FILOSOFIA DA LINGUAGEM OCIDENTAL E VACUIDADE BUDISTA
Padma Dorje out 22, 2015
Os professores Robert Thurman e Lama Padma Samten apresentam uma perspectiva que conecta a filosofia de Wittgenstein com o Darma do Buda. Neste texto busco brevemente traçar os resultados dessa interseção.
Na classificação hierárquica tibetana de doutrinas budistas, as formas inferiores de apresentação dos ensinamentos mantém o realismo – doutrina filosófica que presume que as coisas existam independentemente do observador – dando ênfase para a ação (ética) e com foco no autodesenvolvimento.
A forma intermediária, chamada de “apenas mente”, sustenta o idealismo – filosofia que assume que as coisas existam apenas na dependência de uma mente – dando ênfase para o cultivo (meditação, treinamento da mente), com foco na coragem de tomar responsabilidade por todos os seres.
A forma superior, o caminho do meio, não se compromete com realismo ou idealismo, e dá ênfase à visão (sabedoria, reconhecimento da vacuidade), com a mesma grande responsabilidade assumida pela forma intermediária. Neste artigo pretendo estabelecer relações e semelhanças desta terceira forma com a “virada linguística” da filosofia ocidental na primeira parte do séc. XX.
De modo geral as perspectivas budistas catalogadas pelos tibetanos são tidas como complementares e cumulativas – todas as formas de prática budista (tibetanas ou não) focam ética, cultivo e sabedoria, mas as ênfases respectivas, e certas peculiaridades nos métodos, produzem a grande diversidade de formas de apresentação dos ensinamentos.
A prioridade na ética funciona bem com o realismo ingênuo. Neste âmbito, ouvir e contemplar o darma, bem como fazer compromissos (ética prescritiva) se tornam os aspectos mais importantes da prática budista. Da mesma forma, a ênfase no cultivo opera melhor com o idealismo, já que lida com experiências meditativas, introspectivas, e não na interação com seres (como entes separados) ou na percepção.
Pode parecer contraintuitivo que essa segunda forma seja (juntamente com a terceira) a mais voltada à responsabilidade por todos os seres, sendo tão focada no aparente ensimesmamento da prática de meditação – os outros seres-mães aparecendo como apenas “projeções” da mente, ilusões, ou algo assim. Porém o fato é que o que aqui cessa é a separação realista: o sofrimento de todos os seres-mães não é separado do meu, já que são eventos de uma “mesma mente”.
Enfim, na terceira forma, a ênfase na visão, sabedoria/vacuidade, está na natureza da expressão do darma (como exemplo/ensinamento). Na mesma medida em que a reificação da separação surgir, ensinamentos revelando a inseparatividade incessantemente se projetam como expressão da radiância natural da natureza de buda.
As três formas de foco no darma podem então ser resumidas em 1) receber o darma (por corpo, fala e mente – pelo exemplo pessoal, pela expressão verbal do professor e referência a escrituras e pela cognição direta da vacuidade); 2) internalizar o darma; 3) expressar o darma.
Cada um desses focos tem um estilo próprio de ensinamento, e até mesmo doutrinas específicas, que podem parecer incompatíveis. A dificuldade inicial ao lidarmos com essas três formas catalogadas surge do fato delas simultaneamente manterem internamente e entre si propriedades aparentemente difíceis de concatenar: cada uma deles é completa, ao mesmo tempo em que são complementares umas às outras, e ainda assim mantêm uma relação hierárquica, de inferior para superior.
O exemplo mais derradeiro diz respeito ao entendimento de anatman (páli anatta), ausência de eu. A doxografia tibetana empilha vários modos de refutação da existência do eu, dos argumentos mais fracos aos mais sofisticados e difíceis de refutar (ou, segundo a tradição budista, impossíveis de refutar, ou pelo menos não refutados até o momento).
Aqui cabe uma nota. Anatman, por curioso que pareça, não é uma doutrina essencial do budismo. Em outras palavras, há pelo menos uma forma de budismo autêntico e histórico que, em pelo menos certa acepção de indivíduo ou identidade, não refuta o eu, o pudgalavada. Porém essa é uma forma extinta de prática budista, e todas as escolas budistas atuais, e pelos últimos ~1800 anos, claramente refutam a existência de um eu – ao mesmo tempo que afirmam e reconhecem um “engano em massa”, nosso hábito usual extremamente forte de postular e viver de acordo com a existência de um eu, reificação esta que é considerada a principal causa de sofrimento.
Usando da extrema simplificação que um artigo deste tamanho necessariamente precisa fazer, as refutações do eu referentes aos três níveis são:
1) o que chamamos de “eu” é algo composto pelos cinco agregados (corporealidade, sensação, percepção, ideação e consciência); tudo que é composto é impermanente e insatisfatório; como tomar o que é impermanente como permanente causa sofrimento, na medida em que houver a visão errônea que projeta por força de hábito um “eu” sobre os cinco agregados, e portanto tenta encontrar algo permanente no que é impermanente, isto será causa de sofrimento;
2) poderia-se afirmar, porém, que o “eu” pode seguir existindo como uma mera abstração (um conceito), fazendo devida referência aos agregados; se esse fosse o caso, para manter algum tipo de predicado ontológico sobre esse conceito (existência), ele precisaria ter efetividade causal (interagir com os agregados), ou ao menos continuidade; se o “eu enquanto conceito” tivesse poder sobre a mente, não haveria distração para dirimir pela meditação; o fato de que a distração é possível mostra que os agregados e o conceito de “eu” não tem poder um sobre o outro; da mesma forma, se vários estados mentais flutuantes são possíveis, e inclusive é possível eliminar a distração, não pode haver continuidade de um “eu” enquanto conceito referente aos agregados;
3) tudo isso apenas refuta a existência absoluta ou intrínseca do “eu” – o uso do pronome, bem como de nosso nome próprio, e, por exemplo, responder “presente” na chamada da escola, seguiriam mostrando que há umaexistência relativa do eu; porém, o “eu” enquanto uma mera designação sem referente (não vinculado portanto aos agregados) é meramente relacional (um substantivo como mãe, filho, ou chefe – que existe na dependência de outro), e isso não configura qualquer tipo de existência. O eu é só um nome sem referente, sem extensão, ou, no jargão tibetano, sem “objeto designado”.
A refutação do eu se dá então em termos de 1) impermanência dos agregados; 2) independência entre o eu postulado pela ignorância e os agregados; 3) ausência de um referente para o substantivo/pronome “eu”.
Temos então proposto que a forma superior de refutação de um atman ou “eu” se faz um argumento de filosofia da linguagem. Enquanto que o argumento do primeiro nível, vaibhasika, se dá em termos metafísicos – constituintes fundamentais, ideias de simples e composto, identidade, etc. – e pragmáticos (se você não quer sofrer, não reifique o eu); a argumentação no segundo nível, cittamatra, se dá em termos epistêmicos (o argumento de Vasubandhu é enorme, com muitas ramificações, e aqui foi simplificado ao extremo); a refutação do terceiro nível, madhyamaka, diz respeito ao conceito de nome próprio na filosofia da linguagem.
Frege nos apresenta o seguinte problema: quando alguém diz “a estrela vespertina é a estrela matutina”, as duas expressões tem um mesmo referente, a saber, o planeta Vênus. Porém, a sentença não é tautológica, ela nos diz algo: ela não nos diz simplesmente que “Vênus é Vênus”, existe um conteúdo transmitido na revelação da identidade entre os termos – e assim Frege separa o sentido de um termo de seu referente. O referente é o mesmo, o sentido é diferente: como dois sentidos são apresentados, aprendemos algo sobre o mundo, não apenas que X é o mesmo que uma segunda instância de X.
Russell nos apresenta um problema na mesma linha, mas que nos aproxima ainda mais do “eu” para a madhyamaka: quando dizemos “o atual Rei da França é careca”, essa frase faz sentido, e podemos entendê-la perfeitamente mesmo não havendo um Rei da França! O que é difícil é entender, sem um terceiro excluído, o valor de verdade de uma proposição desse tipo: em termos de falácias informais, seria algo semelhante a perguntar “você já bateu em sua mulher hoje, sim ou não?” Ao afirmar que o valor de verdade de “o atual Rei da França é careca” é falso, postulamos um Rei da França (que não existe) como não careca. E isso parece um problema se alguém postula que todas as proposições com sentido possuem valor de verdade, e que esse valor de verdade precisa ser verdadeiro ou falso.
Para entender melhor a dificuldade de Russell com uma coisa aparentemente tão prosaica, não se trata aqui de um problema de falar de um inexistente, no caso, o Rei da França – isso é trivial. Quando dizemos “Não existem unicórnios”, entendemos perfeitamente o que se quer dizer com o termo, ainda que até hoje (até onde se saiba) não tenha havido nenhum unicórnio. “Não há Rei da França” não é tão problemático quanto atribuir um predicado ao inexistente, “ele é careca”: mas novamente referir a um inexistente é solucionado pela distinção fregeana entre sentido e referência, apenas que o sentido pode ser estendido por “descrições definidas” (sendo essa uma das soluções comuns encontradas por muitos filósofos, com algumas outras opções sendo tentadas ao longo das décadas).
O salto da linguagem para a ontologia, plenamente destruído por Kant em sua refutação ao argumento de Santo Anselmo para a existência de Deus, também aparece com relação ao budismo. Algumas escolas hindus tentaram acusar o mero fato de se postular a negação do eu como evidência da existência de um eu. E, de fato, na linguagem popular associada ao budismo surge uma derivação em que esse erro é invertido: a ideia de “destruir o eu”. Ora, para ser destruído, ele precisa existir. Então, se algo está sendo feito com relação ao “eu” (além de uma refutação, e esse é o ponto crucial!) isso sem dúvida está reificando o “eu” – o que vai contra o ensinamento budista (até mesmo o dos pudgalavadins).
De outra forma, frases simples como “eu fui à feira” não necessariamente reificam um eu, a saber, não só pela separação ontológica entre realidade e linguagem, mas também por resultados semelhantes aos da madhyamaka, Russell e Frege.
O problema aparente na sentença de Russell é atribuir um predicado a um inexistente e isso fazer sentido, poder ser compreendido. Digo “aparente” porque o segundo Wittgenstein mostrará que o problema é justamente achar que é necessário qualquer lastro ontológico para a linguagem funcionar. (É bom lembrar que “nome próprio” no sentido técnico da filosofia não é o mesmo que o sentido cotidiano: trata-se de um substantivo qualquer que só tenha uma instância, não seja, portanto, um universal.)
Em todo caso, o que nos importa é que qualquer expressão que use o pronome “eu” pode fazer sentido mesmo sem o pronome ter qualquer extensão. Isto é, sem haver nenhum “eu” além da mera designação.
Por que é importante preservar o uso do pronome “eu”? Para preservar os sentidos convencionais do mundo, sem os quais, qualquer budista concede, a ética não é possível – e sequer a comunicação com o uso da linguagem, que é essencial para a divulgação do darma, seria possível. O sentido convencional precisa ser preservado sem nenhuma reificação, e, aliás, é argumento budista que na medida em que sentido convencional for reificado, nesta mesma medida também se torna mais difícil ser ético. (O exemplo mais prosaico é o do direito, que usa a palavra “réu” para designar alguém que não foi condenado: embora o dicionário aponte que réu, no sentido popular, reificado, muitas vezes ganhe o significado de “autor do crime”, é evidente que o juiz precisa encará-lo como suspeito acusado, e manter a flexibilidade epistêmica até fazer seu julgamento. Se o réu fosse invariavelmente o criminoso, não seria necessário julgamento… não reificar significa reconhecer que não é lícito nenhum tipo de salto ontológico a partir das palavras.)
O passo seguinte é ir de anatman para sunyata, vacuidade. Enquanto que as formas hinayana do budismo,vaibhasika e sautrantika (aqui, por questão de espaço, ignorei a refutação do “eu” estabelecida pela sautrantika;a refutação da vaibhasika é a primeira da lista acima), se preocupam apenas com a refutação de um “eu” ligado ao indivíduo (pudgala), as formas mahayana, cittamatra e madhyamaka, refutam tanto o “eu” da pessoa quanto o “eu” (ou essência independente, existência intrínseca) de todas as coisas (darmas), sejam eles coisas concretas ou abstratas, incluindo aí os próprios ensinamentos do Buda. Assim hinayana se foca na vacuidade da pessoa, emahayana, de forma mais ampla, na vacuidade da pessoa e de todas as demais coisas.
Com relação à linguagem, todas as formas de budismo são nominalistas, isto é, nenhuma forma de budismo reifica qualquer tipo de existência para universais além da convencionalidade atribuída por uma comunidade linguística. Porém, mesmo no que diz respeito aos outros substantivos, em particular para a madhyamaka, as relações são igualmente totalmente convencionais. Isto é, o caminho do meio refuta qualquer forma de essencialismo semântico, a ideia de que termos tenham correspondência independente com descrições, referentes, “essências” e assim por diante. Todo uso linguístico é convencional, o que quer dizer relativo (o convencional é um subconjunto do relativo) – o que quer dizer dependente, e falso num sentido absoluto.
Claro, a crítica budista (e de outras tradições orientais) à linguagem como essencialmente enganosa é bem conhecida no ocidente, e talvez seja até exageradamente famosa, considerando uma tradição tão focada na expressão da fala iluminada, e tão prolífica em textualidade, tanto no sentido de poesia quanto de “filosofia”. Coisas como “o Tao que pode ser nomeado não é o verdadeiro Tao”, “tudo que pode ser pensado é falso”, e um exemplo da tradição tibetana é a frase do próprio grande Jigme Lingpa: “É só abrir a boca para cair em contradição”, ganham grande ênfase mistificadora e romântica por parte de ocidentais cansados do enorme “lero-lero” da academia e do discurso insincero e invasivo da propaganda. De fato a ironia asiática é que enormes tratados são escritos com o único fim de explicar como os livros não são confiáveis, como transcender a linguagem, etc. – mas eles são escritos, são estudados, e a relação entre a linguagem e seus limites é cotidiana na estrutura pedagógica tradicional asiática. Porém, uma visão do budismo (e do oriente de forma geral) como algo “fora dos conceitos” num sentido romântico ou misterioso, até mesmo como uma tradição deliberadamente incapaz de pensamento sistemático, é prevalente ainda no ocidente.
Não obstante isso, é preciso dizer, como o irônico título de livro Zen já explicita, “Você precisa dizer algo” (You Have to Say Something: Manifesting Zen Insight), que o próprio Buda ensinou por 42 anos. E que existem tradições budistas autênticas e vivas semelhantes à escolástica em detalhamento sistemático, particularmente no contexto monástico – onde o budismo se preserva através do estudo de si mesmo.
Wittgenstein nunca comentou nada sobre o budismo, mas espelha atributos essenciais do darma budista: um modo de expressão que, ao produzir o resultado, deixa de fazer sentido.
Para explicar esse aparente paradoxo, podemos recorrer ao que enfim ocorreu na transição entre o primeiro e o segundo Wittgenstein. Na verdade acaba sendo uma explicação dupla, porque também a transição de Wittgenstein pode ser um tanto esclarecida pelo entendimento das duas formas de madhyamaka, dogmática e dialética, svatantrika e prasangika. Com o que o primeiro Wittgenstein estava lidando? Wittgenstein surgiu na falência do projeto de construir uma formalização lógica não axiomática para a aritmética. Mesmo a matemática mais simples parecia resistir a uma formalização autocontida – e de fato a impossibilidade disso viria a ser demonstrada (no sentido mais propriamente duro e matemático possível, irrefutavelmente demonstrada) por Kurt Gödel na década de 1930.
O primeiro Wittgenstein apresenta uma filosofia de nonsense autoconfesso – se você entende o que o Tractatusdiz, de acordo com o próprio Tractatus, você é capaz de inferir que ele não faz sentido. A linguagem de uma forma geral pode ser preservada, mas a linguagem usada pela filosofia, essa, depois que entendemos o Tractatus, abandonamos: ela só nos cria problemas. Solucionados os problemas causados pelo mau uso da linguagem, podemos ficar em silêncio, não resta nada a dizer (sobre qualquer meta-, qualquer reflexão de segunda ordem: claro que Wittgenstein não nega o prosaico “passe o sal” ou tudo que entendemos como “mera ciência”, no sentido corrente público de ciência). As próprias palavras usadas na solução dos problemas causados pelas palavras, depois de usadas, não fazem mais sentido, e devem ser abandonadas.
Ao que tudo indica Wittgenstein nunca comentou nada sobre o budismo. O único contato de Wittgenstein com o budismo que podemos inferir é que ele leu Schopenhauer, que mantinha uma versão bastante imprecisa dos ensinamentos. Fora alguns acadêmicos budistas, particularmente a partir da década de 1970, ninguém fez relação de Wittgenstein com o darma.
Porém o primeiro Wittgenstein espelha atributos essenciais do darma budista: um modo de expressão que, ao produzir o resultado, deixa de fazer sentido. Já no cânone páli o Buda fala dos ensinamentos como um dedo que aponta a lua, e como um barco que, ao chegar à outra margem, abandonamos. Isso está em extremo contraste com religiões reveladas que expressam a verdade divina através das palavras de um profeta: o que o Buda diz não é nem mesmo proposicional (verdadeiro ou falso), não é explicativo, é um mero método para ver a lua. Wittgenstein, possivelmente sem nunca ter tido acesso a esses ensinamentos (em particular os SutrasPrajnaparamita, que expressam coisas desse tipo com todas as letras), diz que seu livro é como uma escada que, após termos usado para subir para o andar de cima, podemos descartar.
O que é essa outra margem, esse andar de cima, ou essa lua? No caso do budismo, é a realização do Buda. No caso de Wittgenstein, é a superação da filosofia, a superação dos problemas filosóficos. Para comparar as duas coisas, basta secularizar a visão budista de seu resultado, ou “iluminar” a visão wittgensteiniana – o método é o mesmo.
Chandrakirti, assim como Wittgenstein, acreditava que o método central da madhyamaka era reduzir filósofos a “vaqueiros”, gente simples, que fala a linguagem ordinária. Depois de removidas as camadas de justificação conceitual impostas sobre nossos hábitos, passamos a tratar diretamente dos hábitos. A pessoa comum já tem problema suficiente com o hábito usual que reifica o “eu” – a esse problema o filósofo adiciona termos como “essência” ou “alma”, selando o engano com a linguagem, tornando ainda mais difícil ver com clareza a realidade.Mas o surpreendente da relação de Wittgenstein com o budismo não fica apenas no primeiro Wittgenstein. Da mesma forma que Wittgenstein veio a reconhecer o valor da linguagem e da filosofia como método contínuo para a liberdade perante os problemas filosóficos, a divisão da madhyamaka em dogmática e dialética representa essa mesma aceitação do lado budista. O segundo Wittgenstein encontra desapego perante visão negativa (e dogmática) perante a linguagem mantida pelo primeiro: mas a linguagem agora tem outro sentido, não é uma escada a galgar, algo a usar e abandonar, o próprio método agora é uma expressão indireta, sem conteúdo (sem tese), aforismática, dos limites da linguagem.
Em termos extremamente rasos, a madhyamaka dogmática (svatantrika) expõe a vacuidade como uma tese a ser verificada. Através de inferências lógicas o aluno refaz o caminho do professor e obtém uma realização intelectual da vacuidade, que vai facilitar em muito sua prática de meditação e efetivo reconhecimento direto da vacuidade.
A palavra “dogmática” aqui é um exagero, nenhuma forma de budismo, muito menos de madhyamaka, apresenta os ensinamentos como algo “a ser aceito” – todos eles precisam ser examinados e testados, e só aceitos se passarem pelos critérios de inferência e experiência do praticante. Embora a fé exista no budismo, e tenha seu papel na prática budista – com relação a ver o valor no professor, autoridade na linhagem, respeito pelos ensinamentos, pelo menos no sentido de acreditar neles e estudá-los de forma sistemática ao ponto de botá-los em prática e fazer os experimentos com os controles estabelecidos pela tradição – de nada adianta uma vacuidade que se aceita por fé. É pior do que servir para nada, possivelmente aceitar cegamente uma vacuidade mal entendida como algum tipo de niilismo vai ser pior do que não praticar o budismo. Não é esse o dogmatismo grotesco o da svatantrika: todas as formas de budismo informam que meditar numa mera ausência produz, na melhor das circunstâncias, um renascimento de extrema ignorância e longa perda de tempo como um deus da não forma, e na pior delas, um renascimento degradado como animal.
A mesma critica se aplica, em certa medida, aos pratyekabudas “budas solitários”, ou “budas de pedra”, seres que atingem a realização, mas cuja compaixão não é totalmente expressa. Grandes seres com uma pequena mácula egoísta, ou um pequeno apego residual a um estado de “mera ausência”. Semelhante a quando Wittgenstein considerou a filosofia resolvida e foi ser um professor de matemática impaciente (e violento!) para crianças no interior da Áustria. O segundo Wittgenstein como que faz um “voto de bodisatva” e retorna à academia, não exatamente negando seu trabalho anterior de forma completa, mas usufruindo de um sentido novo da linguagem como forma de compaixão – não é que os problemas da filosofia não tenham sido plenamente solucionados noTractatus, é simplesmente reconhecer que a ignorância não cessa por decreto.
O que a svatantrika acredita (ou sua forma particular de reificação) é justamente o que o segundo Wittgenstein tão habilmente refuta em suas Investigações Filosóficas: a noção de uma linguagem privada. Digamos que o professor svatantrika tenha sua realização direta da vacuidade, e ele então queira ensinar vacuidade para seu aluno. Porém, o aluno tem, é claro, sua própria experiência privada. A experiência privada de cada um é, em situação normal, para todos os efeitos, inacessível para o outro. O professor então explica para o aluno as várias formas de inferência que ele pode fazer para encontrar ele mesmo essa coisa chamada “vacuidade”.
A madhyamika dialética (prasangika, literalmente “consequencialista”) critica esse modo de ensinar da svatantrika com base em que existe uma reificação do processo de inferência ele mesmo como algo a ser “transmitido”. Há uma pequena mácula em transmitir também isso – a prasangika evita essa noção de “lastro interno”. Algumas vezes se usa a expressão “privacidade lógica”, mais do que “linguagem privada”. As conclusões do professor, e o método do professor, têm, é óbvio, seu grande mérito, mas para a prasangika, como para o segundo Wittgenstein, se houver reificação de alguma tese (a ser aceita, a ser refutada), não pode haver liberação (no caso de Wittgenstein, perante a filosofia, no caso do darma, perante a reificação dos fenômenos/coisas). O que o professor transmite não está nas palavras ou inferências, mas na lua que ele aponta. Não é um raciocínio interno que ele espera que o outro espelhe – é um raciocínio (antes de vir a ser uma cognição direta depois com a prática)relacional, não é algo que alguém tem agora e que o outro vai ter depois, quando seguir certas regras de inferência. É algo que o outro já tem, e que não vê por causa dos próprios hábitos adventícios, o que inclui conceitualização errônea no seu nível mais superficial.
Nagarjuna afirmou no Vigrahavyavartani (O Dissipador de Disputas): “Como não afirmei nenhuma tese, não preciso [passar pelo sofrimento/incômodo de] me defender de refutações”, e também “Prostro-me perante o Senhor Buda, aquele que nunca sustentou nenhuma tese”. Sua Santidade o Dalai Lama frequentemente começa seus ensinamentos sobre vacuidade com essas citações. Sustentar tese, no caso, é guardar algum tipo de lastro privado – alguma coisa misteriosa que se “encontra no silêncio”, e que se tenta passar em palavras (como asvatantrika), ou que se desiste de tentar passar (como os Budas de pedra). É preciso ir além e reconhecer que a vacuidade é ela mesma vazia, portanto plena de forma, em particular a radiância criativa e expressiva da compaixão – a coisa misteriosa que se tem dentro de uma caixa e passa (ou não) para o outro não é nada mais do que um obstáculo: a realização é o reconhecimento da inexistência de tal lastro privado, e a expressão desimpedida dessa liberdade. Isso também na forma linguística, que brota como uma corrente, no caso do Buda “tagarelando” perante multidões por 42 anos.
Além disso, vacuidade, vacuidade da vacuidade, e ausência de lastro de modo algum querem dizer que a mente do Buda ou de Nagarjuna não tenha “conteúdos”. O método da prasangika também guarda semelhança com o método de Wittgenstein, e é extremamente semelhante ao próprio método do Buda quando ele mesmo ensinava: quando teses são apresentadas, de acordo com a lógica (nas palavras, com a linguagem, com a inferência) do próprio interlocutor, elas são refutadas. O conteúdo da mente do Buda é a empatia pelo sofrimento dos outros, o que inclui ouvir e entender o que eles estão dizendo – não há um conteúdo próprio, privado, há só um “conteúdo público”. Não há qualquer tipo de violência ou totalitarismo no sentido de impor algo ao outro, seja em conteúdo, seja em forma. É justamente um convite ao outro abandonar sua fixação aos conceitos, particularmente quando o conceito ganha um aspecto de indiferença, ausência ou mera inexpressividade.
O Buda não está entregando nada que o outro não tenha, ele está ajudando o outro a dissipar sua confusão e ver por si próprio. Ao reconhecer os enganos possíveis em suas formas de pensar, o outro naturalmente encontra em si aquilo que o Buda mostra, mas não consegue dizer diretamente, pela natureza dual da linguagem. E isso que ele encontra é vazio, o que quer dizer, também público – e também livre e luminoso. Nada misterioso que se guarda com cuidado e perante o que se é, necessariamente, incompreendido.
O mais extraordinário dessa abordagem, considerada a mais elevada, é que ela subsume não violentamente todas as outras abordagens budistas. Os outros modos de exposição, e suas respectivas “refutações”, são apenas formas históricas em que as pessoas pensaram essas coisas – enquanto não há sustentação ou refutação de uma tese,qualquer tese pode ser usada de modo expediente. Umas dissolvem as outras, os raciocínios “se fazem de bobos por si próprios”. De fato, isso se estende a abordagens não budistas: a universidade onde a madhyamika se desenvolveu, Nalanda, era famosa pelo diálogo inter-religioso, antes de uma série de invasões muçulmanas a destruir, lá pelo ano 1000.
A superioridade, portanto, da prasangika, assumida por todas as tradições tibetanas, é melhor expressa na abertura de Sua Santidade o Dalai Lama perante toda a diversidade do budismo e das outras tradições religiosas do mundo. Não é como se seja necessário refutar qualquer coisa em particular, quando todas as coisas apontam uma mesma natureza. Porém, é preciso frisar que a natureza livre não está nessas coisas pelos seus conteúdos, mas no modo com que se apresentam. E a delicada, mas incansável, refutação de todas as visões errôneas, ou parcialmente corretas, na direção de progressiva remoção de obstáculos, é uma ação eminentemente compassiva. Ao contrário da inter-religiosidade rasa que acredita que esse apontar um cerne comum é virtude própria das muitas formas de pensar, a própria ausência de reificação quanto a qualquer tese é o que permite a expressão máxima da radiância da sabedoria.
Bibliografia
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