O ego pode se apropriar até mesmo das ferramentas que mais diretamente surgiram para enfrentá-lo.
Quando cursei filosofia, reli Walden, de Thoureau, após muitos anos. Não me entendam mal na avaliação que segue no segundo parágrafo: a prosa de Thoureau é extraordinária, e o experimento todo, no seu contexto espaço-temporal, é também algo digno de respeito. Os transcendentalistas, como já escrevi em outros textos, são a mais requintada mistura do espírito maverick estadunidense com o iluminismo e o começo daquele cosmopolitanismo que viria a desembocar no multiculturalismo – que evidentemente é uma boa coisa, que permite, por exemplo, que ocidentais como nós admiremos e pratiquemos uma tradição asiática como o budismo. E, claro, o experimento de Thoureau também era uma reação dramática contra o status quo, que em alguns sentidos vale até hoje: um sujeito que vai para o mato, em plena revolução industrial, para ver o quanto mesmo ele precisa trabalhar, quando não está ocupado em agradar as expectativas dos outros. Fantástico.
Porém, quando reli este livro, após alguns anos de prática do darma, em particular do vajrayana, o que se salientou foi o reconhecimento de uma perspectiva de autocentramento, ou mesmo uma mentalidade de pobreza em Thoureau – isto é, uma perspectiva no fundo, autolimitadora, e não libertadora. Com relação ao autocentramento, é fácil entender, o espírito independente, por vários aspectos positivos que tenha, tende ao individualismo, e Thoureau, ninguém irá negar, se especializava em “fazer as coisas a seu modo”, acima de qualquer advertência ou feedback. No caso dele isso pode não ter produzido exatamente um asshole (babaca? cretino?), como muitas vezes produz, mas certamente havia um pouco da mentalidade mesquinha, da economia dos recursos próprios para o autodesenvolvimento, sem olhar tanto para as necessidades dos outros. Mesmo considerando que ele estivesse dedicado à escrita, e com isso, ansiasse por leitores, e tenha beneficiado muitas pessoas com sua narrativa.
Ainda assim, é claro que Thoureau não tinha em mente qualquer tipo de comprometimento perante leitores, e nem imaginaria algo assim. Sua noção radical de liberdade incluía uma visão de compaixão, mas era uma compaixão, se pode dizer, em certo sentido restrita, pequena. Essa perspectiva também existe na tradição budista, e é relativamente válida.
Refletindo sobre isso e sobre muitas atitudes que vejo na sanga incipiente, reconheci que o espírito individualista (do qual certamente os transcendentalistas não são culpados, mas que ampliaram e divulgaram como ninguém) unido a uma noção distorcida de materialismo espiritual, junto com os sempre presentes estereótipos, tanto sobre o que é um budista, e sobre a própria condição, quanto sobre a condição do “darma no ocidente”, leva muitas vezes a um empobrecimento da perspectiva e da prática budista.
“Materialismo espiritual” é um termo cunhado por Chögyam Trungpa Rinpoche – mestre consumado que era chamado pelo mais elevado título dentro do vajrayana, “rigdzin” (“vidyadhara”), isto é, alguém que detém o reconhecimento da natureza da realidade, além dos sonhos adventícios que incluem o próprio espaço e o tempo. O materialismo espiritual é apropriação da prática espiritual pela perspectiva mundana, para autoengrandecimento ou autojustificação, e inclui desde praticar a espiritualidade para sustentar uma imagem de “pessoa do bem”, até usar os ensinamentos para encontrar um “lugar no mundo”, no extremo na forma de uma carreira, mas no mínimo como identidade perante os outros, e como forma de inserção no mundo.
Porém, o sofisticado ensinamento sobre materialismo espiritual é muitas vezes rebaixado a uma condenação ao aspecto material ou formal da prática. Algumas vezes as pessoas dizem que determinados elementos da prática, especialmente rituais, ou a aquisição dos muitos apetrechos do vajrayana (sino, textos, roupas), configuram por si só “materialismo espiritual”; algumas pessoas chegam ao ponto de chamar de materialismo espiritual as tradicionais acumulações de milhares de mantras, ou de tempo de meditação e os retiros longos, que os praticantes tradicionalmente fazem no budismo tibetano.
Evidentemente, apetrechos e rituais elaborados podem ajudar a cristalizar uma “identidade de praticante”, que por sua vez, pode se tornar materialismo espiritual. Mas em si mesmos eles não são, de forma alguma, materialismo espiritual. Todos os métodos aparentes do budismo são uma manifestação da compaixão dos budas. A mentalidade empobrecida pode até gerar uma identidade de despojamento, que abre mão da prática formal, do professor, dos textos, da postura de meditação, dos votos, da perspectiva do refúgio, do convívio com a sanga, do estudo sistemático, e das oferendas de tempo, trabalho e dinheiro ao darma – e esse abandono todo, como também apropriação de um conceito budista (no caso o próprio “materialismo espiritual”) para a autojustificação, configura exata, justa e novamente apenas materialismo espiritual. Esse modo do materialismo se estabelece como apenas uma espécie de apego à noção do “não materialismo”, novamente uma forma de construir uma “identidade de praticante”. Agora uma identidade de isentão, budista de internet, ou mesmo “não praticante”, sem compromissos, de desgarrado ou despojado das formas, alguém que “renuncia ao próprio darma”, já que o darma exposto em termos qualquer estrutura possível seria apenas um dedo que aponta para a lua, e o que interessa é a lua, evidentemente. Taca fogo nesse dedo de uma vez, então!
Claro, porque a lua está sendo incessantemente reconhecida sem nenhum suporte relativo. Não sei nem porque usar a palavra “budismo” ou falar no assunto, então. Imagina se algo assim seria uma desculpa!
Em vez de uma compreensão aguda dos quatro pensamentos que transformam a mente (nascimento humano precioso, impermanência, carma e insatisfatoriedade inerente ao samsara), ocorre uma desqualificação de qualquer método sublime e testado pela linhagem em nome de uma sabedoria meramente nominal, isto é, uma ideia meio nebulosa de sabedoria que surge de ver uns vídeos e pensar alguns minutos, de forma não sistemática, sobre o assunto. Basicamente, um “insight de maconheiro”. Muito menos que um remendo mal feito (a metáfora usual para quem toma entendimento intelectual por realização), uma falta de honestidade para consigo mesmo, e para com a tradição budista inteira.
Os grupos e fóruns de budismo na internet estão basicamente cheios desse tipo de “realização espiritual”, tornando esses lugares basicamente as piores fontes sobre o budismo que existem. Essa perspectiva é ainda pior do que aqueles reformistas para a modernização do darma que já querem mudar tudo sem nem mesmo conhecer o darma com qualquer profundidade ou ter feito três dias de prática consistente, que são também bastante comuns!
Se as instituições budistas e a sanga como estrutura de sustentação do darma são negados como um todo, o que resta para os aspectos menores dos métodos específicos? Que dizer da mentalidade que abdica de qualquer baliza que signifique a consecução de uma prática – tal como a contagem de mantras – porque isso, porventura, pode se tornar um ponto de fixação? O fato é que a tradição, inclusive a tradição que Trungpa Rinpoche passou a seus próprios alunos, tem essas balizas: e a tradição tem embutidos inúmeros mecanismos para evitar que essas “metas projetadas” se tornem materialismo espiritual. Isto está previsto na prática, e em como se deve lidar com esses números (um aspecto, por exemplo, é que as acumulações são assunto privado, você não fala sobre elas, outro aspecto é a dedicação de mérito – a sua prática é uma oferenda). Uma pessoa que não se engajou em nenhum modo tradicional de prática e julga esses modos como contraproducentes está apenas fazendo afirmações frívolas.
Não há semana sem que uma citação do Dalai Lama falando de “excesso de ritualística” no budismo tibetano não passe pelo meu Facebook. No entanto me pergunto se essas pessoas conhecem a prática do próprio Dalai Lama, ou dos grandes praticantes ocidentais que receberam iniciações e orientação direta dele. Imagino realmente que, fora de contexto uma afirmação assim possa parecer uma liberação da estrutura aparentemente claustrofóbica do detalhismo tibetano. (A maioria das citações budistas que se vê são mal interpretadas devido a falta de contexto). Porém, o fato é que o que parece excessivo para alguns pode ser qualquer nível de ritual, até mesmo manter um altar, ou recitar votos de refúgio em voz alta.
Essa mentalidade de pobreza, ou “medo” do materialismo espiritual, pode levar ao que o budismo descreve como o “extremo do niilismo”. Nesse extremo, há uma indisposição, ainda que leve, com o aspecto relativo. Na perspectiva saudável, embora o aspecto relativo seja reconhecido como inteiramente sem fundamento, ele é completamente aceito sem nenhum tipo de má vontade. Embora não seja reificado – não seja levado a sério – ele não é em nenhum aspecto negligenciado. Isso implica, por um lado, as “obrigações” mundanas, com a “sociedade” (boletos!) e principalmente as pessoas que nos são próximas, e enfim com todos os seres – um pouco a contragosto de Thoureau, que não queria responder a ninguém, apenas à própria consciência – mas também implica dar prioridade à prática espiritual com algum nível de estrutura, ela também parte do aspecto relativo.
Nessa abordagem não há um aprisionamento ao relativo, mas um usufruto completo da perspectiva absoluta só pode ter como resultado uma boa vontade completa com o aspecto relativo, seja este mundano, seja espiritual.
Os Três Veículos
Embora isso não seja claro para muitas pessoas, o vajrayana não é uma escola, tradição ou linhagem – ainda que existam muitas escolas, tradições e linhagens que foquem o vajrayana. Nenhum yana é identificado como uma tradição, uma escola, ou uma linhagem – ainda que algumas vezes a nomenclatura “mahayana” seja usada mais amplamente dessa forma na literatura técnica. Algumas pessoas, ao serem perguntadas que tipo de budismo praticam, respondem “vajrayana” ou “budismo tibetano” – e embora ambas as respostas tenham problemas, num âmbito laico apenas a segunda resposta é aceitável. A primeira resposta passa a ideia de que o vajrayana é possível sem os outros yanas, o que é um absurdo. Além do que um praticante vajrayana, por discrição e para não soar arrogante, não afirmaria “eu pratico os métodos mais sofisticados do budismo”, que é o que “vajrayana” implica.
Claro, o “budismo tibetano” não é tibetano, mas uma mistura de vários budismos de origem indiana, e até um pouco da tradição chinesa, que chegaram ao Tibete. Dizer que se pratica o “budismo tibetano” pode informar um leigo, mas também não é, estritamente falando, justo com a tradição. Além disso, não devemos ver o budismo como inerentemente atrelado aos aspectos culturais ou de uma etnia. O budismo que os tibetanos preservaram tem aspectos culturais, mas todos os métodos têm sua origem nos ensinamentos do Buda, e na visão dos próprios tibetanos, eles vieram todos do Buda. Quando ocidentais dizem que o vajrayana é um budismo com elementos tibetanos ou hinduístas, eles afirmam tal coisa ignorando a própria tradição, que se reconhece e se valida como tendo sua origem integralmente no Buda. Você é curioso com o darma e toma refúgio no historiador, ou você toma refúgio no darma e é curioso com o historiador?
“Yana”, veículo, é um termo que surgiu para designar sucessivas interpretações ou perspectivas do ensinamento do Buda. Assim, o hinayana (“caminho estreito”), foca justamente a tal perspectiva da mentalidade de pobreza, e foi ensinado pelo Buda para seres peculiarmente “covardes” – no sentido de que eles não se acham capazes de um dia revelar qualidades que beneficiem cada um dos seres, mas definitivamente se acham capazes de beneficiar a si próprios, num sentido “supramundano”, claro. Melhor não pensar amplamente demais, e assim se perder em expectativas injustificadas, não é mesmo?
Algumas pessoas ficam extremamente chateadas ao ler uma descrição assim, porque elas acham que estamos falando de um grupo de praticantes determinado no espaço e no tempo, e que isso é uma crítica sectária. Ora, qualquer um que encare os ensinamentos budistas sem essa perspectiva (de se comprometer com a iluminação de todos os seres, e não apenas com a própria) é um praticante do hinayana, pertença a que tradição pertencer. O budismo indo-tibetano e as tradições mahayana em geral apenas usaram essa classificação para chamar a atenção para o fato de que há ensinamentos legítimos do Buda direcionados para essa perspectiva, e eles produzem resultado. A pessoa pode perfeitamente ter esse foco estreito e ainda assim o Buda, em sua grande compaixão, deixou uma infinidade de métodos que podem ser usados nesse contexto (nessa mentalidade meio Walden) e que produzem um resultado definitivo.
Porém, esse resultado definitivo produzido pelo hinayana no indivíduo não é idêntico à realização do Buda. A segunda perspectiva, o mahayana, é que, após muitas vidas de prática, alguém pode revelar todas as qualidades de um Buda – beneficiando assim a todos os seres sem exceção. Veja como já nessa mera descrição a pessoa que se fixa à noção de materialismo espiritual pode usar essa visão grandiosa para justificar uma escolha pelo hinayana. Ora, “budista não quer ser melhor que os outros”, certamente somos mais humildes que isso! Como somos humildes, não assumimos essas coisas de vastidão ou riqueza: a visão mais mesquinha possível é a realista, é a que vale! Lá fora as coisas não são bem assim, meu irmão. Não só eu só posso beneficiar a mim mesmo, como pensar que eu posso beneficiar os outros só pode ser uma extrema arrogância!
Nessa mentalidade, a pessoa não quer erguer o pescocinho e proclamar o yana descrito como “melhor”: essas nomenclaturas são apenas uma invenção desse pessoal para rebaixar os outros. Que ousadia desses mahayanistas ficarem dizendo que existem práticas espirituais – completas, genuínas –, mas inferiores! O próprio fato de falarem em melhor e pior já em si configura materialismo espiritual!
E então surge esse montão de gente com complexo de santidade, em que a sanga budista não serve para nada, porque é feita de pessoas imperfeitas. Chuta-se uma moita – principalmente em grupo de internet – e saem milhares.
Bom, esse tipo de jogo niilista com as palavras pode servir a uma comunidade hippie ou a perspectivas new age, mas nenhuma forma de budismo opera sem o reconhecimento do valor dos ensinamentos (e sanga, e prática formal, e coisas como acumulações). É possível que tradições budistas não falem em yanas, mas elas necessariamente descrevem várias formas de pensar não budistas como inferiores. Até umas melhores e umas piores, mas a melhor de todas, sempre a perspectiva do Buda. É simples amor próprio. Não há nenhuma contradição aqui, aliás, haveria contradição se uma pessoa seguindo um método específico achasse que qualquer método serve igualmente. Isso seria o cúmulo da arbitrariedade. Ora, é porque as pessoas veem valor em certas particularidades – e cuidadosamente se asseguraram do valor do que estão examinando – que elas se engajam nessas particularidades. Caso haja uma identificação não saudável à particularidade, aí temos coisas como sectarismo e guerras religiosas, e assim por diante. Mas o mero fato de haver uma particularidade e uma identificação não arbitrária e não solidificada a essa particularidade, não configura nenhum tipo de materialismo espiritual, fracasso ou desrespeito. Ora, respeitar a opinião do outro inclui a respeitar quando, e especialmente quando, ela está justamente errada! (Desde que ela não seja uma visão errônea, é claro, nesse caso a opinião é uma fonte de sofrimento e não deve ser respeitada.)
A união dos três yanas
Sua Santidade o Dalai Lama já afirmou que, embora o diferencial dos ensinamentos vajrayana seja classicamente descrito como o uso das aflições mentais – tais como o desejo ou a raiva – no caminho espiritual, o fato é que mesmo apenas o hinayana já faz esse uso. Afinal de contas, essa mentalidade de pobreza é o que nos leva a reconhecer que está tudo errado com as coisas e assumir renúncia. É justamente o que nos leva a reconhecer o samsara, a experiência cíclica, como insatisfatória – algo essencial para todos os níveis de prática. (Em certo sentido, embora a mentalidade de pobreza por si só produza mais sofrimento e mais pobreza, quando o refúgio no Buda está presente – quando há ao menos um foco de amplidão e riqueza na mente –, a mentalidade de pobreza pode ser efetivamente usada como caminho espiritual: ela redunda no hinayana.)
Assim, são descritos três aflições mentais básicas, e as três correspondem aos yanas: o hinayana corresponde à aflição da aversão ou raiva – porque foca na renúncia e reconhecimento da natureza cheia de sofrimento do samsara; o mahayana corresponde à aflição do desejo ou apego – porque foca na preocupação com os seres, e em seu benefício, e no contínuo revelar de qualidades; e o vajrayana corresponde à aflição da ignorância – uma vez que diretamente usa a própria ilusão do sonho (todas as noções duais) como método espiritual, como por exemplo, a meditação em formas de deidades, nas energias do corpo ou diretamente na natureza da mente, reconhecendo todas suas expressões como sendo de uma mesma natureza. Isto está no cerne do ensinamento vajrayana que explica que o aspecto puro ou a essência de cada emoção aflitiva é de fato uma sabedoria não sendo reconhecida e exercida, e que a aflição pode ser reconhecida em sua natureza verdadeira.
O vajrayana olha para a mentalidade de pobreza do hinayana e diz “ótimo, pelo menos aí a mente se volta para o darma e renuncia ao samsara”. Ele olha para a mentalidade grandiosa do mahayana e diz “fantástico, a pessoa não hesitar perante uma tarefa que vai levar milhões de vidas (levar todos os seres à iluminação) é a própria expressão da mente além do tempo”. Ele olha para a própria mentalidade e diz: “eu lambo o mel da navalha de unir realização e prática como se não houvesse dois momentos”.
A partir dessa perspectiva, o hinayana é focado em comportamento – em ética. Não é que não haja meditação e outras práticas no hinayana, mas quando a ênfase ou prioridade da prática é uma vida ilibada e um aspecto livre de máculas, certa santidade individualista (semelhante mesmo à perspectiva de Thoureau com seu experimento) isso pode implicar limitação. Da mesma forma que com os outros aspectos do caminho, não é o fato de ter uma vida ilibada ou ética que vai ser o problema – aliás, elas são imprescindíveis, e sem a prática do hinayana, o mahayana e o vajrayana não são possíveis: os yanas são cumulativos. É apenas que existe uma tendência para a seriedade, ou despojamento – uma fixação ou seriedade ali –, em alguns casos isso pode impedir a flexibilidade que permite a operação de uma mente mais ampla.
O mahayana, portanto, é quando a ética e a vida ilibada são tidas como importantes, mas secundárias frente às necessidades reais dos seres. O exemplo clássico é que, no hinayana, ao ver um cervo passar e ser perguntado por um caçador para onde o animal foi, é necessário falar a verdade ou ficar em silêncio. Para o mahayana, é perfeitamente lícito assumir a responsabilidade de mentir para proteger uma vida. Isso vem de uma mente que não se prende a prescrições, mas que tem flexibilidade para lidar com as situações, e não se importa tanto com as consequências para si próprio – tanto as cármicas como, muito mais ainda, as em termos de reputação – mas sim se importa com o real benefício dos seres, no caso, o benefício tanto ao caçador, dificultando com que ele cometa a desvirtude de matar, quanto ao animal, ao proteger sua vida.
O vajrayana adiciona um elemento selvagem a essa sabedoria. E, ao ler isso, podemos pensar em alguém agindo de forma tresloucada, mas o fato é que a sabedoria é incorporada a qualquer elemento formal ou informal – não há sobras, não há aspecto que não seja coberto. Assim, além de uma mente ampla, há esse aspecto de riqueza. Na prática o que ocorre é que o vajrayana dispõe de “meios hábeis”, ou miríades de estruturas tradicionais e elaborações bizantinas, que cobrem todos os aspectos da mente, além de uma percepção deles como puros ou impuros.
Hinayana é a direção certa, mahayana é encontrar a espaçosidade nessa direção, e o vajrayana todos os conteúdos desse espaço como um rico ornamento.
Para uma pessoa que tende a conceitualizar muito, por exemplo, em vez de um método que amarre essa mente tagarela, o vajrayana tem métodos para converter essa tendência discursiva e obsessiva na visualização de uma mandala detalhada – uma configuração de deidades (algumas vezes como um exército em batalha), cada uma delas de uma cor, segurando implementos específicos e emanando luzes de um jeito ou de outro. A mente conceitualizadora fica assim totalmente ocupada por elementos, porém o que cada um desses elementos aponta incessantemente é apenas e justamente a natureza do darma. Assim a energia criativa da mente, que para os outros veículos é rejeitada ou perante a qual se aplica antídotos, é diretamente aproveitada, sem nenhuma perspectiva empobrecida que imponha um ditatorial “silencie a mente”, porque isso seria “mais nobre”, ou “mais parecido com o que o Buda fez”. Simplesmente, se a mente se configura assim, isso pode ser aproveitado, sem má vontade alguma.
Espaço pleno de potencial
Sua Santidade o Dalai Lama pode pregar publicamente a necessidade de shamata e outras formas de meditação silenciosa como muito mais importantes do que a ritualística vajrayana, no entanto ele todo ano concede uma iniciação que permite uma prática em que mais de 700 deidades são visualizadas. Embora certa perspectiva historiográfica mundana e especulativa vá dizer que tais práticas advém de fontes não budistas, não é assim que os próprios tibetanos ou Sua Santidade veem. Para eles, e para ocidentais devotos como eu, foi o próprio Buda que transmitiu, de forma mais restrita, esses ensinamentos. Porque esses ensinamentos foram transmitidos de forma mais restrita? Porque, particularmente em tempos mais tranquilos, a mentalidade de pobreza não é capaz de praticá-los, e os entende erroneamente. Sua Santidade, ao frisar publicamente os elementos mais despojados do budismo, mas seguindo sustentando toda a riqueza do detalhismo vajrayana, está apenas sendo cuidadoso, como é efetivamente o recomendado. O vajrayana é o melhor método, mas também o mais perigoso.
Todos nós temos rotinas e entendemos aspectos de trabalho, ou mesmo de tarefas domésticas como cozinhar, como uma sequência de etapas. Em vez de considerar os afazeres “mundanos”, existe então essa noção da “sadhana”, que em um de seus sentidos mais rasos, é um “roteiro de meditação”. As várias etapas da prática purificam toda nossa perspectiva sobre rotina, afazeres e trabalho – tudo que ocorre em etapas. Isto é, aos poucos, com a prática, até mesmo a concatenação de ideias e a interpretação de frases são imbuídas de uma perspectiva de riqueza. Ora, o que a conceitualização ou a leitura (em voz alta) poderiam fazer por nós? São aspectos do samsara – o hinayana claramente irá afirmar isso (a não ser dos textos do próprio Cânone Páli – aí é a palavra do Buda, libertadora). Mas o treinamento ritual do vajrayana revela a sabedoria em todos os aspectos sequenciais, sejam “mundanos” ou “espirituais”, sem de fato um apego direto a causalidade ou a sequência, muito pelo contrário. Quando perguntamos a um lama sobre cada uma das etapas “mas eu faço a meditação exatamente enquanto leio, ou logo antes, ou depois?” ele vai simplesmente nos dizer que fazemos a prática no “espaço que criamos” ou “no espaço da mente”. Esse espaço-tempo não é o espaço físico que contém galáxias, é um espaço muito mais vasto – aplicamos a mente simultaneamente com o que lemos, como der, de uma forma espaçosa. Não é um tempo que se conta em segundos ou bilhões de anos, é atemporal. A prática do mahayana e o vajrayana ampliam o reconhecimento desse espaço de prática de forma inimaginável. Sem nunca abandonar o aspecto relativo, que de fora, se observado por alguém que não entende o que está acontecendo, vê apenas uma pessoa rezando e tocando alguns instrumentos tais como um tambor de mão ou um sino.
Além do materialismo espiritual como desculpa
Assim, sem dúvida que buscar uma ordenação monástica no Theravada, ou acumular mantras, ou sentar por horas numa determinada postura podem configurar materialismo espiritual. Ora, o ego é bastante esperto, ele consegue transformar qualquer coisa em materialismo espiritual.
Isso, nessa altura, já devíamos estar cansados de saber.
O ponto não é usar a ideia de materialismo espiritual como uma crítica a esse ou aquele modo de prática – quem faz isso está apenas agindo de forma sectária. Evidentemente que, se a pessoa acha que acumular mantras é materialismo espiritual, também vai achar que marcar tempo num relógio para fazer prática formal é materialismo espiritual. Ou que estudar o darma, ou tomar refúgio, ou frequentar uma sanga, ou, no extremo, até ver vídeos de ensinamentos no computador. E assim, qualquer coisa que demarque prática formal, ou mesmo prática cotidiana, vai se tornar um obstáculo, e enfim, a prática ela mesma vai ser vista como um obstáculo.
Mas a prática é um obstáculo? Algumas pessoas dirão que, para budas, a prática, particularmente a formal, seria um obstáculo, porque como eles nunca se distanciam da realização, um método para produzir realização nesse caso seria “uma simples perda de tempo”. Mas, por outro lado, nada é um obstáculo para budas, e eles não estão no tempo, então não há “perda de tempo” para um buda. Normalmente, para praticantes como nós, tanto as práticas simples como as mais complexas são bastante úteis, e ambas servem para revelar se somos capazes de manter o ponto crucial em meio a uma diversidade ampla de fenômenos. Em outras palavras, se alguém está praticando mesmo, com base na visão do darma e como uma expressão das próprias qualidades e as da linhagem, qualquer prática é a manifestação das atividades do Buda, e nenhuma prática deve ser evitada – todas devem ser aproveitadas, sem preconceito. Além disso, a própria diversidade de práticas, e a aceitação das minúcias, é o que vence a mentalidade de pobreza.
A tradição nyingma descreve Guru Rinpoche como já tendo surgido na flor de lótus (foi assim que ele nasceu, segundo a tradição) completamente iluminado. Ainda assim, ele praticou formalmente, os textos dizem, para dar exemplo para nós, que precisamos da prática. Assim, pessoas que evitam a prática formal, ou mesmo evitam apenas aspectos aparentemente grosseiros da prática formal, como marcação de tempo ou quantidade, talvez sejam mais iluminadas que Guru Rinpoche, e ainda estejam num lugar com apenas seres completamente iluminados, que não precisam sequer de exemplo de prática espiritual. Por outro lado, existe uma “pequena possibilidade” disso ser apenas desculpa, e um exagero niilista, ou um tanto coisa de hippie new age em torno da concepção profunda de materialismo espiritual. Pode até ser que seja algo assim…
O lugar certo do conceito de materialismo espiritual
Assim, começar pelo conceito de materialismo espiritual não é proveitoso. É preciso praticar e ter alguma espiritualidade para então inevitavelmente distorcer isso, e então aplicar um antídoto. Se a pessoa começa com o antídoto, daí possivelmente ela não gera nem mesmo a prática. Isso acontece frequentemente.
Existe certa mentalidade de riqueza até mesmo em acatar que o materialismo espiritual vai inevitavelmente acontecer. Em certo sentido, a mente que se defende do materialismo espiritual, antes de estabelecer espiritualidade, é mesquinha. É como uma criança que não joga futebol porque pode ralar o joelho. Ora, todo mundo rala o joelho enquanto criança, muitas vezes. Se deixássemos de fazer algo porque poderíamos ter o joelho ralado, o quanto teríamos perdido? Da mesma forma, precisamos entrar em situações que vão revelar nossos obstáculos. Se não deixamos o materialismo espiritual se formar, nós não o enfrentamos – ele segue lá, como um potencial oculto.
Para qualquer praticante, o conceito sublime que Trungpa Rinpoche nos deixou é essencial, é um esforço diário. Já aprendemos pelo menos um pouco a não usá-lo como desculpa, mas a reconhecer que diariamente caímos nessa armadilha – e, como com o ralar de joelhos, levantamos, sacudimos o pó e seguimos o jogo da prática formal e cotidiana.
PS.: Este texto está focado no vajrayana e na tradição tibetana, mas mesmo no Zen ou no Theravada há inúmeras práticas budistas importantes, como recitação de textos e oferendas diárias perante o altar. Os budistas desgarrados – budistas “de internet” – podem se sentir um pouco perdidos com essas ideias, porque esse é exatamente o tipo de coisa que se aprende apenas presencialmente (também a meditação silenciosa, é preciso dizer, só se aprende pessoalmente). Da mesma forma, acumulações e as práticas vajrayana começam no relacionamento com o professor, e não existem fora desse relacionamento. Assim, para quem é curioso com o budismo e deseja tomar refúgio, aqui pode nascer uma vontade forte de efetivamente conhecer pessoalmente a tradição, nem que isso implique gastos e viagens (dentro e fora do Brasil). Que assim seja!
Que todos abandonem a mentalidade derrotista do despojamento espiritual. Que possamos nos engajar nos métodos do Buda com toda sofreguidão e paixão que temos pelo vasto fast food do samsara, e que enfim essas próprias aflições de ânsia pelo darma, em choque com o darma, se revelem qualidades intrínsecas da mente, incapazes de causar dano a nós mesmos e aos outros. Que os aspectos de simplicidade e complexidade, facilidade e dificuldade, sejam totalmente transcendidos. Que não julguemos a prática de nosso professor, e sim a acatemos como nossa, até revelar para benefício de todos os seres, e como expressão da realização inata, toda a multiplicidade infinita de meios que levam ao reconhecimento final.
Padma Dorje é praticante budista e autor de Filosofia: forma de vida & passarela de egos. Saiba mais sobre seu trabalho no site tzal.org.
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