Quando o zen budismo se encontra com a psicanálise de Magid.
Com insights provocativos e uma escrita acessível, Magid demonstra um domínio notável sobre a psicologia do self de Kohut, mas seu livro peca por uma abordagem limitada de conceitos centrais da psicanálise clássica. Apesar disso, a obra oferece contribuições importantes para o diálogo interdisciplinar, especialmente no campo da integração da prática meditativa (zazen) ao cotidiano e à clínica.
Magid fundamenta seu Zen na ideia de “mente comum”, uma visão pragmática e despojada de ambições transcendentais de iluminação ou perfeição. Para ele, a prática do Zen não é um meio para atingir um estado especial, de “elite espiritual”, mas o Zen é a própria expressão contínua de quem somos verdadeiramente. Esse ponto ressoa com o ensinamento de Dogen sobre o zazen: a prática não visa um objetivo final, mas é em si mesma uma manifestação do caminho. Essa abordagem dialoga diretamente com a clínica do Real no último Lacan, em que a reconciliação com a falta e o sinthoma é uma forma de viver plenamente o que se é, sem ilusões de completude ou resolução plena.
Magid propõe uma visão integrada entre Zen e psicanálise, rejeitando divisões entre a dimensão psicológica e a dimensão espiritual, lembrando Ken Wilber e alguns textos da psicologia transpessoal. Ele critica o dualismo mente-corpo, oferecendo uma perspectiva mais próxima de sistemas interdependentes, como o conceito budista de originação codependente. Porém, sua abordagem psicanalítica revela limitações. O autor utiliza a noção de “disponibilidade emocional”, defendida por Donna Orange, em oposição à “neutralidade” clássica do analista, reduzindo a complexidade do que Freud-Lacan propuseram sobre a posição do analista. Para Magid, a “empatia” e a “presença emocional” tornam-se centrais na clínica, mas ele não reconhece o risco de “fusão simbólica” com o analisando, algo que Lacan, Bion e até Winnicott alertaram em suas obras.
Sua crítica a Bion — especialmente à ideia de “sem desejo, sem memória” ou ao conceito de “O” — carece de profundidade. Suspeita-se que ele nem tenha lido os textos em profundidade, pois Magid interpreta mal a postura bioniana, como se esta fosse uma forma de idealismo abstrato, ignorando que o “não saber” em Bion é uma ferramenta clínica e epistemológica importante. Da mesma forma, sua leitura de Freud parece ser uma apropriação de segunda mão, mediada por interpretações da psicologia do self, o que enfraquece seu potencial de diálogo com a psicanálise clássica.
Os pontos mais fortes do livro estão na exploração das sobreposições entre o Zen e algumas concepções da psicanálise do self e interrelacional. Magid argumenta que tanto o Zen quanto a psicanálise desafiam nossas fantasias de ganho e perfectibilidade. A prática meditativa, assim como a análise, envolve uma aceitação radical da vida como ela é, com suas lacunas, contingências e potencialidades. Esse aspecto é profundamente psicanalítico: reconhecer o furo na estrutura subjetiva e encontrar um modo ético de viver com ele. E sua ênfase, “a mente comum é o caminho”, reflete a simplicidade do Zen como prática de aceitação do cotidiano e ressoa com o esforço psicanalítico de possibilitar ao sujeito o encontro com o bem-dizer, ou seja, uma ética de reconciliação com sua singularidade.
“Mente comum” oferece uma visão instigante da interface entre Zen e psicanálise, mas sua contribuição é limitada pelo desconhecimento de autores fundamentais da psicanálise contemporânea que parecem ausentes no cenário estadunidense de Magid. A rejeição implícita de Lacan e a crítica superficial a Bion e Freud empobrecem o diálogo proposto por ele na capa do livro.
Por fim, o livro reflete mais um esforço de fertilização cruzada entre Zen e psicologia do self do que um diálogo robusto com a psicanálise. Ainda assim, “Mente comum” merece atenção por sua sensibilidade à prática cotidiana e por questionar concepções reducionistas sobre sofrimento e transformação pessoal. É uma leitura que desafia tanto psicanalistas quanto praticantes de Zen — e também de outros saberes espiritualistas — a repensarem suas práticas à luz de uma aceitação mais radical da condição humana, trágica e belíssima.
Em apertada síntese, “Mente comum” é um convite ao encontro entre duas tradições e, apesar de suas lacunas teóricas, Barry Magid oferece reflexões valiosas sobre o abandono de fantasias idealizadas de cura ou iluminação, propondo uma prática centrada na vida tal como ela é. Para aqueles interessados na interseção entre espiritualidade e psicanálise, o livro é instigante, mas requer uma leitura crítica e complementar para preencher os pontos cegos deixados pelo autor.
Barry Magid, MD, é psiquiatra, psicanalista e professor Zen que atua e ensina na cidade de Nova York.
Marcio Sales Saraiva: Pesquisador, professor, escritor e Doutor em Psicossociologia pela UFRJ com formação em Magistério, História, Sociologia e Filosofia.
do Professor Psicanalista Christian Dunker
que propõe uma conversa sobre
o tema Psicanálise e o Zen
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