Na quarta-feira, 22, Vladimir Safatle prestou concurso para professor titular na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Da manhã até o fim da tarde, Safatle passou por algumas provas de arguição e exposição. Uma banca composta pelos professores Cícero Romão Resende de Araújo, Marilena Chauí, Eduardo Viveiros de Castro, Peter Pál Pelbart e Jeanne-Marie Gagnebin de Bons lhe deu dez em todas elas. Em sua exposição oral, o professor falou do conceito de liberdade destacado de autonomia, a partir de alguns olhares filosóficos.
Em junho, ele lança o livro "Dar corpo ao impossível" (editora Autêntica), sobre dialética. Depois de ter recebido o título de professor titular, ele falou com exclusividade para a ÉPOCA.
Veja os principais trechos:
Sobre o que tratou sua aula?
A aula é sobre a noção de liberdade. É uma tentativa de pensar uma outra figura da noção de liberdade, para além da ideia de autonomia individual, para além da ideia de autogoverno, para além da ideia de auto-legislação, que são as ideias hegemônicas dentro do pensamento ocidental quando falamos em liberdade.
De que modo isso tem relação com os tempos em que vivemos hoje?
As discussões políticas que temos hoje não são sobre formas de gerenciar o país. Elas são discussões sobre que tipo de forma de vida nós queremos. O que significa, então, uma forma de vida adaptada a demandas democráticas. Não é a toa que você vê conceitos fundamentais voltando ao debate político.
Por exemplo?
A sexualidade, desejo, liberdade, decisão, poder. De onde vem o poder, quem comanda. Toda a ação política pressupõe também a maneira como as sociedades vão pensando conceitos que lhe são constituintes. Os conceitos não são ideias soltas no ar. Elas são experiências sociais de larga escala do ponto de vista histórico que continuam insistindo no interior da vida social.
Como o senhor enxerga essas liberdades individuais no governo Bolsonaro?
Há várias questões a serem desdobradas dessa pergunta. A primeira delas diz respeito a um governo para o qual a ideia de liberdade social praticamente não existe. A ideia de que a liberdade não é uma afirmação individual, ela é um exercício que depende de certas condições sociais que não estão dadas. Em um país onde se tem uma vulnerabilidade enorme em relação à pobreza não é possível a liberdade. As pessoas não podem ser livres na pobreza. Um país que tem uma vulnerabilidade enorme em relação à violência contra certos grupos. Não dá para você ser livre em uma sociedade onde você fica vulnerável por causa da cor da tua pele, por causa da tua origem indígena, por causa da sua determinação sexual. A defesa dessas pessoas não tem mais amparo no Estado. Nesse horizonte, não é possível ter liberdade. A ideia desse governo é limitar toda a ideia de liberdade à liberdade de empreender -- que nem é para todos. Numa sociedade brutalmente desigual quem é capaz de empreender? Isso é um embuste.
O que a sociedade civil pode fazer?
Ela tem feito. A sociedade brasileira não está paralisada. Ela se movimenta, ela se manifesta, tenta criar novas formas de pressão, de visibilidade do seu descontentamento. É que o Brasil tem um elemento que a gente esquece, que é o grau de violência estatal. Isto é fora de qualquer compasso possível. A gente está falando de um país em que um governador de estado sobe em um helicóptero e começa a atirar na população. Isso é impensável em qualquer parte do mundo. É um país em que uma escola tem que colocar um aviso no teto dizendo: "Não atire, isto aqui é uma escola". Só tem um lugar no mundo onde isso acontece, na Faixa de Gaza. Isso demonstra que tipo de situação é a brasileira. A gente acha que está vivendo uma situação normal do ponto de vista democrático. Não, é uma aberração a nossa situação. Pode não ser uma ditadura explícita, mas, para certos setores da população, não há nada parecido... Teve uma chacina no Morro do Fallet em que 17 pessoas foram mortas a facada pela polícia. E o que aconteceu? Nada. Que garantia as pessoas têm de simplesmente existir? Isso explica um pouco a dificuldade de manifestação e expressão em torno da sociedade brasileira. Para nós é um pouco mais fácil, mas não sabemos até quando. Mas para outros setores, como negros, LGBT, indígenas, essas pessoas não têm garantia nenhuma de integridade.
Existe uma recuperação possível para sair desse estado de coisas?
Eu acho que isso só aconteceu, porque havia uma potencialidade de transformação social brasileira. Eu acho que esse estado é quase como uma espécie de contra-revolução preventiva. Desde 2013, o país entrou em ebulição. As pessoas querem encontrar novas formas políticas, quebrar vínculos de representação e ter participação mais direta de democracia, questiona o modo como o dinheiro público é utilizado... Essas perguntas poderiam levar a uma transformação estrutural da sociedade brasileira. Eu vejo o que está acontecendo. Isso é como uma contrarresposta, para impedir que essas transformações ocorram. E a juventude é tão marcada, por isso esse governo luta tanto contra os jovens. Faz dez anos que esses jovens estão se mobilizando, com movimentos de ocupação. É contra eles que o governo age.
Por isso, a universidade tem sido um foco de ataque do governo?
A universidade nunca foi isolada da vida social. Nenhuma faculdade no mundo - e eu sou responsável pelas políticas de internacionalização desta faculdade - pode chegar e dizer: nos últimos 20 anos, um professor nosso foi presidente da República, dois foram ministros da Educação, um ministro da Cultura, um secretário Nacional de Direitos Humanos, um porta-voz da presidência e um prefeito da cidade de São Paulo. Então, o sistema universitário brasileiro está profundamente arraigado na vida social do país. Desde os anos 1950, intelectuais públicos forneceram modos de reflexão, de crítica. Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Sergio Buarque de Hollanda, Milton Santos. Se você quer impedir a sociedade de se transformar é importante que você quebre a universidade, porque ela produz esses esquemas de reflexão e transformação. O segundo ponto é que se tenta desqualificar a universidade brasileira dizendo que elas estão mal nos rankings de pesquisa. Só que esse tipo de avaliação é injusta, porque as universidades brasileiras não são de excelência de pesquisa, são de massa. Harvard tem 14 mil alunos, enquanto a USP tem mais de cem mil. Como se compara as duas universidades? Se olharmos os nossos 14 mil melhores alunos, provavelmente o nível de excelência vai aumentar muito. Mas não é esse o objetivo. Tem um contingente enorme da juventude que não tem acesso à universidade e precisa integrar essas pessoas. O nível de diplomação nos países europeus é de 30%, mais ou menos. No Brasil, gira em torno de 12%. As universidades têm funções diferentes. Além disso, nós escrevemos em português. Então os trabalhos circulam menos. Escrever em inglês seria um atentado, porque se isolaria uma grande parte da população. Esse processo de tentar desqualificar a universidade brasileira é uma falácia. Dei aulas em várias universidades do mundo, dos Estados Unidos ao Japão. E uma coisa eu posso garantir: o nível dos nossos melhores alunos não é diferente do nível dos melhores alunos de nenhuma universidade do mundo.
Vladimir Pinheiro Safatle (Santiago do Chile, 3 de junho de 1973) é um filósofo e professor chileno-brasileiro, livre-docente da Universidade de São Paulo.
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