"'Lide com suas questões emocionais, senão vai passá-las aos seus filhos'" - Gabor Maté


"Tudo está conectado com tudo. Você não pode separar indivíduos de seu meio ambiente, da cultura em que cresceram e da história de múltiplas gerações de suas famílias. E você não pode separar o corpo da mente como faz a medicina hoje."


"Quando uma pessoa fica doente, a doença não é apenas a manifestação de um órgão, mas sim a manifestação de toda uma vida. É tudo uma coisa só."


É assim que o médico Gabor Maté resume a mensagem de seu quinto e mais recente livro, O Mito do Normal, lançado no Brasil em 2023.


Com best-sellers publicados em mais de 40 idiomas, o húngaro naturalizado canadense Maté é especialista em desenvolvimento infantil e nos potenciais impactos do trauma sobre a saúde física e mental.

Propõe que toda pessoa viciada sofreu trauma na infância e em 2010 se interessou pelo potencial efeito positivo da bebida amazônica ayahuasca no tratamento de pacientes viciados.

Diz que quadros de doenças autoimunes podem ser melhorados ou até revertidos se o paciente aprender a se conectar com suas emoções e a ser mais assertivo.

Maté falou ao programa Young Again, da Rádio 4 da BBC, onde entrevistados são convidados a dar conselhos imaginários a si próprios na juventude.

Hoje com 80 anos, Maté fez um balanço da vida e da carreira, e ilustrou algumas de suas teorias com histórias de sua vida pessoal.

Ele retornou à infância para explicar seu comportamento na vida adulta. Seu vício - pelo trabalho e por comprar CDs - e as particularidades do seu relacionamento com os filhos e a esposa.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista.
Infância traumática: Um bebê judeu na Hungria ocupada pelos nazistas

Em seu livro O Mito do Normal, Gabor Maté diz que cada pessoa carrega suas feridas pela vida afora à sua própria maneira. À BBC, o médico conta que feridas ele carrega.

Maté nasceu em Budapeste, de família judia, em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. O pai estava ausente, fazendo trabalhos forçados, e a esposa não sabia se ele estava vivo.

"Não tenho certeza se minha mãe queria estar grávida", ele conta. "Ela teve icterícia, resposta típica para o estresse na gravidez."

Maté conta que o parto foi difícil e que dois meses depois os nazistas ocuparam a Hungria. Começava o Holocausto. Seus avós foram mortos em Auschvitz.

"No dia em que eles morreram, o leite da minha mãe secou. Tivemos um ano de perseguições e de perigo de vida. O estado emocional da mãe já na gravidez e certamente nos primeiros meses e anos (de vida do bebê) afeta a fisiologia e o desenvolvimento do cérebro da criança", diz o médico.

"Aí, eu tenho onze meses de idade e, literalmente para salvar minha vida, ela me entrega para uma mulher cristã, totalmente desconhecida, na rua, e diz, por favor, entregue esse bebê a parentes meus que estão escondidos porque não posso mantê-lo vivo."

A criança não sabe que a mãe a está entregando a outra pessoa para salvar sua vida, diz Maté. E se sente abandonada.

"Esses são os eventos traumáticos", ele prossegue. "E qual é o trauma? O que é 'baixado' no meu sistema nervoso?"

"Ei, o mundo é um lugar perigoso, estou sozinho e abandonado, então não devo ser uma pessoa passível de ser amada, não devo ser bom o suficiente."

Maté conta que cresceu com sentimentos inconscientes de medo do abandono e de ter de provar seu valor ao mundo.

"Esses são os traumas, essas são as feridas."

Como passamos o nosso trauma adiante?

Como médico, Gabor Maté é cuidadoso em evitar a "cultura da culpa". Ele não culpa a mãe pelos traumas que sofreu, e diz que a maioria dos pais está tentando fazer seu melhor, muitas vezes, em circunstâncias difíceis.

"E se eles não fazem, e se magoam seus filhos, isso é porque eles trazem traumas não resolvidos da sua infância."

O que Maté aconselharia à sua mãe para tentar melhorar a situação dela e do bebê? - pergunta a apresentadora do programa.

"Você está falando de circunstâncias extremas. Se ela tivesse ficado comigo, eu teria morrido. Em circunstâncias como essa, não há o que aconselhar."

E em referência à guerra travada atualmente entre Israel e Gaza (Maté tem sido um veemente defensor da causa palestina), o médico pergunta: "O que eu poderia dizer a uma mãe em Gaza hoje, sob constante ameaça de bombardeios?"

"Mas não é para elas que eu escrevo meus livros. Eu escrevo para pessoas vivendo o dia a dia, lidando com estresses cotidianos. Mas que talvez tenham algumas escolhas se estiverem bem informadas."

Maté tem três filhos e diz que, apesar de ter se esforçado para acertar, falhou com eles múltiplas vezes.

"Se eu pudesse conversar comigo quando era um pai jovem, diria, lide com suas questões emocionais internas antes de passá-las para os seus filhos. Porque se você não lidar com elas, vai passá-las. Eu não tinha consciência disso. Como resultado, passei certos aspectos do meu trauma para os meus filhos. Eu não queria, fiz o meu melhor, amei meus filhos, mas eu não sabia o que eu não sabia."

O médico oferece alguns exemplos de como se dá esse processo. "Eu falei sobre como a mensagem que recebi era de que não me queriam. Bem, se não te querem, e se inconscientemente você tem a sensação de que não te querem, você tem de provar o valor da sua existência."

Maté conta que, para ele, a resposta que encontrou foi estudar medicina. Agora, ele ia ser requisitado o tempo todo.

"Fico viciado no trabalho, para provar meu valor e provar para mim mesmo que sou querido, sou importante. E qual é o impacto sobre os meus filhos, de papai nunca estar presente? De papai preferir estar de plantão a estar em casa? De papai, quando não está trabalhando, estar em síndrome de abstinência, irritado e deprimido? Qual é a mensagem para os meus filhos? (A mensagem é), eu não os quero, eu não os curto. Eu amo meus filhos, eu quis os meus filhos. Mas a mensagem que passei, inconscientemente, foi o oposto disso. Então, isso é como passamos (o trauma) adiante."

Maté diz que escolhemos ser necessários profissionalmente em vez de sermos necessários na esfera doméstica porque buscamos a validação do mundo exterior e tomamos nossa família como algo já garantido.

"Se me perguntassem naquele tempo, quando meus filhos eram pequenos, quais são seus valores mais importantes? Eu diria, a felicidade e bem-estar dos meus filhos. Mas se você observar como vivi minha vida, você encontraria alguém viciado em trabalho, tentando provar seu valor no mundo e dependente da adulação e aceitação, ou respeito dos outros."

"Se eu pudesse dar um conselho a mim mesmo na juventude, diria, reordene suas prioridades."

"Eu nunca diria a uma pessoa que ela tem motivo para sentir culpa, mas eu mesmo carreguei muitos remorsos."

Maté diz, no entanto, que conseguiu deixar a culpa para trás. "Tem sido muito gradual. É uma questão de você perdoar a você mesmo. É uma questão de autocompaixão. É dizer a mim mesmo, não se puna. Você fez o seu melhor segundo as luzes que te guiavam naquele momento."

"E também, assistir meus filhos curando a si mesmos, seguindo suas vidas. Perceber que não estraguei tudo."

A psicologia e a fisiologia do vício

Gabor Maté é especialista no trabalho com viciados, e trata do assunto no livro Vício: O Reino dos Fantasmas Famintos (publicado em 2007 e lançado no Brasil em 2024). Foi trabalhando com pacientes viciados que identificou em si mesmo uma tendência ao vício, diz.

Durante um período, conta, ficou viciado em comprar CDs de música erudita, e confessa que chegou a gastar, em um só dia, US$ 8 mil (R$ 47.478) em CDs. Seu outro grande vício, como já vimos, é pelo trabalho, que, no plano psicológico, dá a ele um "senso de importância".

No plano fisiológico, diz, recebe "uma descarga de químicos do cérebro que tornam a vida interessante. Como a dopamina. Então, quando trabalho, a dopamina flui. Ela é um químico essencial para a vitalidade, curiosidade e interesse. Eu recebo essa descarga de dopamina pelo trabalho."

Mas será que ele seria tão bem-sucedido se não fosse viciado no trabalho?

Conhecido no mundo inteiro, lido por milhões de pessoas, Gabor Maté faz uma afirmação que, para muitos, pode soar surpreendente:

"Tenho de ser grato pelo que tenho, apesar de todas as minhas falhas, muita gente aprecia o meu trabalho. Mas se eu pudesse fazer tudo de novo, colocaria minha família primeiro. Colocaria a paz interior à frente da validação externa, colocaria autoconhecimento à frente da fama."

"Se eu pudesse fazer tudo de novo, mesmo sob o custo de perder um pouco do que conquistei, eu teria escolhido o caminho tranquilo."

Doença auto-imune 'é seu corpo dizendo não - porque você não disse'

Durante a entrevista, Maté explica o título de seu livro O Mito do Normal. "Cometemos um grande erro se transpomos essa palavra, normal, para condições sociais."

"Achamos que aquilo a que estamos acostumados é normal. Pode ser a norma, mas não significa que é saudável e natural. E existem tantos aspectos dessa sociedade e dessa cultura, do nosso jeito de viver, que são normais, no sentido de que estamos acostumados a eles, mas não são nem saudáveis, nem naturais, e, na verdade, nos fazem ficar doentes."

Perguntado se não haveria talvez um excesso de introspecção, se não seria melhor engolirmos o choro e seguirmos em frente, Maté responde que negar o "eu" não é uma saída.

"Como seres humanos, como mamíferos, somos criaturas emocionais. Nossas mentes e nossos corpos são inseparáveis. E nossas emoções estão inextricavelmente ligadas à nossa saúde fisiológica."

Maté vai mais longe. Ele afirma que, na sua prática médica, observa uma ligação entre a supressão do "eu" e doenças autoimunes - como esclerose múltipla, lúpus e artrite reumatoide.

"Posso te dizer qual é a personalidade típica de uma pessoa com uma doença autoimune e nunca vi uma exceção."

Ele diz que há estudos detalhando o perfil desse tipo de paciente.

Segundo Matéria, são pessoas que tendem a se preocupar muito mais com as necessidades dos outros do que com as próprias.

Se identificam com noções de dever, regra e responsabilidade em vez do que ele chama de "verdadeiro eu".

Reprimem o que ele chama de "raiva saudável".

"A raiva está programada no nosso cérebro, é necessária, é uma proteção", ele diz.

E por fim, conclui, pessoas com doenças auto-imunes tendem a pensar que são responsáveis pelo que os outros sentem e não querem jamais decepcionar alguém.

"Como a mente e o corpo são uma coisa só, e as emoções não são separadas, o sistema emocional, o sistema nervoso, o aparato hormonal e o sistema imune são um sistema só", diz Maté.

"Se você está suprimindo ou distorcendo um, você está afetando o outro. Pessoas que reprimem a raiva saudável estão reprimindo seu sistema imunológico.

E o sistema imunológico se volta contra elas. Isso é o que acontece em doenças auto-imunes."

Maté diz, no entanto, que esse quadro pode ser melhorado se o paciente reconhecer esses fatores emocionais, que ele atribui a traumas na infância.

"Conheço pessoas que se curam de doenças auto-imunes ao ligarem o 'emotionaliser' (em tradução livre, o analisador de emoções), ao aprenderem a dizer não, ser mais assertivas, ser elas mesmas."

Você pode engolir o choro e tomar remédio para o resto da vida, diz o médico.

"Ou pode reconhecer que a doença é seu corpo dizendo não - porque você não disse."

E retornando a um dos pontos centrais de O Mito do Normal, o médico reafirma:

"A doença não é uma entidade separada. Ela é uma manifestação da sua vida, é um processo. E se você muda o relacionamento que tem com a sua vida, isso pode mudar o processo."

Recado aos críticos

O trabalho de Gabor Maté recebe aplausos e críticas de médicos e outros profissionais de saúde. O que ele diria aos colegas médicos que discordam de suas teorias?

"Eu digo, olhe para as evidências", responde. "Em todos os meus livros eu cito as fontes científicas."

Segundo o médico, existe um grande desnível entre a ciência que vem sendo produzida ao longo de décadas e a prática médica.

"E elas nunca se encontram porque todas essas coisas simplesmente não são apresentadas nas escolas de medicina por razões ideológicas e econômicas."

"Não me incomodo quando as pessoas discordam de mim, mas que discordem com base nas evidências e não em ideologias."

Casamento - 'Terreno fértil para crescimento mútuo'

Em suas palestras pelo mundo, Gabor Maté expressa grande afeto pela esposa, a artista plástica Rae Maté, com quem está casado desde a juventude.

Convidado a retornar ao passado e imaginar como ele poderia ter melhorado seu relacionamento, ele responde:

"A conversa que eu teria comigo mesmo seria, você pensa que está casado com essa pessoa tão difícil, que não te entende e às vezes não te quer. Tenha consciência de que a atitude dela em relação a você não é uma representação dos traços fixos, difíceis, dela, mas é uma manifestação de como você aparece para ela.

Olhe para você mesmo e isso vai transformar seu relacionamento."

Maté conta que foi isso o que aconteceu. "Deixei minha esposa por um período. Eu tinha 58 anos e me apaixonei por uma mulher vinte anos mais nova. Um caso típico", diz.

"Eu achei que tinha encontrado o amor da minha vida. Então, comecei a olhar para mim mesmo e descobri que tinha deixado o amor da minha vida."

O médico diz que entendeu por que o casamento não estava funcionando. E tinha muito a ver com o seu comportamento.

(Eu era como) "uma criança viciada, irritável, exigente, que queria que ela fosse minha mãe ao mesmo tempo em que se ressentia quando ela fazia (esse papel)".

Ele prossegue: "É muito comum, na nossa sociedade, que homens olhem para as mulheres não como adultos em posição de igualdade, mas na expectativa de que elas sejam suas mães. Elas, por sua vez, naturalmente assumem esse papel."

"Isso coloca a mulher em uma situação impossível porque ela não apenas tem as crianças pequenas, mas também tem esse adulto com trinta, quarenta, cinquenta anos para cuidar."

"E eu tive de crescer, me tornar um adulto."

Maté vai mais além em suas reflexões sobree seu relacionamento, revelando, no processo, sua visão sobre as forças invisíveis que fazem com que duas pessoas se encontrem e fiquem juntas:

"Não é que a minha esposa não tenha contribuído para os problemas", diz.

"Sinto te dizer isso, mas nós sempre encontramos pessoas com o mesmo grau de trauma que nós."

"Deixa eu te dar um exemplo extremo", prossegue. "É comum que mulheres que sofreram abuso na infância se envolvam com homens abusadores. Você pensa, elas são burras?"

"Não. Veja o que acontece: inconscientemente, de quem elas queriam receber amor quando eram crianças? Da pessoa que abusava delas."

Segundo Maté, mais tarde, ao reconhecer a energia abusiva em outra pessoa, vão se sentir naturalmente atraídas - mesmo antes de que essa energia seja manifestada.

"Porque é ali que estão procurando amor", diz.

"Então, quando você encontra alguém, existe uma óbvia, externa e genuína atração sexual, a diversão, os pontos em comum intelectualmente, mas debaixo disso tudo existe uma dinâmica inconsciente muito forte, porque estamos procurando amor no mesmo tipo de pessoa onde procuramos na infância mas não encontramos.

E dessa vez esperamos encontrar."

"A minha mãe, abençoada sua alma, era emocionalmente bastante fria e distante. Ela me amava, não existe nenhuma questão a respeito disso."

Então, onde fui procurar amor? - pergunta Maté.

"Em alguém que, às vezes, também seria emocionalmente distante. Mas eu não percebia que essa distancia emocional era uma proteção para a forma como eu estava aparecendo."

Então, diz Maté, "nós meio que inconscientemente co-criamos um ao outro."

Isso também significa que o casamento , o relacionamento, pode ser um terreno fértil para o crescimento mútuo."

Mas isso, diz Maté, se você encarar o problema de frente.

"Se você não confrontar o problema, ou se acomoda em desonestidade e tédio, ou você se separa e depois espera encontrar o que está procurando em outro lugar."

'Vícios têm origem em traumas e não estamos atacando as causas do problema'

Gabor Maté defende abordagem que procure causas da dor emocional que leva ao abuso de substâncias e outros vícios.


Por Olivia Lang 
Role para BBC World Service em 18 novembro 2019.



Qual é a sua opinião sobre dependência química?


O médico canadense Gabor Maté acredita que precisamos repensar nossa abordagem ao assunto.


O especialista e escritor best-seller ficou conhecido por seu trabalho sobre saúde mental com pacientes que sofrem com abuso de substâncias na área central de Vancouver.


Essa região da cidade canadense apresenta a maior concentração de uso de drogas na América do Norte.


Em 2018, ele recebeu a Ordem do Canadá, a mais alta condecoração civil do país, por seu trabalho.


No centro de sua abordagem, está a ideia de que todo vício tem origem em um trauma — e nem sempre é possível identificá-lo.


Maté elenca, em suas próprias palavras, cinco pontos que nós não entendemos sobre o problema.


'Nós não estamos tratando a causa real do problema'


Para entender o que leva ao vício, é necessário observar seus benefícios. O que ele faz por você?


As pessoas costumam dizer que o vício "oferecia um alívio para a dor, uma saída para o estresse, dava um senso de conexão, uma noção de controle, de significado, a sensação de estar vivo, entusiasmo, vitalidade".


Em outras palavras, o vício preencheu uma necessidade humana que era essencial, mas que não tinha sido satisfeita na vida daquela pessoa.


Todos esses estados — da ausência de conexão e do isolamento até o estresse no dia a dia — eram de dor emocional.


Então, o que se deve perguntar sobre dependência química não é "qual é o vício?" mas sim "qual é a dor?".


Quando se olha para uma população de dependentes químicos, o que se observa é que quanto mais adversidades na infância, maior o risco de dependência.


Então, o vício está sempre relacionada ao trauma e às adversidades na infância — o que não significa que todas as pessoas traumatizadas se tornarão dependentes, mas que todos os dependentes passaram por traumas.


Alcoolismo: como o álcool altera nosso DNA e nos faz querer beber ainda mais


O tratamento para isso exige muita compaixão, muita ajuda e muita compreensão, em vez de consequências severas, medidas punitivas e exclusão.


Você imaginaria que, com a falha da maioria dos tratamentos, nós tomaríamos consciência e nos perguntaríamos, "será que entendemos de fato essa condição?".


Mas isso não acontece muito no mundo médico.


Nós não estamos encarando sua real natureza, como resposta ao sofrimento humano.


Não estamos ajudando as pessoas a lidar com seus traumas e resolvê-los. O típico estudante de medicina nos Estados Unidos não participa de uma aula sequer sobre trauma emocional.


Nós continuamos a perguntar "o que está errado com você?", quando deveríamos perguntar "o que aconteceu com você?".


O vício não é uma escolha


Outro mito sobre dependência química é de que seria uma escolha das pessoas que sofrem com ela.


Todo o sistema legal baseia-se nessa ideia, então vamos puni-las para impedir outras de fazer essa escolha.


Ninguém que eu conheça acordou em uma manhã e disse "meu objetivo é me tornar um dependente químico".


O vício não é uma escolha que se faça, é uma resposta à dor emocional.


E ninguém escolhe sentir dor.


O vício não é genético


Um dos maiores mitos sobre dependência é de que seria algo genético.


Sim, isso vem de família. Mas por quê?


Se eu sou alcoólatra e grito com meus filhos, que crescem e também recorrem ao álcool, eu transmiti isso a eles geneticamente?


Ou isso se trata de um comportamento que eles desenvolveram porque eu reproduzi as mesmas condições em que cresci?


Ter algo do tipo na família não diz nada sobre uma causa genética.


Pode haver uma predisposição genética, mas isso não é o mesmo que uma predeterminação — ou seja, não significa que você seja geneticamente programado para ter um vício.


Dependência química é comum


Outro mito é o de que o vício está restrito ao dependente químico, ou a alguns fracassados na nossa sociedade.


Mas ela é comum e alarmante em nossa cultura.


Quando observo essa sociedade, vejo vícios em quase todos os níveis, diversas compulsões. Mais do que isso, vejo toda uma economia baseada em atender a esses vícios.


Você pode se viciar em praticamente qualquer coisa — até mesmo em música clássica


A dependência se manifesta em qualquer comportamento em que a pessoa encontre um prazer ou alívio temporário, e que passe a desejar intensamente. A pessoa, então, sofre as consequências negativas como resultado, mas não para — ou não consegue parar — apesar dos desdobramentos ruins.


Isso pode incluir drogas, álcool, substâncias de todos os tipos.


Também pode se relacionar a sexo, a jogos de azar, a compras, ao trabalho, a poder político, a jogos online... Praticamente todas as atividades podem ser viciantes, dependendo da nossa relação com elas.


Contanto que haja constante desejo e alívio, com consequências negativas a longo prazo, e dificuldade de simplesmente parar, você tem um vício.


Eu tive dois grandes vícios. Um deles era o trabalho, que me levou a ignorar minhas próprias necessidades e as da minha família para buscar sucesso e satisfação profissional.


Essa dependência baseava-se em um sentimento profundo de que eu não era bom o bastante, de que precisava me provar, e em uma crença inconsciente de que eu não poderia ser amado e querido.


O mundo, então, recompensa esse "workaholic altruísta".


Eu também tive um vício em compras, em especial de CDs de música clássica. Em um único dia, gastei 8 mil dólares em CDs.


Meu vício não era a música em si. Sim, eu amava a música, mas era viciado no ato de comprar.


Não importava quantas coleções eu tivesse de um determinado compositor, eu tinha de comprar outra e mais outra.


Por esse vício, eu cheguei a deixar uma das minhas pacientes em trabalho de parto, fui comprar um CD e perdi o nascimento do bebê. Esse era o impacto que a dependência tinha em mim.


Talvez você pense que essa comparação é risível — como poderia comparar tal vício ao de pacientes dependentes de heroína?


Mas meus próprios pacientes não riam quando eu contava a eles sobre isso.


Eles balançavam a cabeça e diziam "é, doutor, a gente entende, você é como todos nós".


O ponto é que assim somos todos nós.

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No dia 6 de maio, há 169 anos, nascia o fundador da Psicanálise.

 Para mim, um eterno apaixonado pela mente humana, é fascinante notar como a psicanálise, mesmo após mais de um século, continua a ser uma força potente e cheia de perspectivas surpreendentes. Sua influência se estende por diversas áreas, desde a óbvia da psicoterapia até a compreensão mais profunda da cultura e da sociedade de forma geral.






Pense nas artes em geral... mas no cinema em particular! O que tem em comum entre Alfred Hitchcock, David Cronenberg, Ingmar Bergman, Luis Buñuel, Akira Kurosawa...??? A leitura pesada da perspectiva Freudiana da mente e do inconsciente convertida em filmes que tocam o belo e o desconfortável em nós!

A psicanálise oferece ferramentas de investigação e estrutura que se aprofunda para entender a complexidade da mente humana, explorando as camadas do inconsciente que moldam nossos pensamentos, emoções e comportamentos. Em um mundo que muitas vezes busca soluções rápidas, pueris e sempre insuficientes, a psicanálise convida a uma jornada mais demorada de autoconhecimento, entendimento e transformação.

Hoje, vemos a psicanálise se dialogando com outras áreas do conhecimento, como a neurociência, enriquecendo nossa compreensão dos processos mentais. Suas ideias continuam a inspirar novas abordagens terapêuticas e a influenciar a forma como pensamos sobre a subjetividade e o sofrimento psíquico.

Pense na minha surpresa quando li o brilhante Jeffrey Young (autor da Terapia do Esquema) que trouxe para dentro da discussão e da clinica da Teoria Cognitivo Comportamental perspectivas inspiradas na psicodinâmica, desdobramento das teorias Freudianas...

Outro autor que me trouxa Freud a revisão foi Sidarta Ribeiro. Neurocientista brasileiro de grande relevância no cenário acadêmico internacional, especialmente por suas pesquisas sobre sono, memória e sonhos, temas que dialogam diretamente com a psicanálise freudiana. Sua abordagem interdisciplinar combina neurociência, psicologia e até filosofia, aproximando-se de conceitos freudianos, ainda que com base em evidências científicas contemporâneas.

Freud marcou o ocidente, rompeu fronteiras geográficas e do tempo. Esta presente em quem se permitir aprender sobre si e sobre a mente humana. Freud, afinal, não está apenas nos livros de psicologia; está em todo lugar onde o humano ousa se questionar. E, como demonstram os seus admiradores, seu legado segue vivo, reinventando-se em diálogo com a ciência e a arte, sempre pronto a desafiar e fascinar aqueles que se aventuram em suas profundezas.

Cuidado com saúde mental vira exigência legal nas empresas

Companhias devem cuidar do bem-estar psíquico de seus funcionários — e podem receber sanções se descumprirem as novas normas

Escrito por Bárbara Nór
em 27 abr 2025.


Apartir de 25 de maio, empresas que atuam no Brasil precisarão incluir a saúde mental em sua lista de responsabilidades obrigatórias — da mesma forma que já fazem com os equipamentos de proteção individual (EPIs), como capacetes, luvas ou máscaras. A nova versão da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), do Ministério do Trabalho e Emprego, passa a exigir o mapeamento e gerenciamento dos riscos psicossociais — fatores organizacionais, culturais e relacionais que podem contribuir para o adoecimento mental dos trabalhadores.

A regulamentação surge em meio a um cenário preocupante: em 2024, o Brasil registrou mais de 472 000 afastamentos por motivos de saúde mental, o maior número da última década e um aumento de 68% em relação ao ano anterior. Os transtornos de ansiedade lideram os afastamentos, seguidos pelos casos de depressão, de acordo com dados do Ministério da Previdência Social.

arte saúde

A novidade trazida pela NR-1 não está em reconhecer que o trabalho pode causar doença, mas em exigir uma gestão sistemática e preventiva de fatores de risco. Tatiana Pimenta, presidente da Vittude, plataforma de terapia on-line e consultoria em saúde corporativa, explica que a norma vai além dos programas tradicionais que muitas empresas já mantêm. “O fato de uma empresa ter um programa de saúde mental e oferecer consulta psicológica não significa que ela está fazendo gerenciamento de riscos psicossociais”, diz Tatiana.

Ela ressalta que consultas psicológicas isoladas ou ações pontuais não são suficientes para lidar com sobrecarga, metas abusivas ou lideranças tóxicas. É necessário aplicar instrumentos objetivos, como escalas psicométricas, para mensurar variáveis como risco de burnout, assédio ou ideação suicida. Esses dados também podem indicar onde há perda de produtividade e maior rotatividade. Ainda assim, observa Tatiana, as empresas têm se mostrado resistentes à mudança.

Isso se manifesta, por exemplo, em iniciativas como a da FecomercioSP, entidade que representa o setor de varejo e serviços no estado de São Paulo. Em abril, a federação solicitou ao governo a prorrogação da entrada em vigência da norma por um ano, alegando que as mudanças trariam custos extras e incertezas na fiscalização, especialmente para pequenas e médias empresas.

Menos estresse: iniciativas de cuidado reduzem o absenteísmo (./Divulgação)

A percepção de que o tema é subjetivo demais para ser regulamentado ainda é comum. Fatima Macedo, diretora de certificação e excelência da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV), ressalta que esse é um equívoco. “Quando muita gente sente o mesmo, isso deixa de ser só percepção”, afirma Fatima. Ela explica que, embora se trate de questões emocionais, é possível mensurá-las com consistência e comparabilidade — quando diversos colaboradores apontam os mesmos problemas, o dado se torna quantitativo e, portanto, passível de gestão.

Fatima também lembra que outras normas, como a NR-17, já mencionavam os riscos psicossociais. A diferença agora é que a NR-1 dá muito mais destaque para a obrigatoriedade de gerir os fatores psicossociais — e, com isso, pode haver consequências jurídicas.

Algumas empresas já vêm aplicando estratégias mais estruturadas de cuidado e prevenção à saúde mental. A Nestlé Brasil lançou, em 2024, o projeto Parceiros do B.E.M., em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo e pretende investir 1,5 milhão de reais no programa ao longo de 2025. A iniciativa visa a capacitar 600 funcionários para reconhecer sinais de sofrimento psíquico e orientar colegas aos canais de apoio da empresa. Fabricio Pavarin, gerente-executivo de saúde e bem-estar da Nestlé, explica que a estratégia começou com a desmistificação do tema junto às lideranças, em conversas com o presidente da empresa e em lives com os funcionários. “Procurar ajuda para problemas de saúde mental precisa se tornar tão natural quanto procurar atendimento porque quebrou o braço”, afirma Pavarin. Ele reconhece que, ao dar visibilidade ao tema, é possível que os números “piorem” inicialmente, mas esse movimento é esperado e necessário.

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O Mito do normal




 


QUEBRE O VÍCIO Por quê você se sente perdido na vida e como se encontrar! Entrevista com Gabor Maté.

 


“O livre-arbítrio é um mito”

 “O livre-arbítrio é um mito”


É o que diz diz Robert Sapolsky, neurocientista de Stanford. O polêmico pesquisador defende em um best-seller que as escolhas que fazemos no dia a dia são determinadas por fatores genéticos e ambientais.

Escrito por Amanda Péchy  Publicado em 4 abr 2025.







Um dos mais polêmicos figurões da academia americana, Robert Sapolsky, 67 anos, tem um olhar todo próprio sobre a neurociência, área em que é ph.D. e ensina na prestigiada Universidade Stanford, na Califórnia. Há mais de três décadas, ele vem examinando o cérebro para decifrar assuntos que causam aflição à espécie humana, como o estresse e, mais recentemente, as engrenagens por trás da tomada de decisões — tema que atiça a curiosidade científica e ao qual ele dá uma roupagem única. Com base em vastos estudos, o especialista que cultiva uma farta barba branca diz que a escolha dos indivíduos está quase que inteiramente dada por fatores genéticos e ambientais. É esse o combustível de seu recém-lançado Determinados: a Ciência da Vida sem Livre-Arbítrio (Companhia das Letras), best-seller nos Estados Unidos. De sua casa vizinha a Stanford, ele falou a VEJA.


Em tempos de maior complexidade e turbulências, como o que estamos vivendo, é mais difícil para os indivíduos tomar decisões? Sem dúvida. Existem momentos históricos em que a irracionalidade, uma marca humana, se pronuncia em graus especialmente elevados. É o que estamos observando agora. Isso tem a ver com a presença de guerras, com as incertezas acirradas e com as rachaduras de sociedades polarizadas. Um ambiente inflamado pelo ódio, circunscrito a uma lógica do “nós contra eles”, gera medo e desencadeia um ciclo vicioso que atrapalha a tomada de decisões — uma ebulição que tem o cérebro como cenário.


Em que medida a neurociência ajuda a explicar a irracionalidade? As pessoas ficam mais estressadas em eras tomadas por agitação, o que, do ponto de vista individual, libera hormônios que ativam estruturas no cérebro relacionadas às emoções, perturbando a função reflexiva do córtex frontal, que nos faz pensar antes de agir. Daí a propensão a comportamentos mais impulsivos, com tendência, inclusive, à radicalização e ao extremismo.


Por que suas conclusões sobre o processo humano de tomada de decisões são objeto de tanta polêmica nos círculos acadêmicos? Durante décadas, à luz da ciência, constatei que as pessoas alimentam a ilusão do poder de escolha, quando, na verdade, o livre-arbítrio é um mito. Isso quer dizer que os indivíduos estão quase 100% programados a optar por esse ou aquele caminho nos vários escaninhos da vida. As decisões das pessoas são definidas por uma soma da genética com o ambiente que as cerca e as experiências que têm — estas, também, modeladoras do DNA. Tudo está praticamente escrito em nós, uma ideia que colide com várias correntes de pensamento.


“Existem momentos históricos em que a irracionalidade, uma marca humana, se pronuncia em graus mais elevados. É o que estamos observando agora”


Qual o espaço, afinal, para o indivíduo se aprimorar e arbitrar de forma mais sábia? As pessoas podem amadurecer, recorrer à psicanálise de Freud e evoluir em áreas diversas. O cérebro é maleável e se transforma em resposta às experiências. Agora, há limites aí. A psicanálise fornece novas perspectivas que fazem sacudir padrões de pensamento e comportamento. Mas a maneira como circunstâncias alheias à nossa vontade nos marcam, do ponto de vista biológico, seguirá determinante para as decisões que tomamos. Tenho, porém, uma visão otimista: podemos mudar o suficiente para que a vida seja mais bem vivida.


Em outros termos, temos pouco controle sobre nossas escolhas? Isso. Claro que uma porção importante do cérebro ajuda a pensarmos antes de tomar uma decisão. Como ela só se desenvolve por completo na idade adulta, os adolescentes são, em geral, mais impulsivos. Só que mesmo essa área ligada à razão é afetada por um conjunto de eventos tatuado no cérebro, o que torna a maior parte das escolhas que fazemos quase inescapável.


O senhor já afirmou que a crença da espécie humana de que tem elevado comando sobre os rumos de sua existência — e de suas decisões — é uma ferramenta evolutiva. Pode explicar melhor? Os humanos possuem uma série de mecanismos que os permitem negar a realidade, a fim de viver melhor. Todo mundo sabe que a morte é inexorável, mas seria doloroso demais passar 24 horas às voltas com essa ideia. Esquecer é uma ferramenta de sobrevivência.


Até que ponto a razão influencia o comportamento das pessoas? A ideia da racionalidade da espécie é outro mito. Os indivíduos têm a impressão de que é a mente que os move para certa direção, mas as emoções têm peso equivalente. Um estudo que fiz na arena da política, sobre eleições, comprova, a partir da neurociência, que o voto não se define pelas ideias de um candidato. Decisivo mesmo são os sentimentos que provoca e quanto eles têm eco nos medos e ansiedades de cada um.


Decisões de cunho político são também predeterminadas, ou estão mais sujeitas às circunstâncias? Elas entram no rol das outras, sob a mesma lógica. Veja o presidente americano Donald Trump, o mais controverso líder da atualidade. Diria que é um caso exemplar de como a combinação de genética e ambiente produz um humano capaz de ações pouco empáticas. O pai era um vigarista imobiliário e a mãe, um freezer no campo do carinho e do cuidado. Ele passou toda a vida sem saber se pessoas ao seu redor o amavam ou se só estavam ali por dinheiro. Não dá para esperar algo muito diferente do que estamos assistindo.


Visão tão determinista não o aflige? Sim, é claro que me atormenta. Entender cientificamente as raízes dos equívocos humanos não significa que eles não causem repulsa.


Revisitando um caso extremo, como o de Adolf Hitler, que exterminou milhões de pessoas na Segunda Guerra, dá para afirmar que o mal também é predeterminado pela biologia? Não existe algo como um “gene do mal” que o predestinasse a cometer genocídio. O DNA diz respeito a potenciais, não a inevitabilidades. O ambiente em que Hitler estava imerso teve papel crucial em sua sombria trajetória, o que inclui uma infância complicada, o trauma da Primeira Guerra, a crise econômica, a ascensão do nacionalismo — tudo isso alterou seu funcionamento, exacerbando o que pode ser lido como uma propensão à maldade.


Pode explicar melhor, sob o ângulo da biologia, como o ambiente impacta as escolhas que fazemos? Cientistas odeiam falar o que vou dizer aqui: não há exatamente como saber. Mas existem indícios interessantes. Já foi descoberta, por exemplo, uma variante genética relacionada à serotonina, o chamado hormônio da felicidade, que supostamente prevê níveis de agressividade. Curioso é que ela só é ativada em um único cenário — aquele em que o indivíduo foi criado em um contexto abusivo. Genética e ambiente caminham sempre juntos, delineando quem somos e como agimos.


Essa ideia de que as pessoas são tão programadas não faz o humano se assemelhar demais a uma máquina? Somos máquinas biológicas, sim. A diferença para a inteligência artificial é que humanos se revelam mais multifacetados, tendo a consciência de quais são nossos botões e onde estão. É um sistema sofisticado, mas não chega a dar para se gabar, não. As mesmas enzimas cinases que acendem receptores quando aprendemos algo estão presentes nos cérebros de lesmas-marinhas.


Se praticamente tudo já está escrito, por que é tão difícil prever o amanhã? Até sistemas caóticos são determinísticos, pois seguem regras fixas, mas mesmo eles exibem uma sensível dependência das condições iniciais. E é exatamente nesse ponto que uma minúscula variação pode ter vasto impacto com o passar do tempo, conduzindo a resultados imprevisíveis, drasticamente diferentes do esperado. Veja o caso dos gêmeos. Compartilhando de tão semelhante composição genética, mesmo os univitelinos nunca se tornarão pessoas idênticas nem parecidas no modo de ser, agir e decidir.


“Somos máquinas biológicas. A diferença para a IA é que nos revelamos multifacetados, tendo a consciência de quais são nossos botões e onde estão eles”


O que constatou em seus estudos sobre gêmeos? Está claro que, desde o nível celular mais primitivo, notam-se distinções entre eles que só se aprofundam ao longo do tempo. Cada um terá sua trajetória e sofrerá influências de suas próprias experiências — algo que os marcará de modo decisivo. A questão é que nada disso é visível, daí ser impossível traçar cenários com precisão matemática. O que dá para depreender são tendências.


Compreender a tomada de decisões tal como o senhor define traz algum benefício? Acho que, a partir do momento em que entendemos as escolhas de cada um como uma expressão de sua natureza, há mais empatia e menos julgamento. O ódio é uma face sombria da espécie e deveria ser expurgado. Quem sabe a compreensão de que os indivíduos são diversos por definição, desde o princípio da vida, não contribui para um ambiente de maior tolerância, algo de que tanto necessitamos nos dias de hoje.


Como lidar com criminosos dentro dessa lógica determinista, segundo a qual eles estariam “programados” para infringir a lei? Claro que precisa haver punição, mas o modelo em vigor em países como os Estados Unidos, onde trabalho junto a defensores públicos, deveria ser repensado à luz desses estudos. Não é para atenuar a transgressão praticada pelo bandido, mas entender que ele só vai evoluir quando exposto a um ambiente de convívio com os outros, capaz de estimular mudanças positivas. Na Noruega, por exemplo, as prisões são guiadas pelo foco na reabilitação, à base de muita atividade e educação. É verdade que o investimento nessa direção é alto, mas há registros de queda nas taxas de homicídio e na reincidência de crimes variados. Tudo indica que vale a pena.


O determinismo também se aplica ao amor? Os poetas que me perdoem, mas existe toda uma estrutura regida pela biologia que faz com que um indivíduo se apaixone pelo outro. A escolha por um parceiro também tem a ver com genética — até o cheiro de cada um influencia no acasalamento — e com o ambiente. Viver em um contexto parecido funciona como potente fator de aproximação.


Às vezes, parece que o senhor acredita em destino. É isso mesmo? De nenhuma forma. O determinismo científico a que me refiro é diferente do predeterminismo protestante do século XVII. Este é fatalista e diz respeito à ideia de previsão do que vai acontecer, portanto ao destino. Mesmo com as limitações humanas, nós, cientistas, não achamos que o futuro seja imutável. Temos que aprender a tirar o melhor proveito das circunstâncias.



Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938.

A Teoria a psicológica que: 'Queria provar que humanos são capazes de algo maior que guerra, preconceito e ódio'!

Abraham Maslow, o homem que revolucionou a psicologia: 'Queria provar que humanos são capazes de algo maior que guerra, preconceito e ódio'

Legenda do áudio,

Abraham Maslow teve uma visão enquanto dirigia seu carro.


Viu pessoas sentadas ao redor de uma mesa, falando sobre "a natureza humana, o ódio, a guerra e a paz, e a fraternidade".


O mundo vivia o rescaldo do ataque a Pearl Harbor, em 1941, quando o Japão bombardeou a base naval americana no Havaí durante a Segunda Guerra Mundial.


"Eu era velho demais para entrar no exército. Foi nesse momento que percebi que o resto da minha vida deveria ser dedicado a descobrir uma psicologia para a mesa de paz. Esse momento mudou toda a minha vida".

https://www.youtube.com/watch?v=k9dHyZKHhVM


"Queria demonstrar que os humanos são capazes de algo maior do que a guerra, os preconceitos e o ódio."


Essa visão foi contada, em 1968, a Mary Harrington Hall, da revista Psychology Today.


Dois anos depois, aos 62 anos, Maslow morreria após sofrer um ataque cardíaco.


Seu legado, afirmam os estudiosos de sua obra, não só perdurou, mas, em tempos de turbulência, é uma fonte de esperança.



O inovador


Maslow nasceu em 1908, em Nova York.


Seus pais, judeus, tiveram que fugir da Rússia e imigraram para os Estados Unidos.


Maslow viveu a Grande Depressão, a crise econômica que levou à quebra da Bolsa de Nova York, em 29 de outubro de 1929


"Com a infância que tive, é um milagre que não seja psicótico. Era um pequeno menino judeu em uma vizinhança não judia", disse em entrevista à Psychology Today.


Ele dizia que havia crescido sem amigos, em bibliotecas, entre livros, e encontrou na psicologia sua paixão.


Desenvolveu sua carreira nesse campo, sendo fascinado em entender como alguém capaz de ser um anjo poderia ser um assassino.


Para Edward Hoffman, autor de The Right To Be Human: A Biography of Abraham Maslow ("O Direito de Ser Humano, uma Biografia de Abraham Maslow", em tradução livre), o psicólogo estava à frente de seu tempo.


"E, em muitos sentidos, ele ainda está à frente do nosso tempo", disse à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, o professor de psicologia da Universidade Yeshiva, em Nova York.


Embora seja mais conhecido por sua teoria sobre a hierarquia das necessidades, da qual surgiu a famosa pirâmide de Maslow, há aspectos de seu trabalho que "realmente foram revolucionários", afirmou à BBC Mundo Margie Lachman, professora da Universidade Brandeis, em Massachusetts (EUA).


Foi lá, precisamente, que Maslow fundou o Departamento de Psicologia.


Outro caminho


Maslow seguiu uma direção diferente das correntes existentes na psicologia, principalmente a psicanalítica (de Sigmund Freud) e a comportamental.


Freud tinha "uma visão muito pessimista da natureza humana", diz Hoffman.


A abordagem freudiana fala sobre o peso dos impulsos inconscientes, incontroláveis, em nossas vidas, enquanto a tradição comportamental (behavioristas) reforça a ideia de que respondemos a fatores externos.


Lembremos que muitos dos estudos dos behavioristas foram realizados com animais em laboratórios.


"A psicologia no tempo de Maslow era muito determinista", explica David Baker, diretor emérito do Centro Cummings para a História da psicologia e professor emérito de Psicologia da Universidade de Akron, nos Estados Unidos, à BBC Mundo.


"Você se comporta como resultado de todas as forças que te afetam e não há muito que possa fazer a respeito."


Mas "a originalidade" de Maslow foi enxergar "coisas que não estavam ali".


"E isso foi algo bastante incrível na psicologia americana do século 20."


"Maslow viveu duas guerras mundiais, tempos de migração em massa, opressão terrível, pobreza esmagadora, mas conseguiu transcender tudo isso e ver algo mais", disse Baker.


E o que Maslow viu foi o potencial humano.


"Diante do conflito, do ódio, da violência, ele fez uma avaliação realista e disse: 'Há algo mais. Existem coisas que todos estão ignorando, tanto na psicologia quanto na sociedade, e é que podemos ser pessoas melhores.'"


"Foi uma perspectiva otimista, uma nova direção", afirmou Baker.


Maslow apostou em uma abordagem humanista que, segundo Lachman, enfatizou a capacidade das pessoas de "fazer coisas boas no mundo".


"Ele acreditava que os seres humanos são, por natureza, bons e bem-intencionados."


Por toda a vida


Diferentemente de outras correntes, Maslow afirmou que as pessoas agem com base em suas necessidades e motivações e que têm o potencial de crescer e se desenvolver ao longo de toda a vida.


"Isso porque teóricos anteriores, especialmente Freud e alguns de seus contemporâneos, acreditavam que o desenvolvimento (da personalidade) basicamente terminava quando se chegava à adolescência", explica Lachman.


A acadêmica esclarece que, embora alguns psicanalistas como Carl Jung ou Erik Erikson também acreditassem no desenvolvimento ao longo da vida, Maslow realmente enfatizou "a importância de pensar no potencial de crescimento durante toda a vida".


Além disso, destaca a especialista, enquanto alguns dos primeiros teóricos focavam mais em indivíduos com, por exemplo, neuroses ou problemas psicológicos — o que foi muito relevante —, Maslow se interessava pelas "pessoas que estavam se saindo bem".


E que, ao prosperarem, ao perceberem sua criatividade e seu potencial, promoviam não apenas seu próprio crescimento, mas também contribuíam para "fazer o bem no mundo".


Concentrar-se em pessoas saudáveis como uma forma de compreender o comportamento e otimizar o bem-estar foi uma mudança muito significativa na disciplina.


"Maslow defendeu o valor de focar no que está certo na pessoa, em vez de se concentrar no que está errado", escreveu Margie Lachman em um artigo da Universidade Brandeis, dos EUA.


Motivação


Em 1954, Maslow publicou o livro Motivação e Personalidade, no qual apresentou sua teoria da hierarquia das necessidades, já explorada em 1943 no ensaio Uma Teoria para a Motivação Humana.


O psicólogo explicou que, quando nossas necessidades mais básicas — fisiológicas e de segurança — estão satisfeitas, desenvolvemos outras necessidades e desejos que buscamos atender, como o apreço e o reconhecimento.


Em seu trabalho original sobre a hierarquia das necessidades, Maslow não utilizou pirâmides ou triângulos.


No entanto, outros pesquisadores acabaram ilustrando sua teoria no formato de uma pirâmide.


No topo dessa pirâmide, está a autorrealização, algo que ele sabia ser muito difícil de alcançar.


"Todos temos a capacidade de consegui-la, mas precisamos conseguir transcender nossa situação e nos esforçar para atingir nosso potencial", explica David Baker.


Para Maslow, tratava-se de um processo contínuo, que dura toda a vida, no qual é importante criar situações que sejam meaningful, ou seja, significativas para nós.


"Em sua visão otimista, se alcançarmos a autorrealização, seremos mais felizes e, consequentemente, faremos mais coisas boas no mundo."


Mas Maslow não estava realmente preocupado com a felicidade; seu interesse estava focado no crescimento pessoal e em sua conexão com nossa capacidade de fazer coisas boas.


Hoffman menciona a eupsiquia, um termo que Maslow cunhou para descrever "a melhor sociedade possível", uma sociedade voltada para o crescimento de seus membros.


"Maslow era realista, sabia que nenhum ser humano pode ser perfeito, que todos temos defeitos", mas ele viu a possibilidade dessa sociedade ideal, a eupsiquia.


"É um conceito muito importante, porque acredito que os jovens, em parte devido à obsessão com as redes sociais e a internet, estão presos ao momento presente. Mas Maslow era um pensador de longo prazo, focado no que os seres humanos são capazes de alcançar a longo prazo."


Legado


Maslow sempre esteve aberto à pesquisa científica, embora haja quem questione o fato de ele não ter apresentado evidências empíricas para sustentar sua teoria.


De fato, alguns cientistas criticaram que, em seus últimos anos, ele se tornou mais um filósofo do que um cientista.


Mas o fato é que ele deixou um legado importante em sua disciplina.


"Muitos dos esforços mais recentes em psicologia foram baseados no trabalho de Maslow: ele lançou as bases do que chamamos de psicologia positiva", destaca Lachman.


Esse movimento foca em como as pessoas podem viver uma vida positiva e encontrar um propósito.


"E, ao usar sua própria criatividade e sabedoria, podem ajudar outras pessoas e fazer a diferença no mundo."


Mensagem


Nesse processo contínuo de crescimento que Maslow propôs, há um ponto de partida:


"Olhar para dentro de nós mesmos e descobrir o que nos traz uma sensação de alegria, mesmo em pequenos momentos. Que comidas gostamos? Sobre quais temas gostamos de conversar? Que músicas nos fazem sentir mais enérgicos ou felizes? O ponto de partida deve ser compreender e conhecer a nós mesmos", explica Hoffman.


Para Baker, grande parte do legado de Maslow é "ver o que está lá e também o que não está".


"Ainda existe bondade, decência, pessoas que se esforçam para fazer o que é certo, e isso é fácil de esquecer, assim como é fácil se sentir sobrecarregado pelas notícias negativas de ódio e violência."


"Mas era o mesmo no tempo de Maslow: as pessoas sentiam o mesmo nível de medo, desesperança, ansiedade e depressão. E aí está o legado dele: olhar além disso e dizer que há algo melhor."


"Sempre senti que é uma mensagem de esperança."




Você e sua ferramenta de luta e fuga!