Domingo, Porto Alegre, um dia normal de 2017e Rodrigo Hilbert

Domingo, Porto Alegre, um dia normal de 2017.
Hoje, depois servir o café pra minha filha, arrumar as camas, lavar louça, dar de comer aos cães, varrer a área eu fui organizar umas coisas pro almoço que eu queria prontas antes de iniciar o almoço pois queria ler um pouco e a Kiki tinha temas de férias para fazer e precisaria de ajuda... O sol estava bacana então montei uma mesa para ela estudar na rua próximo da churrasqueira, entre as árvores. Poderia fazer o almoço e dar toda a atenção que ela precisasse. Dona patroa teria de trabalhar até a uma... então quando chegasse estaria tudo pronto.
Então escolhi a lenha para o churrasco. Lenha que separei das “podas” que eu mesmo fiz nas árvores do pátio, queria um leve aroma de laranjeira na carne... Separei a linguiça artesanal (a de ervas finas e queijo) uma fraldinha e os legumes da salada, que pegamos na feira orgânica de Sábado, salguei as carnes e arrumamos a mesa do almoço. Kiki foi fazer os exercícios de matemática e eu fui ler sentado junto a churrasqueira.
E eu não sou Rodrigo Hilbert.
Não somos Rodrigo Hilbert e Fernanda Lima, estamos mais para Eduardo e Mônica (segundo a Lê estamos mais para Eduard”a” e Mônic”o”, mas é muito piada interna, então deixa passar), e não é para ser diferente.
Me chamou a atenção o nº de amigas e conhecidas da Sí que falam que eu sou um Rodrigo Hilbert... e falavam como um elogio... quando não deveria ser.
Rodrigo Hilbert é um cara diferente por vivermos em um tempo que ser egoísta e narcisista é o ideal.
Este é o problema. Rodrigo Hilbert vive como qualquer qüera minimamente educado do país deveria ser.
A “mistificação” de caras como Rodrigo Hilbert mostra o grau de estupidez do homem médio do país. E esta devia ser a preocupação de todas as mulheres.
Porque o “normal” é um homem que é homem e não tem problema em passar roupa, não fica “#chateado” pra lavar uma louça, que não faz teatro quando vai pra cozinha, que não tem problema em cerzir uma roupa e sabe que é natural cuidar e educar os filhos.
Se a mulherada está surpresa com caras tipo Rodrigo Hilbert deviam parar de valorizar os caras do “Camaro amarelo”... os boys da balada com colar de ouro que quer "sarrar" "novinha" e acha legal chamar mulher de cachorra... Parar de valorizar o cara mais preocupado com ostentação do que ser uma pessoa.
Cara que ostenta não precisa “ser”. Basta “PARECER”.
Rodrigo Hilbert é o cara que é “CONSEQUÊNCIA” de uma cultura de “ser”, educado para valorizar e CUIDAR da mulher dele e dos filhos.
Educado para ser HOMEM.
Simples assim.A imagem pode conter: uma ou mais pessoas e comida

zendo brasilia - meditação Zen Budista: Não dê ouvidos às palavras indignas ditas pelos ...

Não dê ouvidos às palavras indignas ditas pelos outros. Não se preocupe com aquilo que foi realizado ou não realizado pelos outros. Observe apenas as suas próprias ações e omissões.

(O Dhammapada)

VISÃO ROMÂNTICA VS. DECEPÇÃO DIÁRIA POR Judith Simmer-Brown

Postado originalmente em Buda Virtual
Com a meditação nós reduzimos nossas fantasias e vemos a vida como ela realmente é. Então algo mágico acontece. 
Judith Simmer-Brown diz que é exatamente o que acontece nos nossos relacionamentos.


Amarga, amarga minha dor deve ser,
E nunca, nunca meu coração deve desistir
Em seu enorme e esmagador sofrimento por ela,
Nem uma esperança passageira me é dada
De felicidade ainda que doce, ainda que boa.
Uma grande alegria pode causar atos de bravura em mim.
Eu nada farei; tudo que quero é ELA.

—Peire de Rogiers

O amor romântico, por mais maravilhoso que seja, é o sintoma inicial de mal-estar cultural, a neurose principal da civilização ocidental

Por amor romântico quero dizer aquele que concentra no amado como um objeto de paixão, devoção e fixação. A pessoa amada torna-se a resposta para todos os problemas da vida, a fonte de toda nossa felicidade, e potencialmente, a fonte de todos nossos males. Mas, se formos honestos consigo mesmos, podemos ver que o amor romântico é um amor profundamente infeliz, viciado na miséria e sofrimento, coberto em fantasia e separação.

O amor romântico tornou-se um tipo de religião na civilização ocidental. Em seu livro de referência, O Amor e o Ocidente, Denis de Rougemont traçou o desenvolvimento do amor romântico na tradição cortês da Idade Média, descrevendo-o como uma heresia cristã. Ele menciona como nobres cristãos transferiram sua devoção do Deus inalcançável para a amada inatingível, envolvendo-a com traços idealizados, além de qualquer mulher mortal. Ele alega que essa visão do amor romântico sobrevive até hoje; mesmo agora, uma das formas mais abrangentes e não reconhecida de teísmo é nossa vida amorosa. Nós transformamos o amado em um deus, e nos apaixonamos mais pelo amor que pela pessoa amada. Ao ser amado é dado um papel específico para que ele ou ela possa permanecer um deus.

Com a separação a fantasia do amado pode ser mantida viva. A realidade da pessoa não pode ameaçar a fantasia.

Quais são as características dos relacionamentos românticos? Primeiramente, o amor romântico desenvolve-se na separação. O amor impossível é o mais cativante — alguém que é casado com outra pessoa, alguém que vive numa cidade distante, ou em outro aspecto de proibição. A garota ou garoto da vizinhança não é um bom candidato para uma fantasia romântica, nem seus maridos e esposas. A separação torna o coração mais apaixonado e ardente, porque com a separação a fantasia do amado pode ser mantida viva. A realidade da pessoa não pode ameaçar a fantasia. Por essa razão, muitos recém-casados tornam-se rapidamente desiludidos sobre as realidades do cotidiano da vida de casado. O namoro foi tão emocionante, mas o casamento é muito real, muito rotineiro.

Uma vez que o romance se desenvolve na separação, é excitante, mas nunca sexualmente realizado. Se alguém estiver de fato sexualmente saciado, então o romance estará ameaçado. Frequentemente, o amante escolhe a opção mística do desejo, abandonando o parceiro sexual vivo e presente pela fantasia do amor inalcançável. Os casos de amor proibido são ardentes, mas dificilmente resultam em casamento.

Em segundo lugar, o amor romântico é tremendamente impessoal. Nós procuramos o nosso “tipo”— um intelectual, um atleta, uma loira estonteante. Nosso gosto pode tornar-se muito sutil, incluindo a maneira de se vestir ou o jeito de andar do ser amado. Mas estamos apaixonados por uma fantasia; a pessoa amada não está presente. Na verdade, até ajuda a pessoa não estar muito por perto, porque pode destruir a fantasia. Tememos que o amor possa tornar-se muito concreto.

Ao fazer do amado um deus, nós induzimos um senso de carência em nós mesmos. Essa é uma falta de completude, que se manifesta como um desejo insaciável. Nos sentimos inadequados e desamparados sem um amor. Quando fazemos do amado um deus nós nunca podemos nos juntar a ele. Ficamos presos numa situação de aflitivo desejo, de carência e insegurança. É por isso que Rougemont chamou o amor romântico de heresia cristã; a paixão significa sofrimento, e desviamos nossa devoção para uma fantasia, que nos aprisiona para sempre na infelicidade.

O amor romântico glorifica a infelicidade.

Há um desejo pela morte no coração do amor romântico. Na mitologia clássica e na literatura, uma pessoa só possui completamente o ser amado após a morte — e vemos isso diariamente sobre brigas domésticas nos jornais. O desejo de união com o amado é a busca por uma junção, e qualquer coisa no caminho pode atrapalhar a fantasia.

Essa é a característica mais difícil de admitir: o amor romântico glorifica a infelicidade. A dor da paixão romântica é algo que achamos maravilhoso. Isso fica claro nos entretenimentos como filmes, novelas, televisão, balé, ópera e peças teatrais. Nos entretemos com a deliciosa dor de uma história romântica, e essa dor nos faz sentirmos tão vivos, tão reais, e tão convencidos do valor do amor romântico.

Quando examinamos isso cuidadosamente, podemos sentir o perigo de um culto, que glorifica a infelicidade. A tradição Shambhala fala do conceito do pôr-do-sol, que exalta os aspectos mais degradados da natureza humana e glorifica a morte. O conceito do pôr-do-sol se fixa na miséria e ignora a dignidade humana; se alimenta da tragédia e repreende o coração comum. A tradição Shambhala observa que o conceito do pôr-do-sol é uma abordagem desnecessária e inadequada para a vida humana. Ele prejudica nossa inteligência básica e integridade, e nos priva de vivermos plenamente a vida. O amor romântico é a epítome do conceito do pôr-do-sol na nossa cultura.

Então, que escolha nós temos? Nós percebemos quão infeliz o amor romântico é, mas qual outra opção existe? Todos nós experienciamos a forma como se inicia um relacionamento romântico, e as subsequentes decepção e desilusão. Nós dizemos que nos apaixonamos. Começamos a sentir a falta de sentido da fantasia, e vemos o ser amado como um estranho ou mesmo como um inimigo. Nos sentimos tão solitários e magoados.

Mas a desilusão é simplesmente o lado negativo do amor romântico. Em ambos casos estamos tão envolvidos com nossa própria fantasia que nunca realmente olhamos para a outra pessoa. Não vemos a pessoa pela qual nos apaixonamos; não vemos a pessoa com a qual terminamos o relacionamento. Ambas situações são impessoais. Marge Piercy descreve isso no seu poema “Canção-simples”:

Quando nos dirigimos a alguém nós dizemos
você é como eu
seus pensamentos são meus companheiros
palavra coincide com palavra
como é fácil ficar junto.
Quando nós deixamos alguém nós dizemos
que estranho você é
não conseguimos conversar
nunca estamos de acordo
como é difícil, penoso e exaustivo ficar junto.
Nós não somos diferentes ou parecidos
mas cada estranho em seu próprio corpo
envoltos em pele, estendendo mãos desajeitadas
e amar é uma ação
que não podemos sobreviver
a mão aberta
o olho aberto
a porta do coração aberta.

A desilusão é o lado mais positivo da moeda porque ocorre quando nossas ambições e fantasias sobre o relacionamento desmoronam. A desilusão pode ser o início do verdadeiro relacionamento. Há um tipo de perda da inocência na desilusão, que pode levar à admiração do amado por quem ele é — além da fantasia.

Manter-se na desilusão requer uma certa coragem, pois nos achamos isolados. Muitas vezes é o nosso medo da solidão que nos leva a procurar seriamente por um relacionamento; nós precisamos de alguém, qualquer um, para nos sentirmos seguros, estáveis, vivos. E aqui estamos de novo, sozinhos e desolados.

Começamos a achar que ninguém pode afastar nosso medo da solidão, já que esse é um sentimento tão familiar. Nossa solidão sempre vai surgir; mesmo o melhor relacionamento acaba, através da morte ou transformação. Quando valorizamos nossa solidão, ela se torna tão agradável. Quando sentimos e reconhecemos a solidão como base para todos nossos relacionamentos, surge uma enorme liberdade. Mas claro, isso não garante nada sobre o relacionamento em si.

Quando a solidão e a desilusão despertam em nós, o relacionamento pode ter o espaço para começar. Há um tremendo risco, porque não sabemos realmente para onde o relacionamento está indo. Tanto pode haver bons momentos, como pode haver maus momentos. O que acontece, porém, é que começamos um relacionamento com a pessoa. Podemos começar a ver o ser amado como alguém distinto de nós, e sentimos solidão no relacionamento. Anteriormente, o romance preenchia os vazios da nossa vida e nos fazia companhia. Nos sentíamos completos porque nossa fantasia preenchia todas nossas carências, ou assim imaginávamos.

Mas quando começamos a realmente ter um relacionamento com alguém, existem lacunas, existem necessidades não atendidas. Esse é o alicerce para o relacionamento. Quando há essa característica de separação e sensatez, uma química muito mágica pode surgir entre duas pessoas. É imprevisível e incerto, e não segue as orientações místicas para o amor romântico.

Quando começamos a ver a outra pessoa, surge uma nova oportunidade de um romance de uma maneira saudável. A própria distinção do ser amado pode nos atrair. É fascinante o que faz meu marido ficar bravo, o que faz ele rir. Ele realmente gosta de jardinagem, e odeia fazer compras. Um fascínio contínuo pode florescer, porque a outra pessoa está além dos nossos limites de expectativa e conceituação. Esse fascínio pode incluir momentos de depressão, desânimo e resignação. Bem como incluir momentos de bom humor, alegria e admiração. Mas isso tudo é palpável e vívido. Mesmo enquanto estamos intoxicados com a presença contínua da outra pessoa, nós somos assombrados e envoltos pela nossa própria solidão.

E, talvez surpreendentemente, exista uma possibilidade de paixão ilimitada quando você não está tentando encaixar o outro em um papel. Esta pode ser uma paixão feliz, porque não está tentando manipular o amado para preencher suas carências; é uma paixão que pode incluir a sexualidade sem medo de intimidade. Existe também uma vertigem causada por uma paixão de altitude mais elevada, porque a própria solidão permanece e é uma situação tão inescapável.

Quando você vê o relacionamento além da desilusão, você se relaciona com um mundo notavelmente vívido. Seu companheiro torna-se um símbolo ou representante de todos os cosmos. Quando ele ou ela fica bravo e diz “não”, você está realmente recebendo uma mensagem do universo. Quando dificuldades ou estresses acontecem, são muito significativos e devem ser trabalhados. Tudo que acontece no seu relacionamento pode ser uma mensagem do mundo em geral.

Quando nos libertamos da manipulação, os relacionamentos são essencialmente arriscados. Não temos controle sobre eles.

Parece muito mais seguro estar romanticamente envolvido. Mas se estamos, nunca podemos nos afastar da nossa consciência. Sempre estaremos envolvidos com nossos conceitos sobre o amor romântico. Desilusão é a perda da inocência. E essa perda pode na verdade nos despertar, se estivermos dispostos a continuar nesse cenário. Há uma falta de escolha que cresce quando você admira a outra pessoa por quem ela é e desiste de tentar encaixá-la na imagem da sua fantasia.

Quando nos libertamos da manipulação, os relacionamentos são essencialmente arriscados. Não temos controle sobre eles. Em um relacionamento saudável, você tenta apoiar a bondade e a dignidade da outra pessoa. Você não permite que eles acobertem a mesma situação de novo e de novo; você desiste do sentimento de traição se eles fizerem o mesmo com você. Você se dispõe a ser um lembrete suave de como as coisas são, e permite que o sejam também. Mas não há garantias sobre seus respectivos papéis.

Devemos cortar o amor romântico das nossas vidas? Claro que não. Estamos imersos em nossa cultura, e temos nossas neuroses para trabalhar. A forma inteligente de trabalhar com o amor romântico é experimentá-lo integralmente, começando com a paixão romântica, e então experienciar o desapontamento e continuar a partir daí. Devemos compreender detalhadamente o que estamos fazendo, estar conscientes da nossa tendência à ilusão quando estamos “apaixonados. ”

Existe uma energia extraordinária na nossa paixão. O amor romântico é o início da compreensão da natureza do relacionamento. Através dele criamos coragem de pular, e uma vez que estamos no oceano, aprendemos a nadar. Sem o amor romântico talvez nunca tivéssemos saltado.




SOBRE JUDITH SIMMER-BROWN

Judith Simmer-Brown é Professora Honorária de Estudos Religiosos e Meditação na Universidade Naropa e professora sênior de Budismo na tradição Shambhala.







Texto traduzido por Tamyres Bertanha do original em inglês publicado em Lions Roar disponível aqui →

Bossa Zen: Cuidado com o que diz

Bossa Zen: Cuidado com o que diz

Anda Atento e respirar conscientemente!




O andar atento e o respirar conscientemente 
ajudam a trazer a mente de volta para o corpo,
para que possamos estar verdadeiramente presente 
no aqui e agora 
e nos tornarmos realmente vivos.
Praticar a consciência pode ser uma espécie de ressurreição, 
de repente, você se torna vivo novamente.

~Mestre Thich Nhat Hanh~

Podemos sofrer menos com a vida SE entendemos que ela muda





Tentamos fazer com que as coisas fiquem do jeito que estão, nos agarramos à ideia de permanência. Normalmente, somos muito resistentes à ideia de mudança, em especial de mudança naquilo que prezamos. Claro que gostamos de que as coisas mudem, quando se trata de algo de que não gostamos; mas, quando é algo de que gostamos, seguramos.

Existem vários níveis de mudança, é claro.

Existe a mudança grosseira – o clima muda constantemente, os mares mudam o tempo todo, a terra está mudando. Com o tempo, tudo se transforma por completo.

Existe a mudança mais sutil em nossa vida cotidiana, na qual sempre estão acontecendo coisas. Relacionamentos, lares e bens vêm e depois os perdemos. Nosso corpo muda. No princípio, somos seres minúsculos, indefesos e vulneráveis, e então crescemos, amadurecemos, envelhecemos e morremos.

E existe a mudança momentânea, ainda mais sutil. Na verdade, nada permanece igual por dois instantes de tempo. A vida é como um rio, sempre fluindo. Heráclito, o filósofo grego, disse que nenhum homem pisa no mesmo rio duas vezes. Mas a verdade é que o mesmo homem nunca pode pisar duas vezes no rio. Tudo está mudando. Por isso, sofremos.

A vida é insatisfatória, porque está sempre mudando. Não tem o cerne sólido que sempre esperamos agarrar. Queremos segurança e acreditamos que nossa felicidade reside em estarmos seguros. E assim, tentamos tornar as coisas permanentes.
Essa escultura, chamada de "Embrance", foi criada pelo The Pier Group para o festival Burning Man de 2014. A escultura foi completamente queimada. 


Escolhemos casas que parecem muito permanentes e então as mobiliamos. Investimos em relacionamentos que esperamos durarem para sempre. Temos filhos e esperamos que eles também possam consolidar essa ideia de identidade, de algo que seja constante. Temos filhos e amamos nossos filhos, de modo que nossos filhos nos amarão e isso será assim por muito, muito tempo, durante toda a nossa vida. Nossos filhos são a nossa segurança.

Mas não existe segurança nisso, porque a segurança é muito insegura. A verdadeira segurança provém apenas do conforto com a insegurança. Ficarmos à vontade com o fluxo das coisas, ficarmos à vontade ao estarmos inseguros, essa é a maior segurança, pois nada pode nos tirar do prumo.

Enquanto tentamos solidificar, parar o fluxo da água, represá-la, manter as coisas do jeito que elas são, porque isso nos faz sentir seguros e protegidos, estamos enrascados. Essa atitude vai direto de encontro a todo o fluxo da vida.

Tudo muda, de momento a momento, a cada momento. Até na física aprendemos que objetos que parecem sólidos e estáveis na verdade estão em estado de movimento constante. Os objetos não são estáveis, não permanecem fixos e imutáveis, embora nossos sentidos nos deem essa impressão distorcida.


Olhamos uns para os outros. Vejo você hoje. E amanhã, você parecerá o mesmo para mim. Mas você não será o mesmo. Tanta coisa aconteceu, mesmo em nível celular, ao longo desse tempo. Células crescem e morrem, elas estão sempre mudando. E nós também estamos sempre mudando na mente, de momento a momento, a cada momento.

Embora tentemos solidificar as coisas e mantê-las do jeito que sempre foram, não podemos fazer isso. É como aqueles velhos castelos. Construímos paredes sólidas muito espessas e pensamos que vão durar para sempre, que nenhum ataque jamais irá mudá-las. Mas é uma delusão.

Mesmo que tentemos segurar o rio de nossa vida, ele fluirá de qualquer maneira. Não podemos segurar o rio nos agarrando a ele. O jeito de pegar o rio é segurar muito de leve. Não é necessário sofrer. Quando sofremos, sofremos porque nossa mente é deludida e não vemos as coisas como realmente são. Temos medo, medo de perder, e sentimos dor quando perdemos. Mas a natureza das coisas é vir a existir, durar por um tempo e então acabar.


Nossa cultura considera a questão da perda muito difícil. Nossa cultura é muito boa em pegar. Nossa cultura de consumo, especialmente hoje em dia, é toda voltada apenas para pegar, pegar, pegar. Jogamos fora coisas que ontem mesmo estavam na moda, mas que não estão mais na moda hoje, para pegarmos alguma coisa nova.

Entretanto, não temos essa atitude em relação a nosso corpo ou ao corpo dos outros. Não achamos que nós também precisamos ser reciclados de tempos em tempos, mas somos. É irônico que em nossa sociedade todo mundo fale abertamente sobre sexo, que em outras sociedades é um grande tabu.

Contudo, em nossa sociedade o grande tabu é a morte.

Fui criada em uma família espiritualista. Minha mãe era espiritualista, e realizávamos sessões em nossa casa todas as semanas. Na minha casa a morte era um assunto diário, era um tópico sobre o qual falávamos com grande dose de entusiasmo e interesse. Não era mórbido. E nas poucas ocasiões da minha vida em que realmente pensei “Estou prestes a morrer agora”, a reação seguinte sempre foi: “Vamos ver o que acontece”. Creio que seja porque, quando eu era criança, a morte era um tema aberto.

Sou profundamente grata a isso, porque falar da morte em nossa sociedade geralmente deixa as pessoas desconfortáveis. Tanta gente tem medo da própria morte e da morte dos outros. Não aceitamos que tudo que vem a existir dura um tempo e depois acaba. Mas o ciclo é esse.


Tudo é impermanente. E o que nos causa dor é a não aceitação disso. Em nossos relacionamentos, vivemos divididos entre a esperança e o medo porque seguramos com muita força, com muito medo de perder.

Tudo está fluindo. E esse fluxo não é composto apenas por coisas externas. Inclui os relacionamentos também. Alguns relacionamentos duram um longo tempo, outros não – é assim que as coisas são. Algumas pessoas permanecem aqui por um longo tempo, outras partem muito rapidamente. É assim que as coisas são.

Todo ano, milhões e milhões de pessoas nascem e morrem. No Ocidente, nossa falta de aceitação é deveras espantosa. Não aceitamos que um dia possamos perder qualquer uma das pessoas que amamos. É muito comum sermos incapazes de dizer a alguém que esteja morrendo: “Somos tão felizes por ter tido você conosco. Mas agora, por favor,siga em frente, em uma jornada muito feliz e segura.” É essa negação que nos causa dor.

A impermanência não é de interesse apenas filosófico. É de interesse pessoal.

Somente quando aceitarmos e entendermos profundamente em nosso ser, que as coisas mudam de momento a momento e nunca param um instante sequer, só então conseguiremos soltar. E, quando realmente soltamos dentro de nós, o alívio é enorme.

Ironicamente, isso dá vazão a toda uma nova dimensão de amor. As pessoas pensam que se alguém é desapegado, é frio. Mas isso não é verdade.

Qualquer um que encontre grandes mestres espirituais, realmente desapegados, ficará impressionado com o afeto deles por todos os seres, não só aqueles dos quais gostam ou com quem se relacionam. O desapego libera algo muito profundo dentro de nós, porque libera aquele nível de medo. Todos nós temos muito medo: medo de perder, medo da mudança, uma incapacidade de simplesmente aceitar.

Desse modo, a questão da impermanência não é apenas acadêmica. Temos realmente que aprender a como enxergá-la em nossa vida cotidiana.

Na prática budista da atenção mental, de estar presente no momento, uma das coisas que primeiro impressiona é como as coisas estão constantemente fluindo, aparecendo e desaparecendo de maneira contínua. É como uma dança. E temos que dar espaço a cada ser, para que ele dance a sua dança. Tudo está dançando, até as moléculas dentro das células estão dançando.


Tornamos nossa vida muito pesada. Temos fardos incrivelmente pesados, que carregamos conosco como pedras dentro de uma grande mochila. Pensamos que carregar esse mochilão é a nossa segurança, pensamos que nos dá base. Não percebemos a liberdade, a leveza de simplesmente largar, soltar a mochila. Isso não significa abandonar os relacionamentos, não significa abandonar a profissão, a família ou a casa. Não tem nada a ver com isso, não é uma mudança externa. É uma mudança interna. É a mudança de deixar de segurar com muita força para segurar bem de leve.

Recentemente, estava em Adelaide, na Austrália, e alguém me deu uma tirinha de quadrinhos que mostrava como segurar coisas: o primeiro desenho era sobre segurar gentilmente, como ao segurar um pintinho; o segundo desenho abordava diferentes maneiras de segurar as coisas de modo hábil, com honra e respeito, mas não com força; e o último desenho dizia, “Depois disso, temos que soltar. Mas isso é uma coisa totalmente diferente – vamos tratar dela mais tarde!”

Sim, temos que saber como segurar as coisas de leve, e com alegria. Isso nos permite ficar abertos ao fluxo da vida. Quando solidificamos, perdemos muito.

Envolvidos na relação com nosso parceiro, com nossos filhos e com outras pessoas nesse mundo, podemos solidificá-los ao atribuir um papel a eles. É como nós os vemos. Depois de um tempo, não experienciamos mais a pessoa real do momento. Vemos apenas a nossa projeção da pessoa. Embora ela seja completamente única, e possa estar de fato se transformando e mudando por dentro, não enxergamos isso, porque tudo o que vemos é o nosso padrão. E então as pessoas se cansam umas das outras, ou no mínimo ficam meio que trancadas em um relacionamento que perdeu a vitalidade original.

Como eu disse, isso é porque não experienciamos o momento atual, experienciamos apenas a nossa versão dos eventos.


Quando olhamos alguma coisa, vemos tal coisa por um momento, mas imediatamente nossos julgamentos, opiniões e comparações entram em cena. Tornam-se filtros entre nós e a pessoa ou o objeto que olhamos, e esses filtros nos distanciam cada vez mais do que é. Restam nossas próprias impressões e ideias, mas a coisa em si se foi. Isso é especialmente verdadeiro quando nosso objeto são outras pessoas.

Todos nós sabemos que, quando as pessoas estão relatando um acontecimento, é quase como se cada uma estivesse contando uma história diferente. Todos nós passamos pela experiência de ouvir alguém contar um acontecimento que compartilhamos e pensar algo do tipo: “Não foi assim que aconteceu!”, “Não disseram isso!”, ou “Não foi nada disso, você não entendeu coisa nenhuma!”. Em outras palavras, tudo se torna incrivelmente subjetivo.

Não vemos a coisa em si, vemos apenas a nossa versão. E onde isso se reflete de modo mais claro é em nossa resistência ao fato de que todos nós estamos mudando de momento a momento.

É como se o tapete debaixo de nossos pés fosse continuamente puxado, e não conseguíssemos suportar isso. “Esse tapete vai ficar exatamente onde eu quero que ele fique. O mesmo tapete debaixo dos mesmos pés.” E porque isso jamais vai acontecer, já que, por mais que fiquemos nos iludindo, nunca poderemos ter as coisas exatamente do mesmo jeito, sentimos essa dor.

É muito importante entender que nossa felicidade e paz mental não provêm da busca de segurança na permanência e na estabilidade. Nossa felicidade vem de encontrarmos segurança na natureza sempre cambiante das coisas.

Se nos sentimos felizes e, por conseguinte, somos capazes de flutuar na corrente, nada pode nos aborrecer. Porém, se construímos algo tão rígido, querendo que não mude nunca – um relacionamento, nosso emprego, qualquer coisa, quando o perdemos, ficamos totalmente fora do prumo.

Em geral, as pessoas pensam que a mudança constante das coisas é algo assustador. Mas, quando realmente entendemos que a verdadeira natureza das coisas de fato é fluir, mudar, aí ficamos completamente equilibrados, abertos e receptivos. Quando tentamos represar o fluxo, a água fica muito estagnada. Temos que deixar as coisas fluírem. Aí a água estará sempre fresca e límpida.

* * *

Nota do editor: este texto é um trecho do livro No Coração da Vida, de Jetsunma Tenzin Palmo, uma das mais conhecidas professoras da prática budista. Ele foi traduzido e publicado pela editora Lúcida Letra, do Vitor Barreto, amigo e autor no PapodeHomem.
É parte de uma parceria nasce do respeito que temos pelo trabalho da editora, que promove um conteúdo de florescimento humano apoiado por nós. 

Você pode também comprar o livro Buda Rebelde, do Dzogchen Ponlop, clicando na imagem abaixo ou no botão, que te leva direto pro carrinho.

Para ler mais:

Qual a diferença entre amor romântico e amor genuíno (que passamos a vida inteira sem nos dar conta)?, de Gustavo Gitti

Podemos usar nossas próprias aflições mentais para cultivar uma mente mais saudável?, de Yongey Mingyur Rinpoche

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ISTO É UM SONHO





Uma das ideias centrais do budismo mahayana é que tudo que vivenciamos é como um sonho. Qual a diferença entre dizer que tudo é como um sonho ou que tudo é simplesmente um sonho?

O ocidente tem sua parcela de tradições filosóficas e espirituais que afirmam que o que experimentamos cotidianamente não passa de um “engano em massa”. Platão usou o mito da caverna como uma analogia para o processo didático da filosofia – ela nos acordaria de uma visão convencional para uma visão mais ampla, e enfim para a realidade. A mensagem central é que, de nossa perspectiva atual, não conseguimos conceber a profundidade do que está adiante – é só quando a visão mais ampla se revela é que entendemos o quanto estávamos limitados.

Com base no platonismo, muitas formas de cristianismo tomaram essa ideia de forma um tanto mais literal. Começando com o gnosticismo – que acreditava que este mundo em que vivemos foi criado por uma divindade menor, com a função de nos aprisionar e enganar perante uma realidade mais ampla –, várias formas de pensamento cristão foram influenciadas por uma visão dupla, ou em camadas, da realidade divina se obscurecendo para os pecadores e desobscurecendo para aqueles que encontram Cristo. Para o gnosticismo, uma tradição que surgiu ao mesmo tempo e em contraposição com os patriarcas que fundaram as vertentes hegemônicas do cristianismo, Jesus seria então o grande tentador, a serpente. Cristo surgiria da verdadeira divindade para nos fazer provar o fruto da árvore do conhecimento, e abandonar esse suposto “paraíso” – do antigo testamento, e da estrutura oficial e artificial da Igreja – na direção da realidade. Vencendo assim o criador de toda essa falsidade, o grande enganador – invertendo, portanto, a interpretação do cristianismo que viveu para contar a história.

Mais adiante, Descartes nos fez duvidar de todos os dados dos sentidos, até passo a passo reconstruir tudo com base na pedra fundamental do conhecimento de primeira pessoa de uma mente pensante, e uma entidade criadora perfeitamente boa. E enfim, na transição da modernidade para a pós-modernidade, depois de Deus estar bem morto e enterrado, nossa imersão no texto e na ficção foi transformada na analogia de “mundo irreal” preferida, em que todos os limites do texto e do “real” são testados, e em que enfim chegamos a um relativismo absoluto, onde “nada é verdadeiro e tudo é permitido” – o que nos possibilita entender das grandes “banalidades do mal” e genocídios que se passaram no séc. XX até esta era da pós-verdade.

Com a cultura das drogas e em seguida a era da informação, progressivamente duvidamos de todas as formas de reificação de autoridade: da religião, dos governos, das corporações – e somos mais do que participantes, vítimas ao estilo gnóstico dessas estruturas. Num sentido mais literal somo como “cérebros numa cuba”: vivenciamos Paraísos Artificiais, Holodecks e Matrix-es. Nosso corpo é só uma ferramenta para conectar nossa mente a um gadget qualquer. Na era pós-industrial, o “sonho Americano”, mais sonho do que Americano, nos coloca em vidas plásticas, cercados de relacionamentos e objetos descartáveis, incentivados por valores que supostamente ninguém controla, como as forças do mercado. A ideia de conspiração ela mesma se torna uma arma de dominação, com o cultivo deliberado de desinformação e da perda de confiança em tudo e todos.

Hoje os gurus das startups de tecnologia da informação afirmam ser “bilhões de vezes” mais provável estarmos vivendo em uma simulação do que na “realidade”, o que nos leva a querer saber o que é mesmo essa tal realidade, tão inacessível. Claro, há implicações políticas e sociais em sonhar com outros mundos, e acreditar que as dificuldades tão reais desse planeta são só variáveis alteradas em alguma simulação de computador. Todo cuidado é pouco com esse tipo de ideia.

Ainda assim, com todas essas variações sobre o mesmo tema – a de que outras realidades nos acordam para a falsidade de nossa realidade cotidiana – a mais simples e acessível entre todas é a do sonho durante a noite. O que a tradição budista tem a dizer sobre isso? Como podemos domar a ilusão, e a fazer trabalhar a nosso favor?



Engano sem enganador

Na tradição em que o Buda foi educado já havia uma forte ideia do mundo como ilusão. Quando falamos “ilusão”, no entanto, isso – devido a nossas preconcepções ocidentais e modernas – soa como algo pejorativo, sermos “enganados”, como no gnosticismo. No entanto, no budismo não é nem um pouco assim.

Ilusão significa que as coisas são mais trabalháveis, menos rígidas, mais flexíveis. Ilusão é algo positivo, diferente de “ser iludido”.

A mãe do Buda se chamava “Maya”, e no mahayana há um treinamento da mente em que tentamos nos ver como “filhos da ilusão”. A ilusão não é um engano para o Buda – Buda significa “desperto” – mas ela não deixa de estar lá, porque ela é tudo que “existe”. A ideia platônica de uma realidade perfeita subjacente, ou as ideias de uma deidade boa ou ruim comandando a estrutura disso tudo, são todas abandonadas, não fazem sentido. O Buda é uma manifestação que surge “no sonho, para dar um ensinamento de sonho para seres de sonho” (como diz o Sutra do Bom Kalpa). Mas o Buda não se engana independente do modo de surgimento ou manifestação dele para nós, seres imersos no sonho. O Buda nunca está sonhando, ou pelo menos, nunca se engana quanto à natureza de sonho: mas mesmo assim não deixa de naturalmente surgir nos sonhos dos seres com mérito.

Mas como um ser plenamente lúcido “surge da ilusão”?

A ilusão, como já foi dito, não é algo pejorativo. De fato, nós usamos expressões “como um sonho”, para falar de algo que parecia muito bom, mas que não durou, e não era “real” – porque é essa nossa experiência com alguns sonhos da noite. Num tema comum ao budismo, o problema não é o sonho (a “ilusão”), mas o fato de que hipostasiamos “realidade” – esse é o engano. Esse problema existe – como possibilidade, e como o usual – em qualquer modo de postular uma noção de realidade, seja de que tipo for.

Como Dzongsar Khyentse Rinpoche diz, parafraseando Chandrakirti: o problema não é procurar, o problema é encontrar. Quando algo é postulado como real, quando algum lastro de qualquer tipo é estabelecido, então a raiz do engano, e do sofrimento causado por este engano, foi afixada. Nós fazemos isso o tempo todo, e nos é muito difícil conceber um mundo totalmente aberto e pleno de possibilidades: nossos hábitos mentais de reificação produzem a experiência extremamente limitada, limitante e cheia de sofrimento que vivenciamos. Mas, não precisa ser assim.

Ainda assim, como um ser plenamente lúcido “surge da ilusão”?

A lucidez é aquilo que não se engana perante qualquer coisa. A noção de nascimento ou surgimento é parte do engano – como toda causalidade, tempo e espaço. Como tudo que entendemos agora é a lógica interna do sonho, a realidade da ausência de fixação a qualquer noção de realidade nos parece ultrajante. É óbvio que o Buda nasce, as coisas surgem e desaparecem: a impermanência é um ensinamento central no budismo. Porém, por profunda que ela seja – por necessário que seja que aprofundemos nosso reconhecimento dela, a cada momento, a cada prática formal e no cotidiano –, a impermanência é umensinamento expediente. Isto é, não fala de algo mais do que da natureza das ilusões, fala apenas de nossa percepção das coisas enquanto seres tomados por ignorância.

Assim, um ser lúcido “surge da ilusão” num único modo ou sentido: perante aqueles seres que, embora totalmente imersos em ignorância, manifestaram mérito suficiente para reconhecer pelo menos uma aparência (fenômeno) que é uma porta de saída para a ignorância. Do lado do Buda, não há surgimento. No nosso lado, há surgimento, e o mais auspicioso deles é o Buda – que nos aponta a liberdade perante a ilusão, e, mais do que isto, em meio à ilusão.

O Buda “surgir” pode significar ele ter nascido em algum lugar próximo ao Nepal, tantos séculos atrás, ter pisado nessa terra e ensinado por 42 anos. Mas também pode significar os ensinamentos surgirem como relevantes na nossa vida. Ou o reconhecimento da natureza de buda em todos os seres surgir em nossa mente. Em todo caso, este é um surgimento ilusório, ainda que extremamente auspicioso. Um surgimento que acontece para nós, não do ponto de vista do que parece surgir, que é a própria sabedoria que não reifica e não produz fixação.

Quando falamos em “superar a ignorância”, pode, novamente, soar como “vamos destruir esse sonho todo, que está nos enganando”. Mas o sonho não tem volição alguma – não é como nas versões teístas em que o sonho da materialidade é produzido por um demiurgo, seja ele perfeitamente bom ou falho. O sonho não está aí para nos enganar, e ele não tem culpa nenhuma de nós nos enganarmos – muito menos ele está aí para nos paparicar com 72 virgens ou um lugar ao lado do Supremo.

Fomos nós que transformamos este sonho em algo que ele não é, e isto não ocorre nem mesmo bem por culpa nossa. Devido a forças de hábito começamos, exatamente como num bom filme, a esquecer de que se trata de um filme, e nos engajamos com a história. Assim, não há necessidade nenhuma, para acordar, de interromper o sonho. O sonho nunca foi o obstáculo, o obstáculo é quando esquecemos que existe a possibilidade de reconhecer o sonho como sonho.

A analogia usual no budismo é um quarto escuro onde há uma corda, que devido a circunstâncias como pouca luz e nossa percepção imperfeita, nos parece uma cobra. Então alguém acende a luz, e nos sentimos aliviados. Ufa, era uma corda, não uma cobra.

No entanto, o importante aqui é que a realidade, a corda, nunca nos enganou. Ela estava ali o tempo todo, sendo nada mais do que corda. Nunca sofremos a ameaça real de sermos picados por um animal peçonhento. Nós é que, por várias circunstâncias adventícias, passamos a ficar nervosos por projetarmos nela algo que não existia.

Esse engano não está na corda, nem altera em nada a natureza da corda.



“As coisas não são o que parecem, nem são qualquer outra coisa”.

300 anos antes de Cristo, Chuang Tzu teve o famoso sonho em que acordou com uma dúvida. Não sabia mais se era uma borboleta sonhando que era um ser humano, ou um ser humano que havia acabado de sonhar ser uma borboleta. Ao contrário das versões ocidentais, em que o ceticismo nos joga na direção de uma realidade mais absoluta, e mais “real”, por trás de nossa experiência cotidiana, na Ásia (mesmo a não budista) o fato de haver dúvida quanto a nosso status atual parece mais interessante do que obter uma resposta.

Há dois tipos de obstáculos a depurar no caminho budista: apego a substâncias ou essências e apego a características ou propriedades. A coisa que mais nos causa sofrimento ao reificarmos (vermos como real), é o eu, que é um tipo de apego a uma essência. Reunimos uma série de ideias a respeito de nós mesmos, tentamos lhes dar coesão, as conectamos com nosso corpo e experiência sensorial, e dizemos “sim, existe uma essência da minha pessoalidade, aquilo que realmente sou”. Isso ocorre de forma natural e automática. No entanto, mudamos o tempo todo, e quando nossas expectativas com relação a nós mesmos não são preenchidas por nossas próprias ações e circunstâncias, esta dissonância e incongruência se torna o tipo de sofrimento basal mais comum.

Depois de depurarmos o apego a essências, em particular a uma essência de individualidade – mas também o apego às essências em todas as coisas, ou mesmo a reificação de um sonho como realidade –, resta o apego a características, marcas ou sinais. Porém, nada disso implica que, na realidade, não exista nada, nem coisas nem as características. O que depuramos é nosso hábito de reificar tanto objetos quanto características, tanto a existência de uma cadeira, quanto sua cor e textura, ou o fato de que faz fronteira com os objetos ao redor, e é deles distinguível. O que abandonamos é certo atraso ou teimosia perante a natureza real que é flexível do lado da mente e do lado das coisas.

Quando acordamos de um sonho particularmente bom ou ruim, e nos sentimos aliviados ou querendo ter usufruído mais aquela experiência, mas rapidamente nos vemos novamente envolvidos com as urgências do cotidiano e esquecemos daquilo, isto demonstra a qualidade flexível da mente. Claro, sabemos como é a experiência com sonhos porque já sonhamos várias vezes. Podemos dar muita ou pouca importância aos conteúdos do sonho, mas de todo modo, o ponto crucial aqui é que rápido superamos aquela morte dentro do sonho. Ela acontece de forma tão abrupta!

Talvez pensemos que quando estivermos morrendo de uma doença demorada, num leito de hospital, isso seja muito diferente. E, de fato, a capacidade flexível da mente pode transformar a ocorrência mais corriqueira num abismo infinito e assustador. Porém, como vivenciamos o sofrimento depende totalmente de nossos hábitos mentais. Quanto mais treinamos durante a vida reforçar essências e características – um eu e as circunstâncias de um eu –, mais as dores da morte vão doer, porque elas não implicam simples dor física, mas o fim de tudo aquilo por que tão sofregamente cultivamos apego. Cada particularidade em que depositamos expectativa, nesse momento, volta para nos torturar.

Hoje, neste presente momento, muitos de nós não queremos nem imaginar o fim deste sonho particular. Por mais cheio de altos e baixos que seja, é o nosso sonho. Somos protagonistas neste filme. Quando outras pessoas morrem ao nosso redor, e encerram suas participações nesta produção particular, isso nos toca tanto porque sabemos o quanto elas ainda podiam ou queriam fazer, quanto porque nosso filme muda de rumo, algumas vezes inesperadamente, com esses atores que somem. A reificação que essas pessoas atribuíram ao sonho também nos afeta, porque sabemos que elas – todas elas, ou a maioria pelo menos – não se foram graciosamente.

Levamos isso tudo extremamente a sério. Tão a sério que por vezes, preferimos ignorar o fato simples de que o fim deste sonho/filme – abrupto ou não – é inexorável.



O uso de metáforas

O uso de metáforas sempre tem seus limites. O sonho durante a noite não é apenas uma metáfora, de fato, mas é uma experiência cotidiana nossa. Há, de fato, práticas no budismo vajrayana que lidam com a experiência de sonho durante o sono como um elemento importante, no caso, o que chamamos “Ioga dos Sonhos”. A ioga dos sonhos não tem a ver com o conteúdo dos sonhos, ou apenas com o que a metáfora do sonho revela sobre a nossa vida, mas com métodos para manter a lucidez durante o sonho (e por extensão, durante a vida). Em outras palavras, a prática vai além da metáfora.

Na visão extremamente vasta do budismo, existem seres de muitos tipos por todos os lados. Os seres humanos neste mundo têm certa capacidade para a prática do vajrayana porque suas vidas não são muito longas e porque eles têm experiências tais como sonhos durante a noite, e coisas como orgasmos e espirros. Há, segundo o budismo, seres inteligentes e que podem praticar o darma em outros lugares e épocas (lugares querendo dizer algo googleplex vezes maior do que o universo observável pela física, e tempo querendo dizer algo googleplex maior do que os meros 10-20 bilhões de anos do que este universo mensurável) – mas porque eles nem sempre dormem, ou sonham durante o sono, ou porque têm vidas longas demais, ou não têm experiências fisiológicas semelhantes a orgasmos e espirros, eles algumas vezes não têm a possibilidade de receber os ensinamentos do vajrayana. Por isso, é um motivo de regozijo essa nossa circunstância, já que os métodos do vajrayana são extremamente eficazes no lidar com essas realidades tão próprias de nossa fisiologia humana, e as transformarem em práticas espirituais.

Ainda assim, no budismo de forma geral, a noção de sonho também é usada como metáfora apenas. Outras metáforas comuns são as bolhas, o arco-íris, o reflexo da lua num lago ou numa cumbuca cheia de água, alucinações, miragens, a criação de um mágico, e assim por diante. Como a noção de impermanência, essas ideias todas nos ajudam a diminuir um pouco nossa forte tendência a substancializar as experiências e acreditar em “existência absoluta”.

Todas estas metáforas ilustram pontos, mas também precisam ser explicadas, porque cada uma delas carrega suas limitações particulares.



Tecnicamente falando

Os ensinamentos budistas que mais tratam essa realidade como uma “matrix” são os da cittamatra, uma escola da Índia Clássica que influenciou fortemente a yogachara, o budismo tibetano e o zen. Estritamente falando, a cittamatra (que se traduz como “apenas mente”) é uma forma sofisticada de idealismo filosófico ao estilo Berkeleyano, porém com uma epistemologia muito mais desenvolvida do que a de qualquer idealismo promulgado por europeus. Em outras palavras, Berkeley e outros tentaram, por algum tempo, desenvolver uma epistemologia idealista – mas o esforço asiático dentro do budismo durou século, e se ramificou em teorias anos-luz mais sofisticadas. Epistemologia significa “teoria do conhecimento”. Nossa epistemologia ocidental (e a usada pela maior parte da ciência, com algumas raras exceções) é predominantemente realista, a saber, há um mundo independente do observador. Uma epistemologia idealista significa algo como “como podemos vir a conhecer as coisas quando apenas há uma substância, e ela é mente” – como isso não redunda em solipsismo, como pode haver inferência e prova, e assim por diante. Há extensos debates e explicações sobre isso na tradição budista, por pelo menos seis séculos na Índia, e por mais tempo na China, Tibete e Japão.

A cittamatra é uma forma de monismo, só que inversa ao materialismo usual do sujeito não filosófico e não profundo hoje em dia: em vez de tudo ser feito de matéria e coisas que se combinam semialeatoriamente por leis pré-existentes, tudo é feito de mente (espírito), e a materialidade e nosso entendimento da materialidade é uma forma específica de reificação de fenômenos mentais. Isto é, a sensação (e a mesuração) da solidez ocorre porque estes fenômenos se configuram de uma forma que preenchem certos requisitos mentais. Claro, mente aqui não significa o intelecto de uma pessoa, querendo dizer que a pessoa poderia, “pensando direito”, atravessar paredes, ou algo assim. Significa antes uma série de estruturas e marcas, criadas por hábito, de forma naturalista semelhante ao que acreditamos que por “leis” coisas materiais se configuram dessa ou daquela forma. Bom, daí se pode pensar, qual é a vantagem de ter um naturalismo centrado na mente, e não na matéria? Há duas vantagens, é possível explicar a própria mente de forma melhor (as tentativas materialistas/realistas de explicar a mente são francamente ridículas), e em vez de se focar em transformar e entender o mundo exterior, o foco se torna treinar e transformar o mundo interior – e elementos como ética e virtude se tornam mais centrais do que a exploração de recursos. Essa segunda vantagem pode só ficar clara se você entende e aceita a degradação moral e ambiental produzida pelo materialismo, e não apenas as conquistas (reais) da ciência.

Nos libertar dos grilhões da reificação é nos libertar também dos monstros terríveis que surgem nesse pesadelo distópico: as corporações, o neoliberalismo, a pós-verdade, a banalidade do mal, a epidemia de doenças mentais, a falta de sentido pós-moderna, e os objetivos grosseiros da competição por recursos. A sabedoria que reconhece a natureza ilusória de todas as coisas é a própria compaixão que se manifesta na ação que elimina o sofrimento no mundo.

E este é o “iogue das ilusões”, aquele que faz as aparências produzirem lucidez, e não aprisionamento.

Em todo caso, devido a seu foco na mente, e para nos fazer entender como funcionam as coisas com uma única substância, a substância mental, a cittamatra abusa do uso do sonho como metáfora. Embora todas as formas de budismo use a ideia do sonho, na cittamatra este é o conceito central, e o que é basicamente usado em todos os argumentos. Porém, eles não são também sabem que nosso cotidiano não é exatamente igual ao sonho da noite: ele só guarda com ele uma semelhança de tipo. O nosso sonho cotidiano que ocorre durante o dia, de modo geral, no reino humano, tem uma característica mais coesa do que o de durante à noite. A cittamatra não confunde as coisas, embora entenda, que, em essência, nossa realidade cotidiana não é diferente de um tipo de sonho.

No budismo tibetano e da Índia budista do período clássico (séc. II a XI, antes da invasão muçulmana destruir todo o budismo indiano no ano 1000), no entanto, não veem a cittamatra como a visão budista mais sofisticada. De fato, a noção de substancialidade da mente é refutada pela madhyamaka, o caminho do meio – que é considerada uma visão ainda superior.

No entendimento madhyamaka, usamos as visões da cittamatra para refutar o realismo das formas inferiores de budismo, e também da visão cética materialista (que existia na Índia clássica e antiga, e era chamada charvaka). Em outras palavras, caso a pessoa tenda a reificar a separação sujeito-objeto, e um mundo externo independente e real, a cittamatra –considerar o mundo cotidiano um sonho – é um bom antídoto. Quando há reificação do sonho, ou algum tipo de rejeição do sonho – ou a própria noção de mente se torna um motivo de fixação –, a madhyamaka se torna o melhor remédio. Na madhyamaka a limitação da metáfora do sonho é superada, e não há compromisso com qualquer forma de substancialidade, material, espiritual, dualista, monista ou de qualquer tipo. A combinação indissociável de uma versão refinada e prática da cittamatra (a yogachara), no âmbito relativo, e a ausência absoluta de fixação madhyamaka no âmbito absoluto, é a característica central da tradição nyingma do budismo tibetano.

Algumas vezes as pessoas ouvem sobre essas várias perspectivas e ficam um pouco ansiosas – para que estudar tantas visões parciais? “Entreguem direto a perspectiva da madhyamaka, e pronto.” Porém, estudamos visões parciais para destruir os fortes hábitos que temos com relação a outras visões parciais. As usamos como uma espécie de antídoto. Enfim, na madhyamaka, não resta perspectiva alguma. Não há uma formulação final de como as coisas são, e os próprios ensinamentos, inclusive os da madhyamaka, são reconhecidos como “mero sonho”. O que quer que apresentemos a um mestre madhyamaka, será reduzido à apenas sabedoria, sem formulação.

Sua Santidade o Dalai Lama costuma usar sempre o mesmo verso de homenagem ao Buda composto por Nagarjuna, no séc. II. Ele usou esse versou quando recebeu o prêmio Nobel, e o utiliza em praticamente todas as vezes que ensina o darma. O verso diz “Ao Senhor Buda que, de forma a destruir todas as perspectivas, nos concedeu o ensinamento livre de perspectivas, eu me prostro.” Não há formulação final a respeito da “realidade” no budismo. O sonho não é um “tipo de realidade”, ele é só sonho mesmo! Uma formulação dizendo “é isto”, seria em si uma forma de fixação a aparências, e uma forma de sofrimento. Afirmar uma posição tem o defeito inerente dela “precisar ser defendida”. Depois que se vê como as coisas são de fato, todo tipo de artificialidade que se usou para chegar a esse reconhecimento não tem mais nenhum sentido. Em outras palavras, o Buda surgiu como um sonho, para dar um ensinamento de sonho, para seres de sonho.



Da prece de dedicação da prática de Tara Vermelha, feita pelas sanghas do Chagdud Gonpa:
“Possa eu claramente perceber todas as experiências como sendo tão insubstanciais como o tecido do sonho durante a noite e imediatamente despertar para perceber a manifestação de sabedoria pura no surgir de cada fenômeno. Possa eu rapidamente alcançar a iluminação para trabalhar sem cessar pela liberação de todos os seres.”



Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.

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