Tentamos fazer com que as coisas fiquem do jeito que estão, nos agarramos à ideia de permanência. Normalmente, somos muito resistentes à ideia de mudança, em especial de mudança naquilo que prezamos. Claro que gostamos de que as coisas mudem, quando se trata de algo de que não gostamos; mas, quando é algo de que gostamos, seguramos.
Existem vários níveis de mudança, é claro.
Existe a mudança grosseira – o clima muda constantemente, os mares mudam o tempo todo, a terra está mudando. Com o tempo, tudo se transforma por completo.
Existe a mudança mais sutil em nossa vida cotidiana, na qual sempre estão acontecendo coisas. Relacionamentos, lares e bens vêm e depois os perdemos. Nosso corpo muda. No princípio, somos seres minúsculos, indefesos e vulneráveis, e então crescemos, amadurecemos, envelhecemos e morremos.
E existe a mudança momentânea, ainda mais sutil. Na verdade, nada permanece igual por dois instantes de tempo. A vida é como um rio, sempre fluindo. Heráclito, o filósofo grego, disse que nenhum homem pisa no mesmo rio duas vezes. Mas a verdade é que o mesmo homem nunca pode pisar duas vezes no rio. Tudo está mudando. Por isso, sofremos.
A vida é insatisfatória, porque está sempre mudando. Não tem o cerne sólido que sempre esperamos agarrar. Queremos segurança e acreditamos que nossa felicidade reside em estarmos seguros. E assim, tentamos tornar as coisas permanentes.
Essa escultura, chamada de "Embrance", foi criada pelo The Pier Group para o festival Burning Man de 2014. A escultura foi completamente queimada.
Escolhemos casas que parecem muito permanentes e então as mobiliamos. Investimos em relacionamentos que esperamos durarem para sempre. Temos filhos e esperamos que eles também possam consolidar essa ideia de identidade, de algo que seja constante. Temos filhos e amamos nossos filhos, de modo que nossos filhos nos amarão e isso será assim por muito, muito tempo, durante toda a nossa vida. Nossos filhos são a nossa segurança.
Mas não existe segurança nisso, porque a segurança é muito insegura. A verdadeira segurança provém apenas do conforto com a insegurança. Ficarmos à vontade com o fluxo das coisas, ficarmos à vontade ao estarmos inseguros, essa é a maior segurança, pois nada pode nos tirar do prumo.
Enquanto tentamos solidificar, parar o fluxo da água, represá-la, manter as coisas do jeito que elas são, porque isso nos faz sentir seguros e protegidos, estamos enrascados. Essa atitude vai direto de encontro a todo o fluxo da vida.
Tudo muda, de momento a momento, a cada momento. Até na física aprendemos que objetos que parecem sólidos e estáveis na verdade estão em estado de movimento constante. Os objetos não são estáveis, não permanecem fixos e imutáveis, embora nossos sentidos nos deem essa impressão distorcida.
Olhamos uns para os outros. Vejo você hoje. E amanhã, você parecerá o mesmo para mim. Mas você não será o mesmo. Tanta coisa aconteceu, mesmo em nível celular, ao longo desse tempo. Células crescem e morrem, elas estão sempre mudando. E nós também estamos sempre mudando na mente, de momento a momento, a cada momento.
Embora tentemos solidificar as coisas e mantê-las do jeito que sempre foram, não podemos fazer isso. É como aqueles velhos castelos. Construímos paredes sólidas muito espessas e pensamos que vão durar para sempre, que nenhum ataque jamais irá mudá-las. Mas é uma delusão.
Mesmo que tentemos segurar o rio de nossa vida, ele fluirá de qualquer maneira. Não podemos segurar o rio nos agarrando a ele. O jeito de pegar o rio é segurar muito de leve. Não é necessário sofrer. Quando sofremos, sofremos porque nossa mente é deludida e não vemos as coisas como realmente são. Temos medo, medo de perder, e sentimos dor quando perdemos. Mas a natureza das coisas é vir a existir, durar por um tempo e então acabar.
Nossa cultura considera a questão da perda muito difícil. Nossa cultura é muito boa em pegar. Nossa cultura de consumo, especialmente hoje em dia, é toda voltada apenas para pegar, pegar, pegar. Jogamos fora coisas que ontem mesmo estavam na moda, mas que não estão mais na moda hoje, para pegarmos alguma coisa nova.
Entretanto, não temos essa atitude em relação a nosso corpo ou ao corpo dos outros. Não achamos que nós também precisamos ser reciclados de tempos em tempos, mas somos. É irônico que em nossa sociedade todo mundo fale abertamente sobre sexo, que em outras sociedades é um grande tabu.
Contudo, em nossa sociedade o grande tabu é a morte.
Fui criada em uma família espiritualista. Minha mãe era espiritualista, e realizávamos sessões em nossa casa todas as semanas. Na minha casa a morte era um assunto diário, era um tópico sobre o qual falávamos com grande dose de entusiasmo e interesse. Não era mórbido. E nas poucas ocasiões da minha vida em que realmente pensei “Estou prestes a morrer agora”, a reação seguinte sempre foi: “Vamos ver o que acontece”. Creio que seja porque, quando eu era criança, a morte era um tema aberto.
Sou profundamente grata a isso, porque falar da morte em nossa sociedade geralmente deixa as pessoas desconfortáveis. Tanta gente tem medo da própria morte e da morte dos outros. Não aceitamos que tudo que vem a existir dura um tempo e depois acaba. Mas o ciclo é esse.
Tudo é impermanente. E o que nos causa dor é a não aceitação disso. Em nossos relacionamentos, vivemos divididos entre a esperança e o medo porque seguramos com muita força, com muito medo de perder.
Tudo está fluindo. E esse fluxo não é composto apenas por coisas externas. Inclui os relacionamentos também. Alguns relacionamentos duram um longo tempo, outros não – é assim que as coisas são. Algumas pessoas permanecem aqui por um longo tempo, outras partem muito rapidamente. É assim que as coisas são.
Todo ano, milhões e milhões de pessoas nascem e morrem. No Ocidente, nossa falta de aceitação é deveras espantosa. Não aceitamos que um dia possamos perder qualquer uma das pessoas que amamos. É muito comum sermos incapazes de dizer a alguém que esteja morrendo: “Somos tão felizes por ter tido você conosco. Mas agora, por favor,siga em frente, em uma jornada muito feliz e segura.” É essa negação que nos causa dor.
A impermanência não é de interesse apenas filosófico. É de interesse pessoal.
Somente quando aceitarmos e entendermos profundamente em nosso ser, que as coisas mudam de momento a momento e nunca param um instante sequer, só então conseguiremos soltar. E, quando realmente soltamos dentro de nós, o alívio é enorme.
Ironicamente, isso dá vazão a toda uma nova dimensão de amor. As pessoas pensam que se alguém é desapegado, é frio. Mas isso não é verdade.
Qualquer um que encontre grandes mestres espirituais, realmente desapegados, ficará impressionado com o afeto deles por todos os seres, não só aqueles dos quais gostam ou com quem se relacionam. O desapego libera algo muito profundo dentro de nós, porque libera aquele nível de medo. Todos nós temos muito medo: medo de perder, medo da mudança, uma incapacidade de simplesmente aceitar.
Desse modo, a questão da impermanência não é apenas acadêmica. Temos realmente que aprender a como enxergá-la em nossa vida cotidiana.
Na prática budista da atenção mental, de estar presente no momento, uma das coisas que primeiro impressiona é como as coisas estão constantemente fluindo, aparecendo e desaparecendo de maneira contínua. É como uma dança. E temos que dar espaço a cada ser, para que ele dance a sua dança. Tudo está dançando, até as moléculas dentro das células estão dançando.
Tornamos nossa vida muito pesada. Temos fardos incrivelmente pesados, que carregamos conosco como pedras dentro de uma grande mochila. Pensamos que carregar esse mochilão é a nossa segurança, pensamos que nos dá base. Não percebemos a liberdade, a leveza de simplesmente largar, soltar a mochila. Isso não significa abandonar os relacionamentos, não significa abandonar a profissão, a família ou a casa. Não tem nada a ver com isso, não é uma mudança externa. É uma mudança interna. É a mudança de deixar de segurar com muita força para segurar bem de leve.
Recentemente, estava em Adelaide, na Austrália, e alguém me deu uma tirinha de quadrinhos que mostrava como segurar coisas: o primeiro desenho era sobre segurar gentilmente, como ao segurar um pintinho; o segundo desenho abordava diferentes maneiras de segurar as coisas de modo hábil, com honra e respeito, mas não com força; e o último desenho dizia, “Depois disso, temos que soltar. Mas isso é uma coisa totalmente diferente – vamos tratar dela mais tarde!”
Sim, temos que saber como segurar as coisas de leve, e com alegria. Isso nos permite ficar abertos ao fluxo da vida. Quando solidificamos, perdemos muito.
Envolvidos na relação com nosso parceiro, com nossos filhos e com outras pessoas nesse mundo, podemos solidificá-los ao atribuir um papel a eles. É como nós os vemos. Depois de um tempo, não experienciamos mais a pessoa real do momento. Vemos apenas a nossa projeção da pessoa. Embora ela seja completamente única, e possa estar de fato se transformando e mudando por dentro, não enxergamos isso, porque tudo o que vemos é o nosso padrão. E então as pessoas se cansam umas das outras, ou no mínimo ficam meio que trancadas em um relacionamento que perdeu a vitalidade original.
Como eu disse, isso é porque não experienciamos o momento atual, experienciamos apenas a nossa versão dos eventos.
Quando olhamos alguma coisa, vemos tal coisa por um momento, mas imediatamente nossos julgamentos, opiniões e comparações entram em cena. Tornam-se filtros entre nós e a pessoa ou o objeto que olhamos, e esses filtros nos distanciam cada vez mais do que é. Restam nossas próprias impressões e ideias, mas a coisa em si se foi. Isso é especialmente verdadeiro quando nosso objeto são outras pessoas.
Todos nós sabemos que, quando as pessoas estão relatando um acontecimento, é quase como se cada uma estivesse contando uma história diferente. Todos nós passamos pela experiência de ouvir alguém contar um acontecimento que compartilhamos e pensar algo do tipo: “Não foi assim que aconteceu!”, “Não disseram isso!”, ou “Não foi nada disso, você não entendeu coisa nenhuma!”. Em outras palavras, tudo se torna incrivelmente subjetivo.
Não vemos a coisa em si, vemos apenas a nossa versão. E onde isso se reflete de modo mais claro é em nossa resistência ao fato de que todos nós estamos mudando de momento a momento.
É como se o tapete debaixo de nossos pés fosse continuamente puxado, e não conseguíssemos suportar isso. “Esse tapete vai ficar exatamente onde eu quero que ele fique. O mesmo tapete debaixo dos mesmos pés.” E porque isso jamais vai acontecer, já que, por mais que fiquemos nos iludindo, nunca poderemos ter as coisas exatamente do mesmo jeito, sentimos essa dor.
É muito importante entender que nossa felicidade e paz mental não provêm da busca de segurança na permanência e na estabilidade. Nossa felicidade vem de encontrarmos segurança na natureza sempre cambiante das coisas.
Se nos sentimos felizes e, por conseguinte, somos capazes de flutuar na corrente, nada pode nos aborrecer. Porém, se construímos algo tão rígido, querendo que não mude nunca – um relacionamento, nosso emprego, qualquer coisa, quando o perdemos, ficamos totalmente fora do prumo.
Em geral, as pessoas pensam que a mudança constante das coisas é algo assustador. Mas, quando realmente entendemos que a verdadeira natureza das coisas de fato é fluir, mudar, aí ficamos completamente equilibrados, abertos e receptivos. Quando tentamos represar o fluxo, a água fica muito estagnada. Temos que deixar as coisas fluírem. Aí a água estará sempre fresca e límpida.
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Nota do editor: este texto é um trecho do livro No Coração da Vida, de Jetsunma Tenzin Palmo, uma das mais conhecidas professoras da prática budista. Ele foi traduzido e publicado pela editora Lúcida Letra, do Vitor Barreto, amigo e autor no PapodeHomem.
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Para ler mais:
Qual a diferença entre amor romântico e amor genuíno (que passamos a vida inteira sem nos dar conta)?, de Gustavo Gitti
Podemos usar nossas próprias aflições mentais para cultivar uma mente mais saudável?, de Yongey Mingyur Rinpoche
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