, chefe de pastelaria, e tinha o meu próprio negócio, que fundei pouco depois de acabar o curso. E há 15 anos sofri um ataque cardíaco. Senti que esse era o sinal para mudar alguma coisa, o momento de fazer algo que realmente me importasse. Eu já tinha sido convidado para conversas em escolas, nomeadamente nas dos meus filhos, para falar sobre a minha família e sobre a importância de lutar contra o extremismo. E cada vez mais escolas me chamavam para falar. Não era fácil ter um restaurante, um trabalho, e fazer as duas coisas. Quando tive o ataque, vendi a minha parte aos meus sócios e comecei a fazer isto mais a sério. Hoje faço atividades numa média de 80 escolas por ano.

Pergunto-lhe de novo: porquê? 
Para mudar alguma coisa. Se não fizermos nada, não podemos chorar no final, quando tudo se desmoronar. Temos que agir naquele momento em que percebemos que as pessoas estão a ser discriminadas pela cor da pele, pela sua sexualidade ou pelo que seja. Como podemos permitir isto? Por outro lado, faço-o pelas pessoas que sofreram às mãos da minha família.

É uma forma de reparação? 
Claro, não há outra hipótese. O ser humano tem duas formas de lidar com estas coisas: negando-as ou enfrentando o problema. Depois de tudo o que passei na juventude, o caminho para mim só podia ser enfrentá-lo. Mostrar como estas sementes de ideologia estiveram a crescer nestas famílias por mais de 50 anos. Que nelas nunca nada mudou. Se tivesse conhecido o meu pai, nunca teria acreditado que ele era um tipo capaz de tanta crueldade. As pessoas adoravam-no, achavam-no amigável e divertido. Mas quando ele fechava a porta de casa e ficava lá dentro, ele era como um pequeno Hitler.

A jornalista Alexandra Senfft — ela própria neta do nazi Hanns Ludin — disse que a Alemanha lidou bem com o passado nazi em termos coletivos, mas faltou fazer o trabalho dentro das famílias. 
Concordo a 100 por cento. Nós, os alemães, investigámos 90 por cento dos crimes perpetrados pelos nazis. Procurámos, pesquisámos, sabemos do que se trata. Porém, não sabemos o que se passou dentro das famílias. Por que é que isto aconteceu? Porque ninguém quer estar na posição em que um advogado ou um juiz lhe diga: “O teu pai ou o teu avô foi guarda em Auschwitz.” Então ficam calados, não falam do assunto e vivem uma boa vida. Recentemente tivemos na Alemanha os julgamentos de Oskar Groening [contabilista de Auschwitz] e Reinhold Hanning [guarda do mesmo campo], condenados a quatro e a cinco anos de prisão, respetivamente. Demorou 60 anos para que a verdade sobre estes homens viesse ao de cima. Durante 60 anos o Governo não pôs os olhos neles. E tiveram uma boa vida. Para mim era importante que a nossa juventude os ouvisse. Quantas vezes é possível ouvir um perpetrador nazi a contar como os nazis faziam a seleção na rampa? Também foi importante para os que acham que o Holocausto é uma falsidade judaica. De repente tinham alguém como Groening a relatar o que viu e a dizer que estava orgulhoso de usar um uniforme das SS. Que aquilo aconteceu e que se pode repetir em qualquer parte do mundo.

Como foi a primeira vez que visitou Auschwitz? 
Já lá estive 28 vezes e a experiência é sempre a mesma. Quando estou a chegar e vejo o primeiro sinal na estrada — Auschwitz — tenho consciência do que vem a seguir e do que lá se passou. E não posso tocar em nada, não quero ter nenhuma ligação pessoal com o meu avô. Se estiver em frente a um dos blocos, espero que alguém saia para entrar, não abro a porta por mim mesmo. Porque os seus crimes estão inscritos em todas as paredes daquele lugar. Auschwitz é para mim o equivalente a visitar a casa dos meus avós, e isso faz-me sentir sempre envergonhado. Tenho vergonha do que o meu avô fez, de que não se tenha questionado se o que fazia estava bem ou mal, e de que não tenha mostrado arrependimento perante as vítimas depois da guerra, quando estava na prisão. E de fazer parte de uma família assim. Sempre que visito Auschwitz, a primeira coisa que visito é a forca, onde o meu avô morreu em 1947.

Em que circunstâncias visita o campo atualmente? 
Às vezes vou com estudantes, outras para filmar documentários, ou com amigos que não querem ir sozinhos. E fui muitas vezes com sobreviventes. Quando o visito com estudantes, levo-os primeiro ao campo principal e depois a Birkenau. Em Birkenau, vamos primeiro à torre vigia, para verem a vastidão. Depois caminhamos pelo interior, uma hora, duas horas. Tento ir com eles no inverno, em fevereiro ou em outubro. É uma experiência mais marcante. Eles apercebem-se da sorte que têm ao vestirem todos aqueles casacos, botas e luvas. Peço-lhes para tirar os casacos e se tiverem coragem as botas. Nós não fazemos ideia do que era andar por aí de pijama em qualquer estação do ano, quase sem calçado. Por vezes paramos na linha do comboio que entra em Birkenau e eu pergunto-lhes se ouvem algum pássaro a cantar. Digo-lhes: “É natural, vocês estão no maior cemitério do mundo.” É uma forma de eles terem a sua própria imagem do que aconteceu. Também fiz isto com os meus filhos — tenho quatro, dois rapazes e duas raparigas, de 33, 30, 27 e 21 anos. Sempre lhes disse a verdade, nunca houve segredos. Tiveram acesso a toda a minha pesquisa.

Sei que construiu uma relação forte com muitos sobreviventes. Quando começou a contactá-los? 
Há uma década. Não foi fácil, demorou anos. Escrevi algumas cartas e alguns responderam. Fi-lo porque queria dizer-lhes o quanto lamento o que aconteceu. Eu tenho este DNA em mim — na verdade, todos temos um pouco de Rudolf Höss ou de Hitler. A questão é como controlá-lo. Como controlar o nosso demónio. Todos herdamos um pequeno assassino de massas. E se o deixamos sair, ok, é uma opção que fazemos.

Não sei se concordo consigo.
Nunca esteve tão zangada que quisesse matar alguém? Se me disser a verdade, terá de dizer que sim. A questão é se o faz ou não. Mas se tiver pessoas que a instruam, por meio do medo, a fazê-lo...O medo é uma arma poderosa. Assim como o ódio. Hoje isso é visível nas redes sociais e na sua capacidade de espalhar o medo e o ódio pelo mundo em microssegundos. E os discursos de ódio não são apenas ouvidos por pessoas estúpidas.

Que reações teve dos sobreviventes que conheceu? 
Foram muito amigáveis comigo. A única coisa que me perguntam é: és verdadeiro? Há pouco tempo estive na Hungria a convite da comunidade judaica. Houve um encontro de sobreviventes, organizado pelos familiares, e eles tinham medo de mim. Alguns estavam tão assustados que tremiam, porque as velhas memórias estavam a voltar. Um deles aproximou-se de mim e disse: “Sabe por que estou tão assustado? Eu era um rapaz de 14 anos, recém-chegado a Auschwitz vindo de Buchenwald, e tinha imensa fome, pois nos últimos dias apenas comera uns pedaços de pão. Alguém me deu uma tigela de sopa, que estava muito quente e eu tentava beber aos poucos. O teu avô caminhava junto à linha e viu-me. Veio direto a mim e deu-me dois estalos, à esquerda e à direita, e gritou: 'não comas à minha frente.' Sinto esses estalos até hoje.”

Sei que é o 'neto adotivo' de uma sobrevivente, Eva Moses Kor. Como é que isso aconteceu? 
Foi muito simples. Eu tentei caçá-la [risos]. Mandei-lhe um e-mail, pedindo-lhe para conversarmos, pois tinha algumas perguntas para lhe fazer. Contei-lhe logo quem eu era e ela respondeu que em 2014 iria a Auschwitz com um grupo. Encontrámo-nos pela primeira vez na cafetaria do museu, no campo principal, e ela disse: “Antes de te responder a qualquer pergunta, deixa-me olhar para os teus olhos azuis.” Ficou ali sentada por uns minutos a olhar-me nos olhos e depois disse: “Ok, podes perguntar.” A minha intenção é que ela fosse testemunha no julgamento de Groening, e ela aceitou. Na altura, viajei muito com os advogados por causa deste julgamento, pagando tudo do meu bolso - quando as pessoas dizem que me sirvo do meu nome para ganhar dinheiro eu até me rio. Um dos advogados, Kumad Ali Mohammed, é muçulmano. Foi a primeira vez que um muçulmano foi advogado de um sobrevivente do Holocausto. Estes são os pequenos sinais que damos, de que somos uma só sociedade. Todos vivemos neste planeta e não há forma de escondermos isso. Voltando a Eva, depois de a conhecer a nossa amizade cresceu. Ela costuma dizer aos jornalistas: “Fiz o que o seu avô nunca pôde fazer, pu-lo do meu lado.”

Tatuou os números de prisioneiro de alguns sobreviventes. Porquê? 
São aqueles com os quais tenho contacto e que me ajudaram, como Eva. É a minha forma de lhes mostrar respeito. Como alguns já morreram, ficarão comigo até eu morrer. Com sorte vou dar-lhes mais 50 anos. E lembram-me sempre qual a minha tarefa, a minha missão — espalhar todas estas histórias. Digamos que é o meu memorial privado.

Ser um Höss define-o? 
Depende da forma como nos instruímos a nós próprios. Há primos meus, da minha idade, que acreditam que o meu avô era uma boa pessoa. Dizem que foi um bom soldado, cheio de coragem, mas como é que um assassino de massas pode ser um bom soldado? Isto é o que me assustou desde o início - essa parte em que, de manhã, ele vestia o uniforme, guardava a pistola e deixava a mulher e os filhos, e ia para a porta do campo matar outras famílias com os seus filhos. Sem qualquer emoção. E à noite voltava para casa, esperando que a família tivesse tido um dia divertido.

Mas o que representa o seu nome para si? 
Um legado cruel. E a possibilidade de que esse nome, na família que formei, seja algo de bom. Se as pessoas falarem de Rudolf Höss e falarem de mim, estarão a falar de pessoas completamente diferentes. O meu nome é uma arma contra aquilo que um dia representou. Não tenho ilusões — sei que não vou poder mudar os crimes que o meu avô cometeu. Mas não fui cobarde. Não quero ser cobarde. E é curioso, porque ao longo de todos estes anos, não houve um só representante da extrema direita que quisesse discutir isto comigo.

COLETÂNEA PARA APRESENTAR JUNG