Um jardineiro habilidoso não joga fora o lixo


TAIA DOJÔ: "Um jardineiro habilidoso não joga fora o lixo


"Cada uma de nossas aflições e formações mentais nocivas contém a natureza e a libertação de Buda. A raiva inclui todos os fatores que a fizeram surgir. Se nossa raiva não contivesse a libertação, como poderíamos transformá-la em não-raiva? No adubo há muitas flores perfumadas. Um jardineiro habilidoso não joga fora o lixo da cozinha, mas o transforma em adubo. No decorrer do tempo, o lixo se transformará numa cesta de vegetais verdes e frescos. Se soubermos como fazer adubo de nossas aflições de raiva, ódio, ignorância, orgulho, dúvida, pontos de vista, agitação, torpor e desatenção, poderemos transformá-las em paz, alegria, libertação e felicidade... Quando somos capazes de tocar as energias formadoras de hábitos e transformar as raízes de violência, desespero, medo e raiva na nossa consciência armazenadora dá-se a transformação na base."

Mestre Thich Nhat Hanh - TRANSFORMAÇÕES NA CONSCIÊNCIA - DE ACORDO COM A PSICOLOGIA BUDISTA

O que você deve lembrar quando buscar um Governo Autoritário... seja de direita, seja de esquerda...

Retirado daqui: INTERNACIONAL



REPARAR É o que Rainer Höss procura há 15 anos a tempo inteiro

Rainer Höss é neto de Rudolf Höss, o comandante da maior fábrica de morte da Alemanha nazi. E sê-lo marcou o seu caminho. Hoje é um ativista em luta contra o extremismo e dá conversas em 80 escolas por ano, para que o mundo não esqueça. Esta é a versão integral da entrevista que feita para o trabalho “Em nome do pai”, publicado na Revista E a 13 de agosto






Rainer Höss é neto de Rudolf Höss. E isto define-o como uma marca na pele. Há mais de 15 anos abandonou tudo para se tornar um ativista antinazi a tempo inteiro e passa os dias a contar a sua história. A história de um rapaz nascido numa família disfuncional, cujo pai fora criado a 200 metros do forno crematório de Auschwitz I.

Rudolf Höss, comandante de Auschwitz nos seus piores anos, responsável pela construção de Birkenau, vivia com a família numa villa com piscina situada dentro do campo de concentração. Hans-Jurgen, pai de Rainer, era o terceiro dos quatro filhos do nazi. Rainer não o soube logo — cresceu num caldo de silêncio e punição. Só na adolescência a verdade lhe foi revelada, por um livro lido às escondidas, que acabou por lhe apontar o caminho. “Sair de casa era a única hipótese para mim, a única possibilidade de sobreviver à minha família”, contou ao Expresso.

Como se lida com o horror quando os nossos antepassados o infligiram? 
A maior parte das vezes não se lida. Por isso a minha própria família negou o que se passou. A minha avó Hedwig dizia que o marido era um soldado exemplar que nunca fez nada de errado e só obedeceu a ordens. E chorava por ter perdido o seu paraíso com piscina em Auschwitz. A minha pergunta sempre foi: se aos olhos da minha avô Auschwitz era um paraíso, como seria o inferno para ela? Nem ela nem o meu pai conseguiram educar-me na ideologia nazi, embora tentassem. Tive a sorte de estar num colégio interno, longe da família — longe de toda aquela punição a que o meu pai nos submetia o tempo todo.

EM FAMÍLIA Rudolf Höss com a mulher, Hedwig, e os quatro filhos

D.R.

É verdade que dizia aos filhos para lavarem bem os morangos, não fossem ter cinzas? 
É verdade. Josef Paczynski, um dos jardineiros de Auschwitz, disse-me que era verdade. Que os morangos cresciam ali muito naturalmente. O jardim era enorme e foi construído por 50 prisioneiros — em Auschwitz, naquele momento, tudo era construído pelos prisioneiros. Um deles era um engenheiro judeu especializado em jardins, que fez o projeto de acordo com o que a mulher do comandante queria. Cada duas semanas, ela costumava ir ao armazém Kanada, em Birkenau, onde os nazis depositavam os pertences de milhões de deportados. Estive em contacto com uma sobrevivente do campo que trabalhava nessa secção e que hoje vive em Inglaterra. E contou-me que a minha avó, o meu avô e as crianças — ela até sabia as alcunhas — iam lá buscar artigos para uso pessoal.

Ficou chocado ao saber estes pormenores? 
Vou contar-lhe uma história. Na minha juventude, havia um casaco de que eu gostava especialmente por ser muito quente, leve e confortável. Quando fiquei com o espólio do meu avô encontrei uma fotografia do meu pai em miúdo a envergar exatamente o mesmo casaco. Então pensei: há algo escondido nesta fotografia. Passado algum tempo, no Memorial do Holocausto, nos Estados Unidos, deparei-me com documentos a atestarem que a minha avô ficara com o casaco de um miúdo que chegou a Auschwitz em 1942. Percebi que tinha andado a usar o casaco de um miúdo gaseado. Lembro-me de que a minha avô estava muito orgulhosa dele e até comentou à minha mãe: “É da melhor qualidade que se pode arranjar.”

Quem era o seu pai? 
Era um tipo cruel. Nunca nos permitiu ter as nossas opiniões ou gostos. Tínhamos de obedecer.

Era como a mãe dele? 
O meu pai era assim: se estivéssemos perante uma parede branca e eu dissesse “esta parede é branca”, o meu pai respondia: “não, é vermelha”. Se insistíssemos, batia-nos até mudarmos de opinião. A minha mãe tentou suicidar-se mais de dez vezes. Todas as pessoas que o conheciam, com quem falei no âmbito da minha pesquisa, referiram que o meu avô era um pai amável, que nunca batera nos filhos. Que chegava ao fim do dia do seu trabalho no campo principal ou em Birkenau, trocava a roupa militar por roupa normal e andava por aí a brincar com eles no jardim. Ora, eu nunca tive isso na minha infância com o meu pai. Então, como chegou ao ponto de nos bater? Poderíamos dizer que a culpa está na forma como cresceu, mas ele até teve uma infância divertida.

Que resposta encontrou? 
Tenho a certeza de que o momento chave foi aos 17 ou 18 anos, quando a pressão da minha avó sobre ele aumentou. Nessa altura, ela decidiu não seguir as instruções que o meu avô elencou em 16 cartas escritas desde a cadeia, em que lhe pedia para não continuar a educar os filhos naquela ideologia, e para mudar de nome e de vida — ele sabia que não voltaria a casa e que o iriam enforcar. A minha avó nunca seguiu estas instruções. Manteve contacto com os ex-guardas e oficiais de Auschwitz, e negou até ao fim que tudo aquilo — os judeus, os aliados, Nuremberga — se tivesse passado. Então, como é que sentiu necessidade de dizer aos filhos que lavassem bem os morangos para lhes retirar as cinzas, se o forno crematório afinal nunca funcionou? Não faz sentido. Qualquer pessoa minimamente inteligente percebe isto, mais ainda se tiver visitado Auschwitz e tiver confirmado a proximidade da casa deles em relação aos fornos crematórios. São 200 metros. Quem estivesse dentro do jardim podia vê-los.

AUSCHWITZ A piscina da villa de Rudolf Höss, avô de Rainer, em Auschwitz. Por trás vê-se o forno crematório

D.R.

O seu pai deve tê-los visto. 
O meu pai e o resto das crianças. Sei disso por conversas com prisioneiros e com outros guardas. E também pelo que Oskar Groening, o contabilista de Auschwitz recentemente julgado, me disse: que toda a gente sabia o que se passava lá. Ele até se recordava que o meu tio Klaus [irmão mais velho de Hans-Jurgen, pai de Rainer] era um rapaz muito cruel. Sempre que alguém não seguia as suas ordens, ameaçava contar ao meu avô.

Que história lhe contaram a si quando era criança? 
Lá em casa não se falava disto. Havia silêncio e havia um segredo. A minha mãe só soube a que família pertencia o marido três anos depois de se ter casado. Nessa altura, decorriam os julgamentos de Frankfurt e a tia da minha mãe apareceu em casa com o jornal, onde havia um artigo sobre Auschwitz e uma grande foto de família. A minha mãe ficou chocada e à noite confrontou o meu pai. E ele perguntou: “Tens algum problema com isso?” Logo a seguir a minha mãe comprou dois livros: a autobiografia “Eu, Comandante de Auschwitz”, que o meu avô escreveu na prisão, e um outro livro escrito por um prisioneiro que trabalhava no Kommandantur. Num deles, a minha avô anotou em quase todas as páginas: “Isto é mentira.”

Quando se apercebeu pela primeira vez quem era o seu avô Rudolf Höss? 
Aos 15 anos, quando li o livro “Eu, Comandante de Auschwitz”. Eu já sabia que esse livro existia e tinha pedido ao meu pai para o ler, mas ele ficou furioso e não deixou. Guardou-o no seu escritório, uma área restrita na qual não podíamos entrar sem um castigo. Quem me deu a possibilidade de o ler foi a minha mãe, aproveitando uma viagem de negócios do meu pai à Suécia. Disse-me: “Deixa-o ir e assim tens de 5 a 7 dias para o ler.” Avisou-me também que o livro não ia ser o que eu esperava. No dia em que o meu pai partiu, esperámos até à noite, ela entrou no escritório, tirou o livro e deu-mo. Li-o em poucos dias. Fiquei muito chocado, mas explicou muita coisa em relação ao caráter do meu pai.

Nunca tinha sequer desconfiado? 
Na minha juventude não era comum falar-se na escola da II Guerra Mundial. Porém, quando eu tinha 12 anos, um professor percebeu a cegueira em que eu vivia e levou-me a Dachau, onde o meu avô também tinha trabalhado. Foi a primeira vez que tive contacto com um campo de concentração. Nunca tinha lido a palavra Auschwitz num livro de História, por exemplo. Em Dachau havia uma placa com o meu nome, e à noite interroguei o meu pai sobre isso. Ele afirmou ser um engano. Deu uma explicação tão clara, tão segura! Disse que eles tinham cometido um erro ao soletrá-lo, que escreveram 'Höss' quando deviam ter escrito 'Hess'. O assunto ficou arrumado, pois todas as crianças acreditam no que os pais dizem. Depois veio a altura em que comecei o meu treino como cozinheiro e um dia cheguei a casa e vi aqueles dois livros com o nome 'Höss' na prateleira. De imediato lembrei-me da placa em Dachau e pensei: meu Deus, escreveram um livro com o mesmo erro! Peguei nele apenas para verificar isso, mas o meu pai saiu de repente do escritório, agarrou-me na mão e disse que esse livro não era para ler. Então fui ter com a minha mãe à cozinha, contei-lhe aquilo, e vi no seu rosto que alguma coisa se passava. Que havia algo escondido.

INFÂNCIA No jardim da moradia em Auschwitz, com o forno crematório por trás

D.R.

Há um episódio da sua infância em que foi convidado a uma festa judia. Quer contar? 
Tinha uns dez ou onze anos, antes de o meu pai me mandar para o colégio interno — foi nessa altura que a minha mãe fez dez tentativas de suicídio. O pai do meu melhor amigo convidou-me a celebrar a Pesaj [Páscoa judia] em casa dele, e eu nunca tinha ouvido essa palavra antes. A minha família nunca foi religiosa, eu não fazia ideia do significado das palavras 'católico' ou 'judeu'. Fui pedir autorização ao meu pai e fiz o ritual de sempre: pus-me à sua frente com as mãos atrás das costas, à espera de permissão para falar. Quando o fiz, ele saltou da cadeira, partiu-me o nariz e trancou-me no quarto. Eu não fazia ideia do que tinha acontecido, mas era normal e não pensei no assunto. À noite apareceu ainda furioso e gritou: “Não te autorizo a falar com esse lixo judeu.” Na manhã seguinte havia um sinal na frente da nossa casa a dizer “Judeus não são bem vindos”, que a minha mãe retirou de imediato. Ela também tudo fez para que eu não perdesse o meu melhor amigo.

Que reação teve quando aos 15 anos leu finalmente a autobiografia de Rudolf Höss? 
Fiquei extremamente chocado, pois percebi de que família fazia parte. Aos 15 anos já conseguimos pensar e relacionar as coisas, e o grande puzzle começou a fazer sentido. E percebi logo que sair de casa era a única hipótese para mim, a única possibilidade de sobreviver à minha família. Não sei o que teria acontecido se não tivesse ido para um colégio interno. Não sei se não teria acabado como o meu pai. Quando saí de casa não olhei para trás e perdi todo o contacto com o lado paterno. Sei que é horrível de se dizer, mas eu sobrevivi a essa família.

Voltou a ver o seu pai?
Deixei de o ver definitivamente em 1985. Não tive mais contacto com ele. E nunca quis falar disto com ele — acredito que cada palavra que ele dissesse seria uma mentira. Em 1983, a minha mãe divorciou-se e começou a viver a melhor parte da sua vida. E eu casei-me em 1984.

Como foi a sua vida após sair de casa? Como se encontrou a si próprio? 
Tive a ajuda daquele que foi o meu patrão durante o meu estágio como cozinheiro, a quem gosto de chamar o meu 'mentor'. Ele próprio era uma produção da II Guerra Mundial — tinha nascido num Lebensborn, casas criadas por Himmler onde mulheres e SS nascidos loiros e de olhos azuis se encontravam só para procriar e fabricar bebés 'de raça' ariana — e percebeu o significado da minha herança. Quando saí de casa meti-me na droga e no álcool, e durante ano e meio fui um tipo muito agressivo. O meu mentor ajudou-me a sair deste ciclo e a tornar-me no que sou hoje.

Li que teve um filho muito cedo. 
Sim, tive um filho aos 17 anos. O meu pai chamou-lhe bastardo e não autorizou que lhe fosse dado o nome Höss. Deu-me um estalo, eu fiquei de joelhos, levantei-me e pela primeira vez bati-lhe de volta. E disse-lhe que nunca mais me iria bater na vida. Esse foi o momento em que tudo mudou. Para ele deve ter sido também o pior momento da sua vida, porque não pôde quebrar o filho.

E quando começou a pesquisar, a escavar no passado familiar? 
Comecei aos 20 anos. Não foi fácil, era preciso ir aos arquivos, e pode imaginar o que era ter de apresentar o meu BI. Eles liam o meu nome e, mesmo tendo a informação que eu procurava, diziam-me que não havia lá nada. Na Alemanha desse tempo tudo isto era um segredo de que ninguém falava. Então o meu mentor passou a pedir a informação por mim, eu lia-a e tirava as minhas notas, e ele devolvia os documentos aos arquivos.

Quando é que renuncia a tudo em prol do ativismo? 
Eu era cozinheiro, chefe de pastelaria, e tinha o meu próprio negócio, que fundei pouco depois de acabar o curso. E há 15 anos sofri um ataque cardíaco. Senti que esse era o sinal para mudar alguma coisa, o momento de fazer algo que realmente me importasse. Eu já tinha sido convidado para conversas em escolas, nomeadamente nas dos meus filhos, para falar sobre a minha família e sobre a importância de lutar contra o extremismo. E cada vez mais escolas me chamavam para falar. Não era fácil ter um restaurante, um trabalho, e fazer as duas coisas. Quando tive o ataque, vendi a minha parte aos meus sócios e comecei a fazer isto mais a sério. Hoje faço atividades numa média de 80 escolas por ano.

Pergunto-lhe de novo: porquê? 
Para mudar alguma coisa. Se não fizermos nada, não podemos chorar no final, quando tudo se desmoronar. Temos que agir naquele momento em que percebemos que as pessoas estão a ser discriminadas pela cor da pele, pela sua sexualidade ou pelo que seja. Como podemos permitir isto? Por outro lado, faço-o pelas pessoas que sofreram às mãos da minha família.

É uma forma de reparação? 
Claro, não há outra hipótese. O ser humano tem duas formas de lidar com estas coisas: negando-as ou enfrentando o problema. Depois de tudo o que passei na juventude, o caminho para mim só podia ser enfrentá-lo. Mostrar como estas sementes de ideologia estiveram a crescer nestas famílias por mais de 50 anos. Que nelas nunca nada mudou. Se tivesse conhecido o meu pai, nunca teria acreditado que ele era um tipo capaz de tanta crueldade. As pessoas adoravam-no, achavam-no amigável e divertido. Mas quando ele fechava a porta de casa e ficava lá dentro, ele era como um pequeno Hitler.

A jornalista Alexandra Senfft — ela própria neta do nazi Hanns Ludin — disse que a Alemanha lidou bem com o passado nazi em termos coletivos, mas faltou fazer o trabalho dentro das famílias. 
Concordo a 100 por cento. Nós, os alemães, investigámos 90 por cento dos crimes perpetrados pelos nazis. Procurámos, pesquisámos, sabemos do que se trata. Porém, não sabemos o que se passou dentro das famílias. Por que é que isto aconteceu? Porque ninguém quer estar na posição em que um advogado ou um juiz lhe diga: “O teu pai ou o teu avô foi guarda em Auschwitz.” Então ficam calados, não falam do assunto e vivem uma boa vida. Recentemente tivemos na Alemanha os julgamentos de Oskar Groening [contabilista de Auschwitz] e Reinhold Hanning [guarda do mesmo campo], condenados a quatro e a cinco anos de prisão, respetivamente. Demorou 60 anos para que a verdade sobre estes homens viesse ao de cima. Durante 60 anos o Governo não pôs os olhos neles. E tiveram uma boa vida. Para mim era importante que a nossa juventude os ouvisse. Quantas vezes é possível ouvir um perpetrador nazi a contar como os nazis faziam a seleção na rampa? Também foi importante para os que acham que o Holocausto é uma falsidade judaica. De repente tinham alguém como Groening a relatar o que viu e a dizer que estava orgulhoso de usar um uniforme das SS. Que aquilo aconteceu e que se pode repetir em qualquer parte do mundo.

Como foi a primeira vez que visitou Auschwitz? 
Já lá estive 28 vezes e a experiência é sempre a mesma. Quando estou a chegar e vejo o primeiro sinal na estrada — Auschwitz — tenho consciência do que vem a seguir e do que lá se passou. E não posso tocar em nada, não quero ter nenhuma ligação pessoal com o meu avô. Se estiver em frente a um dos blocos, espero que alguém saia para entrar, não abro a porta por mim mesmo. Porque os seus crimes estão inscritos em todas as paredes daquele lugar. Auschwitz é para mim o equivalente a visitar a casa dos meus avós, e isso faz-me sentir sempre envergonhado. Tenho vergonha do que o meu avô fez, de que não se tenha questionado se o que fazia estava bem ou mal, e de que não tenha mostrado arrependimento perante as vítimas depois da guerra, quando estava na prisão. E de fazer parte de uma família assim. Sempre que visito Auschwitz, a primeira coisa que visito é a forca, onde o meu avô morreu em 1947.

Em que circunstâncias visita o campo atualmente? 
Às vezes vou com estudantes, outras para filmar documentários, ou com amigos que não querem ir sozinhos. E fui muitas vezes com sobreviventes. Quando o visito com estudantes, levo-os primeiro ao campo principal e depois a Birkenau. Em Birkenau, vamos primeiro à torre vigia, para verem a vastidão. Depois caminhamos pelo interior, uma hora, duas horas. Tento ir com eles no inverno, em fevereiro ou em outubro. É uma experiência mais marcante. Eles apercebem-se da sorte que têm ao vestirem todos aqueles casacos, botas e luvas. Peço-lhes para tirar os casacos e se tiverem coragem as botas. Nós não fazemos ideia do que era andar por aí de pijama em qualquer estação do ano, quase sem calçado. Por vezes paramos na linha do comboio que entra em Birkenau e eu pergunto-lhes se ouvem algum pássaro a cantar. Digo-lhes: “É natural, vocês estão no maior cemitério do mundo.” É uma forma de eles terem a sua própria imagem do que aconteceu. Também fiz isto com os meus filhos — tenho quatro, dois rapazes e duas raparigas, de 33, 30, 27 e 21 anos. Sempre lhes disse a verdade, nunca houve segredos. Tiveram acesso a toda a minha pesquisa.

Sei que construiu uma relação forte com muitos sobreviventes. Quando começou a contactá-los? 
Há uma década. Não foi fácil, demorou anos. Escrevi algumas cartas e alguns responderam. Fi-lo porque queria dizer-lhes o quanto lamento o que aconteceu. Eu tenho este DNA em mim — na verdade, todos temos um pouco de Rudolf Höss ou de Hitler. A questão é como controlá-lo. Como controlar o nosso demónio. Todos herdamos um pequeno assassino de massas. E se o deixamos sair, ok, é uma opção que fazemos.

Não sei se concordo consigo.
Nunca esteve tão zangada que quisesse matar alguém? Se me disser a verdade, terá de dizer que sim. A questão é se o faz ou não. Mas se tiver pessoas que a instruam, por meio do medo, a fazê-lo...O medo é uma arma poderosa. Assim como o ódio. Hoje isso é visível nas redes sociais e na sua capacidade de espalhar o medo e o ódio pelo mundo em microssegundos. E os discursos de ódio não são apenas ouvidos por pessoas estúpidas.

Que reações teve dos sobreviventes que conheceu? 
Foram muito amigáveis comigo. A única coisa que me perguntam é: és verdadeiro? Há pouco tempo estive na Hungria a convite da comunidade judaica. Houve um encontro de sobreviventes, organizado pelos familiares, e eles tinham medo de mim. Alguns estavam tão assustados que tremiam, porque as velhas memórias estavam a voltar. Um deles aproximou-se de mim e disse: “Sabe por que estou tão assustado? Eu era um rapaz de 14 anos, recém-chegado a Auschwitz vindo de Buchenwald, e tinha imensa fome, pois nos últimos dias apenas comera uns pedaços de pão. Alguém me deu uma tigela de sopa, que estava muito quente e eu tentava beber aos poucos. O teu avô caminhava junto à linha e viu-me. Veio direto a mim e deu-me dois estalos, à esquerda e à direita, e gritou: 'não comas à minha frente.' Sinto esses estalos até hoje.”

Sei que é o 'neto adotivo' de uma sobrevivente, Eva Moses Kor. Como é que isso aconteceu? 
Foi muito simples. Eu tentei caçá-la [risos]. Mandei-lhe um e-mail, pedindo-lhe para conversarmos, pois tinha algumas perguntas para lhe fazer. Contei-lhe logo quem eu era e ela respondeu que em 2014 iria a Auschwitz com um grupo. Encontrámo-nos pela primeira vez na cafetaria do museu, no campo principal, e ela disse: “Antes de te responder a qualquer pergunta, deixa-me olhar para os teus olhos azuis.” Ficou ali sentada por uns minutos a olhar-me nos olhos e depois disse: “Ok, podes perguntar.” A minha intenção é que ela fosse testemunha no julgamento de Groening, e ela aceitou. Na altura, viajei muito com os advogados por causa deste julgamento, pagando tudo do meu bolso - quando as pessoas dizem que me sirvo do meu nome para ganhar dinheiro eu até me rio. Um dos advogados, Kumad Ali Mohammed, é muçulmano. Foi a primeira vez que um muçulmano foi advogado de um sobrevivente do Holocausto. Estes são os pequenos sinais que damos, de que somos uma só sociedade. Todos vivemos neste planeta e não há forma de escondermos isso. Voltando a Eva, depois de a conhecer a nossa amizade cresceu. Ela costuma dizer aos jornalistas: “Fiz o que o seu avô nunca pôde fazer, pu-lo do meu lado.”

Tatuou os números de prisioneiro de alguns sobreviventes. Porquê? 
São aqueles com os quais tenho contacto e que me ajudaram, como Eva. É a minha forma de lhes mostrar respeito. Como alguns já morreram, ficarão comigo até eu morrer. Com sorte vou dar-lhes mais 50 anos. E lembram-me sempre qual a minha tarefa, a minha missão — espalhar todas estas histórias. Digamos que é o meu memorial privado.

Ser um Höss define-o? 
Depende da forma como nos instruímos a nós próprios. Há primos meus, da minha idade, que acreditam que o meu avô era uma boa pessoa. Dizem que foi um bom soldado, cheio de coragem, mas como é que um assassino de massas pode ser um bom soldado? Isto é o que me assustou desde o início - essa parte em que, de manhã, ele vestia o uniforme, guardava a pistola e deixava a mulher e os filhos, e ia para a porta do campo matar outras famílias com os seus filhos. Sem qualquer emoção. E à noite voltava para casa, esperando que a família tivesse tido um dia divertido.

Mas o que representa o seu nome para si? 
Um legado cruel. E a possibilidade de que esse nome, na família que formei, seja algo de bom. Se as pessoas falarem de Rudolf Höss e falarem de mim, estarão a falar de pessoas completamente diferentes. O meu nome é uma arma contra aquilo que um dia representou. Não tenho ilusões — sei que não vou poder mudar os crimes que o meu avô cometeu. Mas não fui cobarde. Não quero ser cobarde. E é curioso, porque ao longo de todos estes anos, não houve um só representante da extrema direita que quisesse discutir isto comigo.

BUDISMO E PSICANÁLISE

Copiado sem alteração ou autorização daqui: Ciência Contemplativa ponto org


BUDISMO E PSICANÁLISE

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A busca pelo conhecimento de si e a abordagem holística do ser humano e do mundo são apenas alguns dos aspectos comuns entre psicanálise e budismo.
O que pode haver em comum entre uma tradição religiosa de 25 séculos nascida na Índia em uma sociedade de castas altamente hierarquizada e marcada pela visão holística do mundo e uma prática clínica inventada na Europa há pouco mais de 100 anos, surgida como expressão de uma cultura laica, racional e individualista?A busca pelo conhecimento de si e a abordagem holística do ser humano e do mundo são apenas alguns dos aspectos comuns entre psicanálise e budismo.
Se prestarmos atenção aos percursos históricos, aos vocabulários, a práticas e rituais e a certos objetivos específicos desses dois campos, podemos ver budismo e psicanálise como universos muito distintos: de um lado espiritualidade, contemplação e desapego ao eu, de outro teorias leigas, dispositivos clínicos e uma prática voltada para a ampliação da capacidade normativa do sujeito. No entanto, um olhar mais atento perceberá que por trás das aparentes diferenças há algumas afinidades muito importantes.
Podemos citar pelo menos quatro:
1. O ponto de partida na experiência: tanto o budismo quanto a psicanálise partem da descrição e compreensão da experiência para desvelar a natureza , o funcionamento do eu e para encontrar formas mais interessantes de lidar com os problemas. Aí se percebe um colorido fenomenológico comum a ambas as tradições porque seu centro (o que está sempre em questão, sendo observado e descrito) não é uma suposta natureza objetiva, acabada e independente mas a experiência de si, do mundo, das relações com os outros, o modo como vivenciamos e interagimos com esses fenômenos.
2. A ênfase na ação: embora tenham produzido teorias complexas e arquiteturas conceituais muito sofisticadas, budismo e psicanálise são fundamentalmente saberes ligados a práticas, formas de intervir na existência. Tal como a filosofia era vista na Antigüidade, budismo e psicanálise são hoje instrumentos para agir no mundo, mais do que para simplesmente conhecê-lo. De ambos se poderia dizer o que o filósofo francês Georges Canguilhem disse a propósito da produção de conhecimento na medicina: o pathos precede o logos. É porque sofremos que somos instados a criar formas de descrever o eu, o mundo e a vida de modo que possamos transformar nossa existência, tornando-a mais interessante e digna de ser vivida.
Sofrimentos nos impulsionam a procurar maneiras de descrever o funcionamento humano e a relação com o mundo; alguns tentam encontrar as respostas na religião.
3. O horizonte ético: em ambas as tradições, a reflexão teórica e as práticas delas decorrentes apontam necessariamente para uma mudança nas referências que configuram a maneira de conceber e viver a vida. O conhecimento de si está a serviço da transformação de si, voltada para a construção de uma vida mais criativa e livre de condicionamentos. Tanto no budismo quanto na psicanálise não faz sentido separar epistemologia e ética. Conhecer muito bem a história e os conceitos da doutrina de Buda não faz de ninguém budista. O que define alguém assim é a sua experiência (busca da iluminação por meio da compreensão do vazio e do cultivo da compaixão) e não os fundamentos teóricos que alguém é capaz de dominar. De modo semelhante, é possível que alguém freqüente o divã por anos a fio, a ponto de dominar o uso dos conceitos freudianos para descrever a si mesmo e suas relações com a vida sem que isso signifique que a análise tenha de fato ocorrido. Esta só acontece quando tem lugar uma reorganização psíquica que testemunha uma transformação no modo como o sujeito se posiciona frente a seu desejo, a seus ideais e às expectativas e injunções que incidem sobre ele.
4. A perspectiva ecológica: tanto o budismo como a psicanálise rompem dualidades muito típicas do modo de pensar tradicional no Ocidente, que opõe sujeito e objeto, cérebro e mente, corpo e ambiente, interno e externo, eu e outro. Na perspectiva dos herdeiros de Buda e de Freud, cérebro, mente e mundo são vistos não como realidades independentes, mas como aspectos ou pontos de vista de uma mesma realidade, descritos com vocabulários diferentes. Estão, portanto, completamente imbricados uns nos outros, interagindo e influindo reciprocamente o tempo todo. A mente ou a experiência subjetiva emerge da ação do corpo no ambiente, é inscrita corporalmente e está ancorada no mundo físico e simbólico com o qual sustenta uma relação de afetação recíproca permanente. Budismo e psicanálise são, portanto, incompatíveis tanto com descrições mentalistas (nas quais o corpo é mero suporte da atividade do espírito) quanto com o reducionismo materialista, no qual a experiência de si é reduzida a seus correlatos biológicos ou físicos (depressão nada mais é do que disfunção de neurotransmissores).
É curioso observar como a ênfase na ação e nesta visão holística ou ecológica vem encontrando ressonância e tendo sua importância confirmada por estudos em várias áreas do conhecimento científico: investigações empíricas da psicologia do desenvolvimento, estudos sobre percepção com base nas teorias ecológicas do self, pesquisas neurocientíficas sobre a plasticidade neuronal e o impacto do ambiente na arquitetura cerebral, entre outros.
Além disso, budismo e psicanálise são campos plurais que abrigam tradições, movimentos e correntes de pensamento e de prática que se diferenciaram bastante. Depois de 25 séculos de existência, o primeiro desenvolveu grande número de escolas, hoje distribuídas basicamente em três grandes linhas. A psicanálise, com seus cento e poucos anos, também se desdobrou em algumas vertentes, das quais as mais relevantes atualmente são a lacaniana, a winnicottiana e a kleiniana.
Para a filosofia budista, tudo o que existe é impermanente: pessoas, objetos, experiências e sentimentos; quando mudam as causas, os fenômenos cessam.
AS TRÊS MARCAS DA EXISTÊNCIA
Para o budismo, a análise da experiência de si, ou do eu, deve começar pela compreensão das três marcas da existência: a primeira é a impermanência (anitya), ou seja, a transitoriedade e a natureza condicionada de todos os fenômenos (do eu, dos objetos do mundo, de qualquer experiência, ou sentimento). Tudo o que existe é impermanente devido a sua natureza composta, o que significa que tudo depende de causas e condições para existir. Se essas cessarem, cessam também os fenômenos. Tudo está sujeito a aparecer e desaparecer.
A ausência de substância inerente, ou de existência independente, é a segunda marca da existência (anatman), também traduzida por não-substancialidade, não-essencialidade, ou não-eu. Como temos dificuldade em lidar com a impermanência e a não-substancialidade dos fenômenos e das formas, nos agarramos a eles, acreditamos e apostamos em sua permanência e substância.
Este apego é fonte de dukkha, outra marca da existência e a primeira das Quatro Nobres Verdades – pedra fundamental do budismo. Dukkha tem sido traduzido como sofrimento, mas a melhor sinônimo talvez seja insatisfatoriedade. A existência é inevitavelmente experimentada de forma alternada como boa ou má, feliz ou triste, promissora ou decepcionante. Tanto na alegria como na felicidade se encontram fontes de possíveis tristezas e dores (a perda de um ser querido, o fim de um amor). A experiência cíclica de satisfação e insatisfatoriedade é inevitável, já que desejos e anseios surgem naturalmente como decorrência do contato dos sentidos com o mundo ao redor. Este movimento (trishna, que significa sede, ânsia) compõe a segunda das Nobres Verdades (a causa da insatisfação), que é sucedida pelas duas outras Nobres Verdades: a percepção de que é possível superar o ciclo de sofrimento cíclico, e a compreensão do meio para alcançar esta liberação: o Caminho Óctuplo.
Com base nestas noções fica claro que para o budismo o eu, como todos os fenômenos, não tem substância, é uma combinação de vários elementos e tem uma natureza condicionada, sem essência e mutável. Trata-se de uma experiência em movimento, não uma entidade independente. Resulta da articulação de cinco elementos, os chamados cinco skandhas (amontoado, pilha, coleção): a forma (materialidade física do corpo), as sensações (causadas pelo contato com o mundo, ao qual não somos neutros), as percepções (discriminações decorrentes desses contatos), as formações mentais (disposições, conceituações, tendências da ação) e a consciência. Os skandhas são fluxos da existência que, uma vez articulados, produzem a experiência de si. Embora descritos separadamente, eles são na verdade um mesmo movimento, ou partes de um processo em curso. O eu, portanto, é vazio de essência própria. Aquilo que percebemos e veiculamos como personalidade, idiossincrasias, identidade e compulsões são na realidade efeitos da combinação desses agregados. É por causa de nossa ignorância (avídya, não-visão) sobre a natureza condicionada dos fenômenos que somos levados a atribuir solidez e permanência ao eu e a suas propriedades.
Para o filósofo Slavoj Zizek o budismo é a prática ideal para os tempos neoliberais:cada vez mais se aproxima das neurociências e já não é visto como fenomêno exótico.
“Estudar o budismo é estudar o eu; estudar o eu é esquecer-se do eu; esquecer-se do eu é reconciliar-se com todos os seres.” A frase atribuída ao grande mestre zen do século XIII Dogen condensa muitas noções centrais do budismo: seu núcleo e ponto de partida é a análise da experiência (e seu aspecto mais sensível e fundamental é a experiência de si); ao compreender sua natureza não-substancial e transitória, abrimos caminho para uma transformação da experiência, na qual já não nos submetemos cegamente às causas e aos efeitos que nos atingem incessantemente; conquistamos um grau maior de liberdade em relação aos nossos próprios condicionamentos; por fim, ao reconhecermos a interligação e interdependência de todos os fenômenos e de todos os seres, podemos nos posicionar de modo diferente em relação a eles, sendo mais livres, mais criativos e mais compassivos. Assim, conhecimento, prática e posicionamento ético se imbricam naturalmente.
FICÇÃO DO EU
Para Freud, o eu é uma ficção necessária à ação. Em todas as suas versões, a psicanálise se baseia no desenvolvimento complexo dessa idéia. Na descrição freudiana, o ser humano é um animal que nasce prematuramente, em condição de dependência absoluta, desde cedo busca o amparo e a proteção necessários à sobrevivência, e é instado a responder a solicitações e injunções dos meios físico, biológico e cultural. O complexo processo de constituição de um eu capaz de se reconhecer como sujeito frente aos outros começa com os primeiros movimentos e ações do bebê, passa pelo mergulho da criança no universo das significações propiciadas pelo equipamento lingüístico e pela conquista de um lugar na cadeia de gerações e na divisão dos sexos e segue por toda a vida, ao longo da interminável trajetória de construção de narrativas e identificações com as quais o indivíduo dota de sentido sua existência pessoal.
Alguns estudiosos dizem que somos montagens, arranjos sintomáticos mais ou menos bem-sucedidos.
A experiência de si, aos olhos da teoria freudiana, é o resultado complexo, mutante e inacabado de um equilíbrio instável entre um enorme conjunto de fatores, que vão das exigências conflitantes de instâncias internas (id, ego, superego), às difíceis mediações entre desejos inconscientes e normas sociais internalizadas, mecanismos de defesa contra a angústia, necessidades psicossomáticas e demandas produzidas culturalmente, e assim por diante. O eu da psicanálise é, portanto, fragmentado, governado por forças que não domina, uma montagem mais ou menos bem-sucedida que leva o sujeito a agir no mundo, buscar satisfações e lidar de alguma maneira com o desamparo, a angústia e o desejo. Ele é, para usar uma expressão do filósofo Daniel Dennett, um centro de gravidade: não tem substância, tudo nele deriva dos efeitos produzidos pelas interações com os outros aspectos significativos de sua história, com o ambiente natural e simbólico que o circunda, com as expectativas e desejos projetados sobre ele (mesmo antes que tivesse nascido, no desejo inconsciente dos pais). O eu é uma imagem (daquilo que vejo refletido no olhar do outro, daquilo que suponho poder causar no outro) e uma trajetória (de identificações, de configurações sintomáticas, de posicionamentos subjetivos frente aos outros) que resultam dessas interações e permitem ao sujeito projetar-se em um futuro.
Freud definiu a psicanálise como uma teoria do funcionamento subjetivo, um método de investigação da vida mental e uma forma de tratamento do sofrimento psíquico. Apesar da origem médica, ele sempre recusou a subordinação de sua criação às expectativas curativas da psicologia e da medicina. Em sua abordagem da experiência subjetiva não há lugar para uma normalidade cuja restituição seria o objetivo da prática clínica. Como somos em verdade montagens, arranjos sintomáticos mais ou menos bem-sucedidos, o que o dispositivo analítico pretende não é a simples redução ou eliminação de sintomas ou do sofrimento (isto se consegue de muitas outras maneiras, de sugestão a medicamentos), mas uma ampliação da normatividade do sujeito, ou seja, de sua capacidade de se reposicionar subjetivamente, de ser mais espontâneo e criativo na vida de que desfruta, não se fixando excessivamente a imagens do eu, respostas sintomáticas ou estereotipias da ação que limitam e estreitam seu horizonte existencial.
Este reposicionamento é alcançado na medida em que o dispositivo analítico oferece ao sujeito as condições para que ele se reconheça como autor de sua própria existência. Ao implicar-se no próprio sintoma que aparecia antes como um alien estranho e desconhecido a assombrá-lo, o sujeito amplia a percepção dos vários elementos e fatores que incidiram sobre seu percurso pessoal, sobre o papel de suas escolhas (conscientes ou inconscientes) na construção do eu que ele é, da vida que experimenta e do mundo que habita. Assim ele se habilita ao desprendimento de si, a ocupar sua existência com gestos mais espontâneos e menos autocentrados, mais criativos e menos auto-indulgentes. Deste ângulo, portanto, percebe-se que a psicanálise e o budismo se afirmam, por caminhos distintos, como saberes que visam a transformação da existência e como práticas que buscam a liberdade.
INTERESSE RENOVADO
Budismo e psicanálise ocupam posições diferentes no cenário contemporâneo. O primeiro é a religião ou prática espiritual que mais se expande no mundo, impulsionada por diversos fatores: a diáspora tibetana que espalhou mestres treinados por todo o Ocidente, o ativismo cosmopolita do Dalai Lama (a despeito do cerco promovido por autoridades chinesas), o apelo que as práticas corporais das espiritualidades asiáticas têm para culturas que privilegiam a atenção e o cuidado com o corpo, a posição não proselitista e não dogmática adotada pelos praticantes, a crítica às pretensões racionalistas da cultura ocidental etc.
Nas últimas décadas o budismo tem sido também alvo do interesse de certos ramos de ponta da ciência, em especial do campo das neurociências, interessadas em explorar a enorme riqueza de observações empíricas que sustentam os conceitos budistas sobre a mente. Porém, de um modo que não chega a ser surpreendente, o sucesso acarreta também embaraços: em muitos contextos a prática budista virou moda. É chique deixar-se fotografar em posição de lótus e exibir em casa estátuas ou imagens do seu repertório iconográfico. Há 25 séculos a serviço do desapego aos objetos e ao desprendimento de si, o budismo se vê freqüentemente transformado em técnica de otimização do desempenho com vistas ao sucesso individual. O filósofo Slavoj Zizek chegou a afirmar, provocativamente, que o budismo (do mesmo modo que outras espiritualidades orientais como o taoísmo) havia se tornado a ideologia ideal para os tempos neoliberais. De qualquer modo, ele vive hoje um processo de intensa difusão na cultura ocidental, tem sido menos visto como fenômeno asiático exótico e vem dialogando cada vez mais tanto com religiões ocidentais quanto com as ciências, em especial as neurociências.
A psicanálise, por sua vez, vive um momento de transição. Passada a década de 90, em que sofreu todo tipo de vaticínio sobre sua morte por obsolescência teórica e inutilidade prática, recrudesce o interesse por ela, tanto do lado das neurociências como da psicologia do desenvolvimento e as ciências da cognição. Abrem-se para a psicanálise territórios que haviam permanecido praticamente fechados durante quase todo o século passado, especialmente nos países do Leste europeu e na China. Por outro lado, um reposicionamento de seu lugar vem ocorrendo na sociedade ocidental. Se na cultura psicológica e da sentimentalidade ela ocupou papel de destaque na clínica mental e no campo social, na atual cultura somática e das sensações esse lugar está sendo disputado por outros dispositivos terapêuticos e teorias centrados no corpo e na capacidade de controlar, cognitiva ou quimicamente, disfunções e transtornos que possuem um claro efeito dessubjetivante, na medida em que tendem a desimplicar o sujeito de sua experiência. Hoje a psicanálise tornou-se um dos poucos campos nos quais os indivíduos ainda são interpelados não como meros seres biológicos ou agentes sociais, mas na condição de sujeitos. Por isso ela anda, por assim dizer, na contramão da cultura hegemônica. O que para uns pode parecer uma perda – o fascínio social de outrora se reduziu –, para outros é uma vantagem: a psicanálise retoma cada vez mais o caminho da investigação clínica, fonte mais fecunda de toda sua originalidade e interesse.
O diálogo entre budismo e psicanálise jamais foi tão intenso. Nunca houve tantas oportunidades para exploração de suas afinidades e diferenças. E isso interessa não só a seus praticantes, mas a todos os que se voltam à ampliação da caixa de ferramentas (como diria Wittgenstein) para lidar com a experiência de si e suas vicissitudes.
Única remanescente das primeiras escolas, o budismo Theravada (“caminho dos anciãos”) predomina há séculos no Sri Lanka, Indonésia, Malásia e Sudeste asiático. Suas principais características são a ênfase na vida monástica, na disciplina individual em direção à iluminação e na concepção da natureza humana como obstáculo a ser ultrapassado.
O budismo Mahayana (“grande veículo”) originou-se na Índia e de lá se deslocou, a partir do século II, para a China, onde encontrou o taoísmo. Daí disseminou-se para o leste da Ásia, tendo muita força no Japão, Vietnã e Coréia do Sul. Em contraste com o ascetismo doutrinário theravada, a tradição mahayana tem uma perspectiva mais universalista e inclusiva. Sua ênfase não está na busca individual pela iluminação, mas no esforço do bodhisatva de se dedicar ao objetivo de iluminação de todos os seres. Outra diferença é a concepção mahayana segundo a qual todos os seres têm potencial para atingir a iluminação. A natureza humana não é vista como obstáculo a ser vencido: há uma “natureza búdica iluminada” na humanidade, que precisa, por assim dizer, ser reencontrada por meio do rompimento do véu de aparência dos fenômenos, e não propriamente alcançada pelo esforço de superação. A escola mahayana mais conhecida é o Zen, cujas características essenciais são a recusa violenta a intelectualizações e estratégias gradativas de caminho espiritual. Suas práticas fundamentais são o zazen (meditação contemplativa que visa colocar o praticante em contato direto com a realidade), o uso (na vertente Rinzai) do koans, na busca do satori (realização súbita da iluminação).
O budismo Vajrayana (“veículo do diamante”), ou budismo tântrico, é uma extensão do Mahayana e se caracteriza pela adoção de certas técnicas e práticas próprias. Está presente no Tibete, Nepal, Butão, Mongólia e, com a diáspora provocada pela invasão do Tibete, tem seu centro em Dharamsala, norte da Índia, sede do governo no exílio, de onde o Dalai-Lama projeta sua presença no mundo. Por se caracterizar por um profundo esoterismo, o budismo Vajrayana é cheio de símbolos, imagens e práticas devocionais, além de ensinamentos secretos, passados direta e oralmente pelo mestre ao discípulo. Em contraste com o Zen, algumas de suas práticas são explicitamente voltadas para o exercício ou cultivo da compaixão como a metta-bhavana, uma forma de meditação dirigida ao abandono de sentimentos de apego e aversão e o desenvolvimento da amorosidade ou da fraternidade.
Com a difusão no Ocidente, o budismo tem dialogado com tradições filosóficas locais, resultando na construção de versões contemporâneas e ocidentais, como o budismo agnóstico defendido por Stephen Batchelor, que propõe uma descrição dos ensinamentos budistas de corte mais secular e existencialista que religioso.
ESCOLAS PSICANALÍTICAS
Os três maiores protagonistas no cenário psicanalítico pós-freudiano são Melanie Klein, Donald Winnicott e Jacques Lacan. Cada um desenvolveu o legado freudiano a seu modo, acrescentando contribuições originais na teoria e na clínica. Klein ampliou o alcance da psicanálise ao pesquisar a vida mental dos bebês e propor inovações no tratamento de crianças (como o uso da brincadeira como forma de atingir complexos inconscientes), e ao fundar a análise das relações objetais, centro de sua investigação teórico-clínica.
Winnicott, que inicialmente se alinhava com Klein, aos poucos se desprendeu de sua influência e enfatizou a importância dos primórdios da vida psíquica infantil, uma fase na qual as relações de objeto ainda estão por se formar, decisiva no processo de amadurecimento pessoal. Essa etapa seria anterior às relações ditadas pela lógica pulsional, e seu motor não seria propriamente a sexualidade (uma tese, portanto, que o distingue de Freud), mas outra força econômica do psiquismo: a agressividade primária, mais próxima da vitalidade dos tecidos que das tramas conflitivas interpessoais, que só emergem posteriormente. Leitor e admirador de Charles Darwin, Winnicott construiu uma psicanálise de forte matiz naturalista, em que noções como as de desenvolvimento, maturação e psique-soma são centrais. Tanto na teoria como na prática, sua ênfase está na idéia de continuidade na vida psíquica, em que os traumas são situações nas quais essa continuidade é ameaçada. Sua obra tem sido alvo de interesse renovado nos últimos anos.
Lacan voltou-se para a lingüística de Saussure e para a antropologia de Lévi-Strauss para produzir uma versão estruturalista da psicanálise, com um grande número de inovações teóricas (a tríade real, simbólico e imaginário; o objeto a; a noção de lalíngua etc.) e um remanejamento profundo do dispositivo clínico (o tempo lógico, a lógica do significante). Na perspectiva lacaniana, o que se põe como central na transformação da vida subjetiva é a descontinuidade, a precipitação, o salto – situações traumáticas podem ser constitutivas e não ameaçadoras. Recentemente vem sendo valorizada a última parte de sua obra, em que o estruturalismo e a importância concedida à linguagem cederam lugar a uma reflexão sobre o campo do pré-reflexivo ou do não-discursivo na vida subjetiva.
Veja também em audio: Budismo e Psicanálise

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