Como traumas de infância afetam a saúde ao longo da vida
- Palestra de Nadine Burke Harris* para a TEDMED em Setembro de 2014.
Traumas de infância não são algo que se supera quando se cresce.
A pediatra Nadine Burke Harris explica que o estresse constante da violência, da negligência e dos pais que sofrem de alguma doença mental ou de problemas como dependência química têm efeitos reais e tangíveis no desenvolvimento do cérebro. Isso se estende por toda a vida, ao ponto daqueles que passaram por altos níveis de trauma, tendo três vezes mais risco de desenvolver doenças cardíacas e câncer de pulmão. É um apelo apaixonado para que a medicina pediátrica encare a prevenção e o tratamento de traumas, de frente. Segue a transcrição de sua palestra ao TEDMED em Setembro de 2014.
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Em meados da década de 1990, o CDC (“Centros de Controle e Prevenção de Doenças” - em inglês: Centers for Disease Control and Prevention - agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos) e a Kaiser Permanente (um dos maiores planos de saúde sem fins lucrativos dos Estados Unidos) descobriu um tipo de exposição que aumentou significativamente o risco de sete das dez principais causas de morte nos Estados Unidos.
Em altas doses ela afeta o desenvolvimento do cérebro, do sistema imunológico, do sistema endócrino e até da forma como nosso DNA é lido e replicado.
Pessoas expostas a doses muito altas têm três vezes mais risco de morrer de doenças cardíacas e de câncer de pulmão e têm uma redução de 20 anos em sua expectativa de vida.
E ainda hoje, os médicos não estão preparados para exames de rotina e tratamento para ela. A exposição a que me refiro não é um pesticida ou um produto químico contido em embalagens, mas a traumas de infância.
Certo. Que tipo de trauma estou falando aqui? Não estou falando de ir mal em uma prova ou perder uma partida de basquete. Estou falando de ameaças tão graves e penetrantes que literalmente se infiltram em nosso corpo e mudam nossa fisiologia: coisas como violência e negligência, ou ser criado por pais que sofrem de alguma doença mental ou de dependência química.
Bem, por muito tempo, eu via essas coisas da forma como fui ensinada e vê-las: ou como um problema social -- encaminhar ao serviço social -- ou como um problema de saúde mental -- encaminhar ao serviço de saúde mental.
Então, algo aconteceu e me fez compensar toda a minha abordagem. Ao terminar minha residência, eu queria ir aonde realmente precisassem de mim, a onde eu poderia fazer diferença. Então fui trabalhar no Califórnia Pacific Medical Center, um dos melhores hospitais particulares do norte da Califórnia, e juntos abrimos uma clínica em Bayview-Hunters Point, uma das regiões mais pobres e carentes de São Francisco.
Mas, antes disso, só havia um pediatra em toda Bayview, para atender mais de 10 mil crianças. Então, abrimos um consultório particular e oferecemos atendimento de primeira, mesmo a quem não poderia pagar. Era muito legal e nosso alvo eram as disparidades de saúde típicas: acesso à saúde, taxas de imunização, taxas de hospitalização de asmáticos, e ótimos resultados em todos. Ficamos muito orgulhosos.
Mas aí comecei a notar uma tendência preocupante. Diversas crianças estavam sendo encaminhadas a mim com TDAH, ou Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, mas quando eu fiz todos os exames e analisei todo o histórico delas, eu descobri que, a maioria dos meus pacientes não poderia receber um diagnóstico de TDAH. A maioria das crianças que eu recebia havia passado por tantos traumas graves que eu senti que outra coisa estava acontecendo. De alguma forma, eu estava deixando passar algum detalhe importante.
Antes de fazer minha residência, fiz um mestrado em saúde pública, é uma das coisas que você aprende na escola de saúde pública é que, se você é médico e vê 100 crianças que bebem todas do mesmo poço e 98 delas apresentam diarreia, você pode, sem hesitar, prescrever diversas doses de antibióticos, ou você pode ir até lá e perguntar: "Que diabos há com este poço?" Então comecei a ler tudo que eu poderia sobre como a exposição a adversidades afeta o cérebro e o corpo no desenvolvimento dessas crianças.
Então, um dia, um colega entrou em meu consultório e disse: "Dra. Burke, você já viu isso?" Ele tinha nas mãos uma cópia de uma pesquisa chamada de Estudo de Experiências Adversas na Infância. Aquele dia mudou minha prática clínica e, por fim, minha carreira.
O Estudo de Experiências Adversas na Infância é algo que todos precisam conhecer. Ele foi conduzido pelo Dr. Vince Felitti na Kaiser, e pelo Dr. Bob Anda, juntos eles perguntaram a 17.500 adultos sobre seu histórico de exposição àquilo que chamaram de "experiências adversárias na infância", ou EAI, que incluem violência sexual, física ou emocional; negligência física ou emocional; doenças mentais, dependência química ou prisão dos pais; separação ou índice dos pais; ou violência doméstica.
Ali se montou um questionário onde se perguntava a presença ou não destes eventos na vida dessa criança.
Para cada "sim" que a criança respondia sobre esses eventos se colocava um ponto no seu quadro de EAI. Então, eles se correlacionaram as taxas de EAI e os resultados na saúde.
O que eles descobriram foi impressionante.
Duas coisas:
- Primeiro, as EAIs são extremamente comuns: Sessenta e sete por cento da população tinham pelo menos uma EAI, e 12,6%, uma em cada oito, tinham quatro ou mais EAIs.
- Segundo: Havia uma relação dose-reação entre as EAIs e os resultados na saúde! Quanto maior a pontuação da EAI, piores os resultados na saúde.
º Para uma pessoa com uma pontuação de EAI de quatro ou mais, o risco relativo de doença obstrutiva crônica dos pulmões era 2,5 vezes maior que o de alguém com uma pontuação zero de EAI.
º Para hepatite, também era 2,5 vezes maior. Para depressão, era 4,5 vezes maior.
º Para o suicídio, foi 12 vezes maior.
º Uma pessoa com uma pontuação de EAI de sete ou mais tinha três vezes mais risco de morrer de câncer de pulmão e
º Uma pessoa com uma pontuação de EAI de sete ou mais tinha 3,5 vezes mais risco de isquemia cardíaca, a principal causa de morte nos Estados Unidos.
Bem, é claro que faz sentido. Alguns viram esses dados e disseram: "Qual é! Se você tem uma infância difícil, fica mais propenso a fumar, beber e fazer diversas coisas que vão arruinar sua saúde. Isso não é ciência. É apenas comportamento ruim”.
Mas é exatamente aí que a ciência entra. Hoje entendemos mais do que nunca como a exposição precoce às adversidades afeta o desenvolvimento do cérebro e do corpo das crianças.
Afeta áreas como o núcleo accumbens, o centro de prazer e de recompensa do cérebro, que está envolvido no processo de dependência química.
Ele inicia o córtex pré-frontal, necessário para o controle de impulso e da função executora, uma região crucial para o aprendizado.
E, em ressonâncias magnéticas, vemos mudanças significativas na amígdala, o centro de ocorrência ao medo do cérebro. Então, há de fato razões neurológicas por que pessoas expostas a altas doses de adversidade são mais propensas a apresentar comportamento de alto risco, e é importante saber isso.
Mas ocorre que, mesmo que você não adote comportamentos de alto risco, ainda será mais propenso a desenvolver doenças cardíacas ou câncer. O motivo tem a ver com o eixo hipotálamo-pituitário-adrenal, o sistema de ocorrência ao estresse do corpo e do cérebro, que comandou nossa ocorrência de "luta ou fuga".
Como ele funciona? Bem, imagine que você está caminhando em uma floresta e vendo um urso. predominantemente, seu hipotálamo envia um sinal à sua glândula pituitária, que envia um sinal à sua glândula adrenal que diz: "Libere hormônios do estresse! Adrenalina! Cortisol!"
Então, seu coração começa a acelerar, suas pupilas se dilatam, suas vias aéreas se expandem e você fica pronto tanto para lutar com o urso quanto para correr dele. E isso é maravilhoso, se você estiver numa floresta e avistar um urso.
Mas o problema é o que acontece quando o urso aparece toda noite e esse sistema é ativado repetidas vezes, deixando de ser adaptável, ou de salvar a vida, para ser mal adaptado ou prejudicial à saúde.
As crianças são especialmente sensíveis a essa ativação repetitiva por estresse, porque seu cérebro e corpo ainda estão se desenvolvendo. Altas doses de adversidade não afetam apenas a estrutura e as funções específicas, mas também o sistema imunológico em desenvolvimento, o sistema endócrino em desenvolvimento e até a forma como nosso DNA é lido e replicado.
Para mim, esta informação divulgada pela batia com o que eu havia aprendido, porque, quando entendemos o mecanismo de uma doença, quando sabemos não apenas que partes estão danificadas, mas de que forma, é nossa função, como médicos, usar essa ciência para a prevenção e o tratamento. Esse é o nosso trabalho.
Em São Francisco, criamos o Centro para o Bem-estar da Juventude para prevenir, diagnosticar e curar o impacto das EAIs e do estresse tóxico. Começamos apenas com exames de rotina em todas as nossas crianças, em suas consultas de rotina, porque sei que, se meu paciente tem uma pontuação quatro de EAI, ela é 2,5 vezes mais propensa a desenvolver hepatite ou DOCP, ela é 4,5 vezes mais propensa a ficar deprimida e ela é 12 vezes mais propensa a tirar a própria vida que meus pacientes com nota zero de EAI.
Eu sei disso quando ela está em meu consultório. Para os pacientes que apresentam resultado positivo, temos uma equipe multidisciplinar que atua para reduzir a dose de adversidade e tratar os sintomas com as melhores técnicas, que inclui visitas domiciliares, coordenação de cuidados, assistência psiquiátrica, nutrição, disciplinas holísticas e, sim, medicação quando necessário.
Também instruímos os pais sobre o impacto das EAIs e do estresse tóxico da mesma forma como se ensina sobre fechar tomadas elétricas e sobre envenenamento por chumbo, e adaptamos os cuidados com nossos asmáticos e diabéticos de forma a considerar que talvez eles precisam de um tratamento mais agressivo, dada às mudanças em seus sistemas endócrinos e imunológicos.
Outra coisa que acontece quando entendemos essa ciência é querermos gritá-la aos quatro cantos, porque esse não é um problema só das crianças de Bayview. Eu percebi que, logo que todos tomassem conhecimento disso, haveria exames de rotina, equipes de tratamento multidisciplinares e teria uma corrida para os protocolos mais eficazes de tratamento clínico.
Pois é... Mas não foi assim que aconteceu. E foi um grande aprendizado para mim. Aquilo que pensei ser simplesmente a melhor prática clínica hoje exigia uma mudança de atitude.
Nas palavras do Dr. Robert Block, ex-presidente da Academia Americana de Pediatria, "As experiências adversárias na infância são a maior ameaça à saúde pública não combatida que nossa nação enfrenta hoje”. E, para muitas pessoas, esse é um panorama terrível. A escala e o alcance do problema parecem tão grandes que parecem difíceis pensar em como vamos lidar com isso.
Mas, para mim, é aí que mora a esperança, porque, quando tivermos a estrutura correta, quando considerarmos isso como uma crise de saúde pública, podemos então usar as ferramentas certas para gerar soluções. Do fumo, ao envenenamento por chumbo, ao HIV/AIDS, os Estados Unidos na verdade têm um histórico bem forte de enfrentamento de problemas de saúde pública, mas repetir esse histórico de sucesso com as EAIs e com o estresse tóxico exigirá determinação e comprometimento, e ao observar a ocorrência de nossa nação até agora, eu me pareço: "Por que ainda não levamos isso mais a sério?"
Sabe, no início eu descobri que não dávamos importância à questão por não se aplicar a nós, que era um problema hereditário das crianças e dos lugares onde vivem, o que é estranho, porque os dados não mostram isso.
O estudo original das EAIs foi realizado com uma população em que 70% eram brancos, 70% tinham nível superior. Mas, depois, ao conversar mais com as pessoas, comecei a achar que talvez eu tivesse feito tudo ao contrário. Se eu perguntar-se quantas pessoas nesta sala foram criados com um familiar que tinha alguma doença mental, aposto que alguns levantariam a mão. E se eu perguntar-se quantos tiveram pais que bebiam demais ou que acreditavam que se você não batesse na criança você a estragaria, aposto que mais algumas pessoas levantariam a mão. Mesmo nesta sala esse problema atinge muitos de nós e começo a acreditar que não damos importância a esse problema porque ele de fato se aplica a nós. Talvez seja mais fácil enxergá-lo em outras regiões porque não queremos encará-lo. Preferimos ficar doentes.
Felizmente, avanços científicos e, honestamente, realidades econômicas tornam essa opção menos viável a cada dia. A ciência é clara: adversidades na infância afetam significativamente a saúde ao longo da vida. Hoje, estamos começando a entender como intercalar a progressão da adversidade na infância para a doença e a morte precoce e, daqui a 30 anos, uma criança que tenha uma pontuação alta de EAI, sintomas de comportamento não apresentados anteriormente, cujo controle da asma não está correlacionado e que acabe desenvolvendo hipertensão e doença cardíaca e câncer precocemente serão tão incomuns quanto alguém com uma sobrevida de seis meses para o HIV/AIDS.
As pessoas verão essa situação e dirão: "Que diabos aconteceu?" Isso é tratável. É possível combatermos isso. A coisa mais importante do que precisamos hoje é a coragem de enfrentar esse problema é considerar que ele existe e que afeta todos nós. Acredito que nós somos uma mudança.
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Nadine Burke Harris - pediatra Canadense-americana renomada por seu trabalho pioneiro na área da saúde infantil, mais especificamente no estudo dos efeitos da adversidade na infância no desenvolvimento a longo prazo da saúde. Considerada figura fundamental na sua área e tem dedicado sua vida em transformar a forma como cuidamos das crianças e das famílias. Seu trabalho tem inspirado profissionais de saúde, educadores, legisladores e a sociedade civil em geral a reconhecer a importância de promover a saúde e o bem-estar das crianças desde os primeiros anos de vida.
Autora do livro "Mal Profundo", onde ela narra sua jornada de descobertas e pesquisas, oferecendo ao público uma compreensão mais profunda sobre como os traumas da infância podem afetar nossa saúde e como podemos romper esse ciclo.