Uma das ideias centrais do budismo mahayana é que tudo que vivenciamos é como um sonho. Qual a diferença entre dizer que tudo é como um sonho ou que tudo é simplesmente um sonho?
O ocidente tem sua parcela de tradições filosóficas e espirituais que afirmam que o que experimentamos cotidianamente não passa de um “engano em massa”. Platão usou o mito da caverna como uma analogia para o processo didático da filosofia – ela nos acordaria de uma visão convencional para uma visão mais ampla, e enfim para a realidade. A mensagem central é que, de nossa perspectiva atual, não conseguimos conceber a profundidade do que está adiante – é só quando a visão mais ampla se revela é que entendemos o quanto estávamos limitados.
Com base no platonismo, muitas formas de cristianismo tomaram essa ideia de forma um tanto mais literal. Começando com o gnosticismo – que acreditava que este mundo em que vivemos foi criado por uma divindade menor, com a função de nos aprisionar e enganar perante uma realidade mais ampla –, várias formas de pensamento cristão foram influenciadas por uma visão dupla, ou em camadas, da realidade divina se obscurecendo para os pecadores e desobscurecendo para aqueles que encontram Cristo. Para o gnosticismo, uma tradição que surgiu ao mesmo tempo e em contraposição com os patriarcas que fundaram as vertentes hegemônicas do cristianismo, Jesus seria então o grande tentador, a serpente. Cristo surgiria da verdadeira divindade para nos fazer provar o fruto da árvore do conhecimento, e abandonar esse suposto “paraíso” – do antigo testamento, e da estrutura oficial e artificial da Igreja – na direção da realidade. Vencendo assim o criador de toda essa falsidade, o grande enganador – invertendo, portanto, a interpretação do cristianismo que viveu para contar a história.
Mais adiante, Descartes nos fez duvidar de todos os dados dos sentidos, até passo a passo reconstruir tudo com base na pedra fundamental do conhecimento de primeira pessoa de uma mente pensante, e uma entidade criadora perfeitamente boa. E enfim, na transição da modernidade para a pós-modernidade, depois de Deus estar bem morto e enterrado, nossa imersão no texto e na ficção foi transformada na analogia de “mundo irreal” preferida, em que todos os limites do texto e do “real” são testados, e em que enfim chegamos a um relativismo absoluto, onde “nada é verdadeiro e tudo é permitido” – o que nos possibilita entender das grandes “banalidades do mal” e genocídios que se passaram no séc. XX até esta era da pós-verdade.
Com a cultura das drogas e em seguida a era da informação, progressivamente duvidamos de todas as formas de reificação de autoridade: da religião, dos governos, das corporações – e somos mais do que participantes, vítimas ao estilo gnóstico dessas estruturas. Num sentido mais literal somo como “cérebros numa cuba”: vivenciamos Paraísos Artificiais, Holodecks e Matrix-es. Nosso corpo é só uma ferramenta para conectar nossa mente a um gadget qualquer. Na era pós-industrial, o “sonho Americano”, mais sonho do que Americano, nos coloca em vidas plásticas, cercados de relacionamentos e objetos descartáveis, incentivados por valores que supostamente ninguém controla, como as forças do mercado. A ideia de conspiração ela mesma se torna uma arma de dominação, com o cultivo deliberado de desinformação e da perda de confiança em tudo e todos.
Hoje os gurus das startups de tecnologia da informação afirmam ser “bilhões de vezes” mais provável estarmos vivendo em uma simulação do que na “realidade”, o que nos leva a querer saber o que é mesmo essa tal realidade, tão inacessível. Claro, há implicações políticas e sociais em sonhar com outros mundos, e acreditar que as dificuldades tão reais desse planeta são só variáveis alteradas em alguma simulação de computador. Todo cuidado é pouco com esse tipo de ideia.
Ainda assim, com todas essas variações sobre o mesmo tema – a de que outras realidades nos acordam para a falsidade de nossa realidade cotidiana – a mais simples e acessível entre todas é a do sonho durante a noite. O que a tradição budista tem a dizer sobre isso? Como podemos domar a ilusão, e a fazer trabalhar a nosso favor?
Engano sem enganador
Na tradição em que o Buda foi educado já havia uma forte ideia do mundo como ilusão. Quando falamos “ilusão”, no entanto, isso – devido a nossas preconcepções ocidentais e modernas – soa como algo pejorativo, sermos “enganados”, como no gnosticismo. No entanto, no budismo não é nem um pouco assim.
Ilusão significa que as coisas são mais trabalháveis, menos rígidas, mais flexíveis. Ilusão é algo positivo, diferente de “ser iludido”.
A mãe do Buda se chamava “Maya”, e no mahayana há um treinamento da mente em que tentamos nos ver como “filhos da ilusão”. A ilusão não é um engano para o Buda – Buda significa “desperto” – mas ela não deixa de estar lá, porque ela é tudo que “existe”. A ideia platônica de uma realidade perfeita subjacente, ou as ideias de uma deidade boa ou ruim comandando a estrutura disso tudo, são todas abandonadas, não fazem sentido. O Buda é uma manifestação que surge “no sonho, para dar um ensinamento de sonho para seres de sonho” (como diz o Sutra do Bom Kalpa). Mas o Buda não se engana independente do modo de surgimento ou manifestação dele para nós, seres imersos no sonho. O Buda nunca está sonhando, ou pelo menos, nunca se engana quanto à natureza de sonho: mas mesmo assim não deixa de naturalmente surgir nos sonhos dos seres com mérito.
Mas como um ser plenamente lúcido “surge da ilusão”?
A ilusão, como já foi dito, não é algo pejorativo. De fato, nós usamos expressões “como um sonho”, para falar de algo que parecia muito bom, mas que não durou, e não era “real” – porque é essa nossa experiência com alguns sonhos da noite. Num tema comum ao budismo, o problema não é o sonho (a “ilusão”), mas o fato de que hipostasiamos “realidade” – esse é o engano. Esse problema existe – como possibilidade, e como o usual – em qualquer modo de postular uma noção de realidade, seja de que tipo for.
Como Dzongsar Khyentse Rinpoche diz, parafraseando Chandrakirti: o problema não é procurar, o problema é encontrar. Quando algo é postulado como real, quando algum lastro de qualquer tipo é estabelecido, então a raiz do engano, e do sofrimento causado por este engano, foi afixada. Nós fazemos isso o tempo todo, e nos é muito difícil conceber um mundo totalmente aberto e pleno de possibilidades: nossos hábitos mentais de reificação produzem a experiência extremamente limitada, limitante e cheia de sofrimento que vivenciamos. Mas, não precisa ser assim.
Ainda assim, como um ser plenamente lúcido “surge da ilusão”?
A lucidez é aquilo que não se engana perante qualquer coisa. A noção de nascimento ou surgimento é parte do engano – como toda causalidade, tempo e espaço. Como tudo que entendemos agora é a lógica interna do sonho, a realidade da ausência de fixação a qualquer noção de realidade nos parece ultrajante. É óbvio que o Buda nasce, as coisas surgem e desaparecem: a impermanência é um ensinamento central no budismo. Porém, por profunda que ela seja – por necessário que seja que aprofundemos nosso reconhecimento dela, a cada momento, a cada prática formal e no cotidiano –, a impermanência é umensinamento expediente. Isto é, não fala de algo mais do que da natureza das ilusões, fala apenas de nossa percepção das coisas enquanto seres tomados por ignorância.
Assim, um ser lúcido “surge da ilusão” num único modo ou sentido: perante aqueles seres que, embora totalmente imersos em ignorância, manifestaram mérito suficiente para reconhecer pelo menos uma aparência (fenômeno) que é uma porta de saída para a ignorância. Do lado do Buda, não há surgimento. No nosso lado, há surgimento, e o mais auspicioso deles é o Buda – que nos aponta a liberdade perante a ilusão, e, mais do que isto, em meio à ilusão.
O Buda “surgir” pode significar ele ter nascido em algum lugar próximo ao Nepal, tantos séculos atrás, ter pisado nessa terra e ensinado por 42 anos. Mas também pode significar os ensinamentos surgirem como relevantes na nossa vida. Ou o reconhecimento da natureza de buda em todos os seres surgir em nossa mente. Em todo caso, este é um surgimento ilusório, ainda que extremamente auspicioso. Um surgimento que acontece para nós, não do ponto de vista do que parece surgir, que é a própria sabedoria que não reifica e não produz fixação.
Quando falamos em “superar a ignorância”, pode, novamente, soar como “vamos destruir esse sonho todo, que está nos enganando”. Mas o sonho não tem volição alguma – não é como nas versões teístas em que o sonho da materialidade é produzido por um demiurgo, seja ele perfeitamente bom ou falho. O sonho não está aí para nos enganar, e ele não tem culpa nenhuma de nós nos enganarmos – muito menos ele está aí para nos paparicar com 72 virgens ou um lugar ao lado do Supremo.
Fomos nós que transformamos este sonho em algo que ele não é, e isto não ocorre nem mesmo bem por culpa nossa. Devido a forças de hábito começamos, exatamente como num bom filme, a esquecer de que se trata de um filme, e nos engajamos com a história. Assim, não há necessidade nenhuma, para acordar, de interromper o sonho. O sonho nunca foi o obstáculo, o obstáculo é quando esquecemos que existe a possibilidade de reconhecer o sonho como sonho.
A analogia usual no budismo é um quarto escuro onde há uma corda, que devido a circunstâncias como pouca luz e nossa percepção imperfeita, nos parece uma cobra. Então alguém acende a luz, e nos sentimos aliviados. Ufa, era uma corda, não uma cobra.
No entanto, o importante aqui é que a realidade, a corda, nunca nos enganou. Ela estava ali o tempo todo, sendo nada mais do que corda. Nunca sofremos a ameaça real de sermos picados por um animal peçonhento. Nós é que, por várias circunstâncias adventícias, passamos a ficar nervosos por projetarmos nela algo que não existia.
Esse engano não está na corda, nem altera em nada a natureza da corda.
“As coisas não são o que parecem, nem são qualquer outra coisa”.
300 anos antes de Cristo, Chuang Tzu teve o famoso sonho em que acordou com uma dúvida. Não sabia mais se era uma borboleta sonhando que era um ser humano, ou um ser humano que havia acabado de sonhar ser uma borboleta. Ao contrário das versões ocidentais, em que o ceticismo nos joga na direção de uma realidade mais absoluta, e mais “real”, por trás de nossa experiência cotidiana, na Ásia (mesmo a não budista) o fato de haver dúvida quanto a nosso status atual parece mais interessante do que obter uma resposta.
Há dois tipos de obstáculos a depurar no caminho budista: apego a substâncias ou essências e apego a características ou propriedades. A coisa que mais nos causa sofrimento ao reificarmos (vermos como real), é o eu, que é um tipo de apego a uma essência. Reunimos uma série de ideias a respeito de nós mesmos, tentamos lhes dar coesão, as conectamos com nosso corpo e experiência sensorial, e dizemos “sim, existe uma essência da minha pessoalidade, aquilo que realmente sou”. Isso ocorre de forma natural e automática. No entanto, mudamos o tempo todo, e quando nossas expectativas com relação a nós mesmos não são preenchidas por nossas próprias ações e circunstâncias, esta dissonância e incongruência se torna o tipo de sofrimento basal mais comum.
Depois de depurarmos o apego a essências, em particular a uma essência de individualidade – mas também o apego às essências em todas as coisas, ou mesmo a reificação de um sonho como realidade –, resta o apego a características, marcas ou sinais. Porém, nada disso implica que, na realidade, não exista nada, nem coisas nem as características. O que depuramos é nosso hábito de reificar tanto objetos quanto características, tanto a existência de uma cadeira, quanto sua cor e textura, ou o fato de que faz fronteira com os objetos ao redor, e é deles distinguível. O que abandonamos é certo atraso ou teimosia perante a natureza real que é flexível do lado da mente e do lado das coisas.
Quando acordamos de um sonho particularmente bom ou ruim, e nos sentimos aliviados ou querendo ter usufruído mais aquela experiência, mas rapidamente nos vemos novamente envolvidos com as urgências do cotidiano e esquecemos daquilo, isto demonstra a qualidade flexível da mente. Claro, sabemos como é a experiência com sonhos porque já sonhamos várias vezes. Podemos dar muita ou pouca importância aos conteúdos do sonho, mas de todo modo, o ponto crucial aqui é que rápido superamos aquela morte dentro do sonho. Ela acontece de forma tão abrupta!
Talvez pensemos que quando estivermos morrendo de uma doença demorada, num leito de hospital, isso seja muito diferente. E, de fato, a capacidade flexível da mente pode transformar a ocorrência mais corriqueira num abismo infinito e assustador. Porém, como vivenciamos o sofrimento depende totalmente de nossos hábitos mentais. Quanto mais treinamos durante a vida reforçar essências e características – um eu e as circunstâncias de um eu –, mais as dores da morte vão doer, porque elas não implicam simples dor física, mas o fim de tudo aquilo por que tão sofregamente cultivamos apego. Cada particularidade em que depositamos expectativa, nesse momento, volta para nos torturar.
Hoje, neste presente momento, muitos de nós não queremos nem imaginar o fim deste sonho particular. Por mais cheio de altos e baixos que seja, é o nosso sonho. Somos protagonistas neste filme. Quando outras pessoas morrem ao nosso redor, e encerram suas participações nesta produção particular, isso nos toca tanto porque sabemos o quanto elas ainda podiam ou queriam fazer, quanto porque nosso filme muda de rumo, algumas vezes inesperadamente, com esses atores que somem. A reificação que essas pessoas atribuíram ao sonho também nos afeta, porque sabemos que elas – todas elas, ou a maioria pelo menos – não se foram graciosamente.
Levamos isso tudo extremamente a sério. Tão a sério que por vezes, preferimos ignorar o fato simples de que o fim deste sonho/filme – abrupto ou não – é inexorável.
O uso de metáforas
O uso de metáforas sempre tem seus limites. O sonho durante a noite não é apenas uma metáfora, de fato, mas é uma experiência cotidiana nossa. Há, de fato, práticas no budismo vajrayana que lidam com a experiência de sonho durante o sono como um elemento importante, no caso, o que chamamos “Ioga dos Sonhos”. A ioga dos sonhos não tem a ver com o conteúdo dos sonhos, ou apenas com o que a metáfora do sonho revela sobre a nossa vida, mas com métodos para manter a lucidez durante o sonho (e por extensão, durante a vida). Em outras palavras, a prática vai além da metáfora.
Na visão extremamente vasta do budismo, existem seres de muitos tipos por todos os lados. Os seres humanos neste mundo têm certa capacidade para a prática do vajrayana porque suas vidas não são muito longas e porque eles têm experiências tais como sonhos durante a noite, e coisas como orgasmos e espirros. Há, segundo o budismo, seres inteligentes e que podem praticar o darma em outros lugares e épocas (lugares querendo dizer algo googleplex vezes maior do que o universo observável pela física, e tempo querendo dizer algo googleplex maior do que os meros 10-20 bilhões de anos do que este universo mensurável) – mas porque eles nem sempre dormem, ou sonham durante o sono, ou porque têm vidas longas demais, ou não têm experiências fisiológicas semelhantes a orgasmos e espirros, eles algumas vezes não têm a possibilidade de receber os ensinamentos do vajrayana. Por isso, é um motivo de regozijo essa nossa circunstância, já que os métodos do vajrayana são extremamente eficazes no lidar com essas realidades tão próprias de nossa fisiologia humana, e as transformarem em práticas espirituais.
Ainda assim, no budismo de forma geral, a noção de sonho também é usada como metáfora apenas. Outras metáforas comuns são as bolhas, o arco-íris, o reflexo da lua num lago ou numa cumbuca cheia de água, alucinações, miragens, a criação de um mágico, e assim por diante. Como a noção de impermanência, essas ideias todas nos ajudam a diminuir um pouco nossa forte tendência a substancializar as experiências e acreditar em “existência absoluta”.
Todas estas metáforas ilustram pontos, mas também precisam ser explicadas, porque cada uma delas carrega suas limitações particulares.
Tecnicamente falando
Os ensinamentos budistas que mais tratam essa realidade como uma “matrix” são os da cittamatra, uma escola da Índia Clássica que influenciou fortemente a yogachara, o budismo tibetano e o zen. Estritamente falando, a cittamatra (que se traduz como “apenas mente”) é uma forma sofisticada de idealismo filosófico ao estilo Berkeleyano, porém com uma epistemologia muito mais desenvolvida do que a de qualquer idealismo promulgado por europeus. Em outras palavras, Berkeley e outros tentaram, por algum tempo, desenvolver uma epistemologia idealista – mas o esforço asiático dentro do budismo durou século, e se ramificou em teorias anos-luz mais sofisticadas. Epistemologia significa “teoria do conhecimento”. Nossa epistemologia ocidental (e a usada pela maior parte da ciência, com algumas raras exceções) é predominantemente realista, a saber, há um mundo independente do observador. Uma epistemologia idealista significa algo como “como podemos vir a conhecer as coisas quando apenas há uma substância, e ela é mente” – como isso não redunda em solipsismo, como pode haver inferência e prova, e assim por diante. Há extensos debates e explicações sobre isso na tradição budista, por pelo menos seis séculos na Índia, e por mais tempo na China, Tibete e Japão.
A cittamatra é uma forma de monismo, só que inversa ao materialismo usual do sujeito não filosófico e não profundo hoje em dia: em vez de tudo ser feito de matéria e coisas que se combinam semialeatoriamente por leis pré-existentes, tudo é feito de mente (espírito), e a materialidade e nosso entendimento da materialidade é uma forma específica de reificação de fenômenos mentais. Isto é, a sensação (e a mesuração) da solidez ocorre porque estes fenômenos se configuram de uma forma que preenchem certos requisitos mentais. Claro, mente aqui não significa o intelecto de uma pessoa, querendo dizer que a pessoa poderia, “pensando direito”, atravessar paredes, ou algo assim. Significa antes uma série de estruturas e marcas, criadas por hábito, de forma naturalista semelhante ao que acreditamos que por “leis” coisas materiais se configuram dessa ou daquela forma. Bom, daí se pode pensar, qual é a vantagem de ter um naturalismo centrado na mente, e não na matéria? Há duas vantagens, é possível explicar a própria mente de forma melhor (as tentativas materialistas/realistas de explicar a mente são francamente ridículas), e em vez de se focar em transformar e entender o mundo exterior, o foco se torna treinar e transformar o mundo interior – e elementos como ética e virtude se tornam mais centrais do que a exploração de recursos. Essa segunda vantagem pode só ficar clara se você entende e aceita a degradação moral e ambiental produzida pelo materialismo, e não apenas as conquistas (reais) da ciência.
Nos libertar dos grilhões da reificação é nos libertar também dos monstros terríveis que surgem nesse pesadelo distópico: as corporações, o neoliberalismo, a pós-verdade, a banalidade do mal, a epidemia de doenças mentais, a falta de sentido pós-moderna, e os objetivos grosseiros da competição por recursos. A sabedoria que reconhece a natureza ilusória de todas as coisas é a própria compaixão que se manifesta na ação que elimina o sofrimento no mundo.
E este é o “iogue das ilusões”, aquele que faz as aparências produzirem lucidez, e não aprisionamento.
Em todo caso, devido a seu foco na mente, e para nos fazer entender como funcionam as coisas com uma única substância, a substância mental, a cittamatra abusa do uso do sonho como metáfora. Embora todas as formas de budismo use a ideia do sonho, na cittamatra este é o conceito central, e o que é basicamente usado em todos os argumentos. Porém, eles não são também sabem que nosso cotidiano não é exatamente igual ao sonho da noite: ele só guarda com ele uma semelhança de tipo. O nosso sonho cotidiano que ocorre durante o dia, de modo geral, no reino humano, tem uma característica mais coesa do que o de durante à noite. A cittamatra não confunde as coisas, embora entenda, que, em essência, nossa realidade cotidiana não é diferente de um tipo de sonho.
No budismo tibetano e da Índia budista do período clássico (séc. II a XI, antes da invasão muçulmana destruir todo o budismo indiano no ano 1000), no entanto, não veem a cittamatra como a visão budista mais sofisticada. De fato, a noção de substancialidade da mente é refutada pela madhyamaka, o caminho do meio – que é considerada uma visão ainda superior.
No entendimento madhyamaka, usamos as visões da cittamatra para refutar o realismo das formas inferiores de budismo, e também da visão cética materialista (que existia na Índia clássica e antiga, e era chamada charvaka). Em outras palavras, caso a pessoa tenda a reificar a separação sujeito-objeto, e um mundo externo independente e real, a cittamatra –considerar o mundo cotidiano um sonho – é um bom antídoto. Quando há reificação do sonho, ou algum tipo de rejeição do sonho – ou a própria noção de mente se torna um motivo de fixação –, a madhyamaka se torna o melhor remédio. Na madhyamaka a limitação da metáfora do sonho é superada, e não há compromisso com qualquer forma de substancialidade, material, espiritual, dualista, monista ou de qualquer tipo. A combinação indissociável de uma versão refinada e prática da cittamatra (a yogachara), no âmbito relativo, e a ausência absoluta de fixação madhyamaka no âmbito absoluto, é a característica central da tradição nyingma do budismo tibetano.
Algumas vezes as pessoas ouvem sobre essas várias perspectivas e ficam um pouco ansiosas – para que estudar tantas visões parciais? “Entreguem direto a perspectiva da madhyamaka, e pronto.” Porém, estudamos visões parciais para destruir os fortes hábitos que temos com relação a outras visões parciais. As usamos como uma espécie de antídoto. Enfim, na madhyamaka, não resta perspectiva alguma. Não há uma formulação final de como as coisas são, e os próprios ensinamentos, inclusive os da madhyamaka, são reconhecidos como “mero sonho”. O que quer que apresentemos a um mestre madhyamaka, será reduzido à apenas sabedoria, sem formulação.
Sua Santidade o Dalai Lama costuma usar sempre o mesmo verso de homenagem ao Buda composto por Nagarjuna, no séc. II. Ele usou esse versou quando recebeu o prêmio Nobel, e o utiliza em praticamente todas as vezes que ensina o darma. O verso diz “Ao Senhor Buda que, de forma a destruir todas as perspectivas, nos concedeu o ensinamento livre de perspectivas, eu me prostro.” Não há formulação final a respeito da “realidade” no budismo. O sonho não é um “tipo de realidade”, ele é só sonho mesmo! Uma formulação dizendo “é isto”, seria em si uma forma de fixação a aparências, e uma forma de sofrimento. Afirmar uma posição tem o defeito inerente dela “precisar ser defendida”. Depois que se vê como as coisas são de fato, todo tipo de artificialidade que se usou para chegar a esse reconhecimento não tem mais nenhum sentido. Em outras palavras, o Buda surgiu como um sonho, para dar um ensinamento de sonho, para seres de sonho.
Da prece de dedicação da prática de Tara Vermelha, feita pelas sanghas do Chagdud Gonpa:
“Possa eu claramente perceber todas as experiências como sendo tão insubstanciais como o tecido do sonho durante a noite e imediatamente despertar para perceber a manifestação de sabedoria pura no surgir de cada fenômeno. Possa eu rapidamente alcançar a iluminação para trabalhar sem cessar pela liberação de todos os seres.”
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.