APRENDENDO A DESMORONAR





Matt Bieber completou recentemente um mestrado em Estudos Budistas e agora está fazendo um curso para professor de escola elementar. Ele escreve para o blog The Wheat and Chaff. Este texto foi publicado originalmente na Aeon Magazine e traduzido por Alessandra Gusatto. 

Meu TOC tem criado rituais vívidos e dolorosos por anos. Poderia o ritual budista me fornecer meios hábeis para combater isso?

Nossa sociedade gosta de mostrar o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) como um estranho hábito, uma excentricidade besta, mesmo que irritante. Não é. Para a pessoa que está passando por TOC, é uma forma de terrorismo mental.

Este terrorismo assume a forma daquilo que os psicólogos chamam de “pensamentos intrusivos” – pensamentos indesejados, dolorosos ou imagens dolorosas que invadem a nossa consciência, provocando profundo medo e ansiedade. Esta é a parte obsessiva do TOC, e pode surgir na mais mundana das circunstâncias. Sentado aqui digitando, por exemplo, eu sinto às vezes uma modesta dor em meus dedos e minha mente entra em ação: Você está digitando demais e está causando danos permanentes às suas mãos. Sente aquelas irritações pequenas na segunda junta de seu dedo anelar esquerdo? Este é o anúncio de artrite. É assim que começa.

Tudo em torno deste papel picado mental, a tensão começa a surgir – uma maré que ameaça me afogar se eu não agir imediatamente. É difícil enfatizar o quanto isto pode ser sufocantemente claustrofóbico ou apenas o quanto eu estou tentado a fazer para que o sentimento vá embora. E é aqui que os terroristas fazem suas demandas. Digite mais devagar. Ponha seus protetores de pulso. Pare completamente de digitar. Então você não terá que se sentir desta forma. Estas são as “compulsões”, comportamentos rituais destinados a aliviar a ansiedade.

Estes rituais podem ter muitas formas. Para algumas pessoas, aquilo que você vê na tevê – repetidamente verificar para ver se a porta está trancada, contar as letras nas palavras até que um total específico for alcançado, evitar as rachaduras na calçada. Eu experimentei algumas destas, mas para mim, os convites para ritualizar tendem a ser puramente mentais — ruminar infinitamente, revendo mentalmente cenários que produzem ansiedade até que eu encontre uma maneira de vê-los que dissipará minha ansiedade (o que, naturalmente, nunca acontece). O traço comum são os rituais, a promessa que há algo repetitivo e formalizado que eu possa fazer para que as coisas fiquem melhores.

O que nos traz à religião. Como no TOC, o ritual desempenha um papel central em todas as tradições religiosas. Não quer dizer, naturalmente, que o ritual desempenha exatamente o mesmo papel no TOC e na religião. No final das contas, o ritual religioso é uma enorme arena da atividade humana, um meio de expressão para quase todos os desejos, necessidades e vontades do ser humano. Iria muito além da arrogância para mim — alguém de 31 anos, cuja experiência da prática religiosa é largamente limitada ao cristianismo evangélico e ao budismo tibetano —para me pronunciar sobre tudo isso.

Mas eu fui tocado pelo fato de que há uma base comum entre meus rituais privados e os rituais que as religiões inventaram. E pela minha própria experiência, tendo crescido como cristão evangélico e agora praticando osrituais do budismo tibetano, eu compreendi uma coisa. Alguns rituais são projetados para ajudar-nos a nos “manter inteiros”. Outros são projetados para ajudar-nos a desmoronar. Os rituais do TOC são estes primeiros, e assim também são muitos rituais religiosos. Mas a meditação budista oferece uma alternativa radical.

A ansiedade no coração do TOC torna visível todas as certezas e suposições profundas e implícitas que eu confio —e então as destrói. Você pode imaginar debater-se em pânico, o desespero arbitrário — e, sobretudo, a vontade de tocar qualquer coisa que pareça remotamente como um bote salva-vidas.

O que, naturalmente, é o ritual. Acabei de ler o artigo mais vez. Não vai doer verificar outra vez o alarme, vai? Porque não dirigir precisamente no limite de velocidade pelo resto da viagem, que de maneira alguma você pudesse ser parado pela polícia. O ritual não vem necessariamente embalado como um ritual. Ao invés disso, chega em forma de uma medicação contra a dor perfeitamente calibrada, a solução racional para minha confusão e desordem. Quando estou me sentindo um pouco perdido, ela promete fazer com que eu me ache novamente.

Ou seja, os rituais do TOC oferecem restaurar a narrativa interrompida de minha vida, recriar um roteiro no qual todos meus pensamentos, sentimentos e emoções felizes podem ser integrados e o movimento para frente restabelecido.


Nossas mentes não são as salas de comando cognitivas ou a sede central de processamento de emoções que imaginamos.

Como com TOC, também com religião. Muitos dos grandes antropólogos e sociólogos de religião, incluindo Émile Durkheim e Victor Turner, indicaram as maneiras que fazem os rituais religiosos unirem as comunidades. Mas muitos rituais religiosos tentam unificar o indivíduo, para restaurar um sentido de coerência e continuidade. Isto pode tomar várias formas: purificar-se de atos imorais, restaurar um relacionamento danificado através de uma deidade e assim por diante. Nos círculos evangélicos em que eu cresci, a grande ênfase era posta em “se acertar com Deus”, em renascer em Cristo e comprometer-se em “caminhar com Ele”. Fazer isso era um ato decisivo; fazia com que o crente ganhasse um lugar entre os salvos e uma entrada para o céu.

Seja qual for a forma, estes tipos de rituais prometem que não mais ficaremos perdidos, desintegrados. Para ajudar a atingir esta promessa, TOC e a maioria dos rituais religiosos dependem da crença de que há realmente algum tipo da entidade, algo no núcleo de nossa identidade. Os Hindus podem chamar de atman; aqueles que cresceram no ocidente podem preferir “alma”. Seja lá como for chamada, muitas pessoas acreditam firmemente que em algum lugar dentro de nós há um centro, a sede da consciência, a matriz mental que processa as experiências e faz escolhas deliberadas sobre como se mover pelo mundo.

Em contraste com a minha criação evangélica cristã, o budismo sugere que este é um erro profundo, que quando procuramos realmente por tal entidade, um núcleo estável do nosso ser, não há simplesmente nada para ser encontrado.

Ao contrário do TOC, ou dos rituais de minha infância evangélica, os rituais budistas funcionam, não porque nos ensinam como permanecer inteiros, mas porque nos mostram como desmoronar.

Porque o ego sólido é uma ficção, ele requer constante manutenção. Estamos filtrando constantemente nossa experiência — excluindo informação, reprimindo nossos sentimentos e ignorando nossas conexões profundas com outras pessoas — a fim de defender e perpetuar uma compreensão estreita de nós mesmos. Em outras palavras, estamos constantemente nos iludindo sobre quem e o que somos.

Por que, você pode perguntar, alguém se dedicaria a este tipo de auto-decepção? O mestre contemporâneo do budismo tibetano, Chögyam Trungpa Rinpoche, disse que temos medo do que sabemos ser verdade: que quando olharmos para o centro de nosso ser, não encontraremos nada para nos segurar. Em suas palavras, temos medo de não existir.

De acordo com ensinamentos tradicionais budistas, o ser é marcado pela impermanência. Nada — nenhuma experiência, nenhum pensamento, nenhum sentimento, nenhuma forma de auto-conhecimento, e certamente nenhum corpo físico — dura para sempre. E mesmo quando as coisas parecem, elas nunca são autônomas. Ao invés disso, são interdependentes, compostas — e ajudam a compôr — todo o resto.

O Abhidharma – uma coleção de textos tradicionais da psicologia budista, na verdade vai muito além, descrevendo como nossas próprias mentes são compostas de cinco elementos básicos (forma, sensação, percepção, conceito/formação mental e consciência). Em outras palavras, nossas mentes não são as salas de comando cognitivas ou sede central de processamento de emoções que imaginamos. Ao invés disso, a mente é uma etiqueta que se refere a nada em si, mais como uma multidão, que nada mais é do que a junção e interação de indivíduos.

De acordo com a psicologia budista, podemos realmente testemunhar a verdade destas reivindicações observando como nossas próprias mentes funcionam. Rituais e práticas budistas buscam expor os nossos próprios processos mentais — para nos mostrar exatamente como criamos e perpetuamos as ilusões que nos mantêm sofrendo.

A parte central do ritual e da prática budista é, naturalmente, meditação. Há uma variedade enorme de tradições e práticas meditativas dentro e além do budismo, e as novas variações parecem surgir regularmente (particularmente porque o mercado para a espiritualidade oriental explodiu no ocidente). Para ficar claro, então, irei restringir meus comentários a meditação shamatha tradicional como ensinado por Trungpa Rinpoche. (Para constar, há um ano e meio sou um praticante em sua linhagem.)

Na shamatha, o praticante foca simplesmente na expiração, seguindo-a enquanto passa pela ponta do nariz e se dissolve no espaço. Os pensamentos brotam, naturalmente, e quando o praticante nota que sua atenção foi desviada, ele simplesmente observa e retorna à respiração.

Com o passar do tempo, o praticante começa a observar a quantidade absoluta de pensamentos e sentimentos que sua mente está gerando. Ele vê a forma como estes fenômenos mentais têm uma misteriosa vida própria —surgem de lugar nenhum e desaparecem outra vez. Começa a notar que é possível ver pensamentos e sentimentos sem julgar, reagir ou identificar-se com eles.

Quando isto acontece, o praticante começa a observar algumas das histórias que ele conta a si mesmo. Algumas destas são grandes histórias sobre o tipo de pessoa que é, o “significado” de sua vida, e assim por diante. Outras são muito menores — sua narrativa sobre porque deve comprar esta escova de dente ao invés de outra, por exemplo. Mas em ambos os casos começa a ver que estas histórias são compostas simplesmente de pensamentos e sentimentos — como pisca pisca em uma árvore de natal. Ou seja, vê que suas histórias sobre si mesmo também são inventadas. (Praticantes da terapia cognitivo-comportamental contemporânea — CBT —podem achar tais insights familiares.)

E quando reconhece isto, um tipo de “soltar” ocorre. O praticante não somente se identifica menos com seus pensamentos e sentimentos individuais, mas começa também a confiar menos em certas maneiras de compreender a si próprio. Sente menos e menos necessidade de resumir sua experiência, de encurralar sua furiosa tempestade de pensamentos e sentimentos em uma visão estável, permanente de quem é. E como começa a deixar para lá sua constante ânsia e apego por solidez, um sentido mais pleno de quem ele é começa a emergir.

Em um retiro solitário de duas semanas de meditação mês passado, descobri o que acontece quando os dois tipos de rituais colidem: meu TOC, elaborado para agarrar um falso ego (self) e a minha prática budista, projetada para desmontá-lo.

Eu estava em Dorje Khyung Dzhong, um centro de retiros em uma área remota do sul do Colorado. É formado de oito cabines de retiro espalhadas por 400 acres em uma região selvagem intocada. Meu professor e um outro membro de minha comunidade de meditação estavam também lá, em cabines aproximadamente 800 m de distancia da minha. A cada três dias, eu visitava meu professor por uma hora. Fora isso, estávamos cada um por si.

A primeira semana foi de muito foco e intensa. Eu abri e fechei cada dia com uma série de mantras e oferendas; no meio tempo, passei longas sessões meditando sentado e andando. Minha mente estava desacelerando; houve até alguns momentos entre as sessões que notei nem estar pensando, e aquele nada parecia estar faltando.

Entretanto, no sexto dia, comecei a observar uma dor em meus joelhos. (Eu estava cuidando de um leve ferimento no joelho haviam meses, mas as coisas tinham ido bem nos vários dias anteriores.) Eu não era capaz de dizer se este era o TOC inventando histórias sobre minhas escolhas e suas consequências — esqueci de alongar antes da dolorida sessão de meditação sentada — ou a dor era “real”. Se fosse uma obsessão, eu certamente não queria desistir e ritualizar. Por outro lado, eu não queria ser imprudente com meu corpo, especialmente, com mais uma semana de retiro pela frente.

Em certo ponto, o surgimento da tensão mental simplesmente forçou uma escolha. Troquei meu acento de meditação por uma cadeira, esperando que isto fizesse menos pressão sobre meus joelhos.

Seja qual for a verdade no assunto, agora um padrão estava em jogo. Eu concedi inicialmente algum espaço e isto tornou muito mais fácil conceder outra vez. Eu cortei completamente a meditação sentada, adicionei mais sessões andando, e introduzi meditação deitada.

Com o passar dos dias, o padrão intensificou-se. Até mesmo a meditação andando “machucava”, assim me limitei a prática deitado. Eu fiz a varredura de meu corpo para os sinais mais sutis de desconforto; quando eu detectei a mais ligeira contração muscular ou pontada, minha mente se inundava de tensão.

Mesmo sentado na mesa para comer ou ler tornou-se incontrolável. Eu construí uma elaborada engenhoca com almofadas e cadeiras, uma forma de tração improvisada que eu esperava me suspender além de minhas ansiedades por alguns minutos de cada vez. Somente situar-se requeria um jogo delicado de movimentos corporais, cada qual necessitando reajuste do equipamento. Eu tinha construído uma prisão.

Ficou claro: meus rituais do TOC estavam me impedindo de praticar os rituais budistas que eu queria praticar no retiro. Permanecer lá começou a parecer masoquismo e eu parti, juntamente com meu professor.

Ficou claro que eu não estava pronto para esse retiro. Mas não abalou minha fé no valor da prática de meditação. TOC pode ter ganho a vantagem, mas está em vantagem há décadas. Leva tempo para desacelerar e reverter tais padrões profundamente enraizados.

TOC frequentemente é como escolher seu próprio romance de aventura, exceto que todas as escolhas são uma droga e todas as aventuras machucam. Entretanto, aos poucos comecei a aprender com o estudo do budismo e dos rituais, que aquelas “escolhas” são ilusórias e não há ninguém sendo ferido. De fato, não há ninguém lá. A tentativa de alcançar o prazer ou evitar a dor, para permanecer consistente com um enredo, para assegurar algum tipo do resultado, para ser alguém — isto é o que causa tanto sofrimento.

Esta é uma mensagem dura de se ouvir, em partes porque nossa cultura coloca uma ênfase tão forte na construção de um eu integrado com uma história coerente na vida. Acreditamos que bem no fundo, há algum tipo de base contínua e estável para nossa identidade, alguma fundação inabalável que nos dá a capacidade de controlar parcelas significativas de nossa experiência: para ser quem realmente somos, para que sejamos verdadeiros conosco. Muitos rituais religiosos são projetados para reforçar esta visão — para convencer-nos que é possível sermos inteiros e para fornecer um método que promete nos ajudar a fazer isso. E ainda que tenham diferenças importantes, TOC e seus rituais são construídos dentro de uma visão de mundo similar.

Mas essa visão de mundo não é verdadeira. Não é possível nos manter inteiros e sólidos, porque não somos uma coisa coerente. Ao invés disso, somos um tipo de fluxo, uma série de padrões e surpresas, interligados indissociavelmente no campo maior dos fenômenos que chamamos realidade. O que significa que não podemos realmente nem desabar, porque, em primeiro lugar, nunca fomos sólidos ou inteiros. O que podemos fazer, porém, é reconhecer estas verdades e aprender a estar em paz com elas.

Naturalmente, uma coisa é falar ou escrever sobre estas coisas. Outra, sabê-las inteiramente em seu corpo, no nível do instinto. E aqui, de acordo com o budismo, é onde a prática da meditação é essencial. Sentando-se sozinhos com nós mesmos e vendo o que nossas mentes estão sempre fazendo, começamos a redescobrir o espaço, a recordar que é possível pisar fora da esteira transportadora e vê-la passar.

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