O revisionismo histórico e a desinformação

Grupos usam redes sociais para distorcer fatos, manipular narrativas e detratar as ciências humanas

Mariana Mandelli ~ 
Coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta ~ SÃO PAULO


"Sim, eu sou o cara que vai nas livrarias pra pegar 'O Diário de Anne Frank' e botar na seção de ficção". Esta frase foi publicada no Twitter nessa semana em uma discussão sobre nazismo, por um perfil que se diz parte de uma “organização política, de orientação nacional-revolucionária, que defende uma resistência ampla à agenda neoliberal e globalista no Brasil".

Como se sabe, o negacionismo do Holocausto não é um fenômeno novo –ganhou força nos anos 80 e teve, na década seguinte, um de seus episódios mais memoráveis, quando a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt, autora do livro “Denying the Holocaust” (1993), foi processada por David Irving, um historiador britânico citado por ela como um dos maiores negacionistas do genocídio de judeus. O julgamento foi registrado por Lipstadt no livro “History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier” (2005) que ganhou uma versão cinematográfica em 2016.

Exposição virtual à casa de Anne Frank



Foto da família Frank Reprodução

Negacionismo e revisionismo são termos muito acionados em tempos de infodemia. Apesar de serem utilizados como sinônimos, é necessário dizer que a prática de revisar a história não tem –ou pelo menos não tinha– uma conotação conceitualmente negativa. Isso porque o aprimoramento dos instrumentos, evidências, documentos e técnicas de análise pode impactar teses já estabelecidas na produção historiográfica. Para os historiadores isso não é nenhuma novidade – aliás, é sabido que o conhecimento é mutável em todas as áreas.


Contudo, assim como os disseminadores de “fake news” se utilizam da legitimidade social da imprensa para espalhar desinformação por meio de sites que imitam a linguagem jornalística, os negacionistas de eventos históricos também se apropriaram do preceito revisionista, invertendo seu princípio positivo e impondo ao termo um viés conspiratório e, consequentemente, de busca por uma verdade “escondida”. A lógica é semelhante e, não à toa, muitos desses conteúdos que desacreditam a historiografia são chamados de “fake news” nas redes sociais.

Ademais, da mesma forma que existem jornalistas profissionais acusando veículos e colegas de mentirosos, não é difícil encontrar pesquisadores e escritores com diversos livros publicados (como David Irving), alguns inclusive com boas instituições de ensino no currículo, que estejam alinhados com narrativas negacionistas. Em outras linhas: assim como existem médicos antivacina (vide o caso Andrew Wakefield), haverá historiadores que distorcem fatos.
Isso é bastante delicado porque subverte um argumento muito comum em tempos de pandemia: “confie na ciência”. Quando quem, em tese, detém o conhecimento e usufrui disso para manipular e desinformar, temos um grande e complexo problema.

O mesmo vale para políticos e demais autoridades. Exemplos de reinterpretação ideológica dos fatos não faltam, e talvez a narrativa falaciosa de que o nazismo seria alinhado ideologicamente ao pensamento de esquerda seja o melhor exemplo para ilustrar como se faz um uso político do passado.

No Brasil, esse suposto debate (que também não é novo) apareceu com mais força em 2018, quando a embaixada alemã publicou nas redes um vídeo explicando o regime ditatorial de Hitler como uma ideologia de extrema direita, gerando uma enxurrada de comentários de internautas que “desmentiam” tal caracterização. Membros do governo Bolsonaro, incluindo o próprio presidente, também já manifestaram o mesmo posicionamento.
1 5
Propaganda nazista anticomunista






"Basta com a corrupção", diz cartaz que pede voto nos nazistas em eleições do fim da década de 1920. O punho com a suástica golpeia tanto os comunistas quanto os especuladores judeus Reprodução

Vale destacar que não são apenas os fatos horrendos da Segunda Guerra Mundial que são alvo de pseudocientificismo. Outros eventos –como a ditadura militar– e figuras históricas –como Zumbi do Palmares– também são constantemente revisados por grupos que manipulam a história e difamam personalidades e vítimas.

Nesses termos, o revisionismo histórico não deixa de ser também uma maneira de diminuir a importância das ciências humanas, logrando a esses saberes a pecha de subjetivação dos fatos, como se não houvesse nenhum tipo de método envolvido nesse tipo de fazer científico.

É também um ataque à democracia na medida em que exalta períodos históricos de repressão, censura e tortura como tempos idílicos de liberdade e benesses coletivas. E não deixa de ser um propulsor de discursos de ódio e apologia a ideias discriminatórias.

Parafraseando um lugar-comum no mundo da estatística (“torture os números que eles confessam qualquer coisa”), a crença de que é possível falsificar a história para se ganhar uma guerra cultural ultrapassa a noção de desonestidade intelectual, especialmente quando se trata da negação de crimes contra a humanidade. Trata-se do apagamento das vítimas, do desdém pelo sofrimento das famílias delas. É o desprezo pelo conhecimento e a consagração do achismo e dos nossos vieses de confirmação.

Não se escreve nem reescreve a história com memes, deep fakes e guerras ideológicas promovidas por perfis falsos nas plataformas digitais. É preciso valorizar a profissão de historiador e o ensino da disciplina nas escolas, sem descolá-lo do universo midiático que tanto tenta ressignificá-lo de modo pernicioso. Precisamos de cidadãos midiaticamente educados que sejam refratários a revisionismos e que entendam que livros como “O Diário de Anne Frank” infelizmente passam muito longe de serem ficção.

O EFEITO CIRO GOMES: UMA NOVA ESQUERDA PARA 2022?

Por Bryan da Fonseca Araújo

Dado o ambiente político e institucional conturbado, no qual nos encontramos desde 2016, acrescido da maior crise sanitária desde a pandemia da gripe espanhola, vivido no início do século passado, é normal que nossas atenções não estejam voltadas às eleições municipais. O que falar então das eleições presidenciais no longínquo 2022?!

Contudo, pleiteio que, agora, mais do que nunca, devemos nos preocupar com os rumos do país nos próximos anos, bem como com o caminho a ser seguido daqui para frente. Isso pois, qualquer que seja o governante que venha a assumir a cadeira presidencial, encontrará um país arrasado humanitária e economicamente.

Por isso, uma análise sobre os nomes do espectro progressista e o que eles trazem a essa discussão torna-se essencial. Hoje, falaremos de Ciro Gomes.

Ciro não é nenhuma persona desconhecida no meio político. Reconhecido no cenário nacional pelo o que alguns chamariam de uma inconfundível “verborragia”, Ciro não poupa ninguém de suas críticas, seja de esquerda ou de direita, sejam históricos rivais ou aliados de um passado recente. Se fez, vai ouvir e acabou. Alguns dizem que este é o motivo pelo qual o presidenciável pedetista afasta as chances de assumir a Presidência. Outros, entretanto, afirmam que sua autenticidade é um dos motivos que atrai tanto interesse.

Mas procurarei me ater ao papel do Ciro no espaço de tempo entre as eleições de 2018 até agora.

Ao se lançar como candidato naquele ano, e por estar afastado do cenário político nacional desde 2002, ano do sua última corrida presidencial, Ciro sequer aparecia nas pesquisas espontâneas de voto em 2017. Nas pesquisas com as opções de voto, figurava abaixo de nomes mais conhecidos do grande público à época, como Lula, Bolsanaro, Marina e Alckmin. Isso faltando pouco mais de um ano para as eleições. Contudo, o que se viu foi um Ciro, até então desconhecido, assumir o papel de terceira via ante a polarização Bolsonaro/PT e, de forma isolada, angariar uma terceira colocação.

Eu sei o que você está pensando, nobre leitor: “Qual é?! Um terceiro lugar em uma corrida presidencial não quer dizer lá muita coisa”. Analisando apenas este dado de forma isolada, concordaria com você. Afinal, a Marina havia tirado o terceiro lugar duas vezes. Contudo, quando levamos em conta o contexto, de alguém que era desconhecido para a maioria da população jovem até um ano antes, sem apoio de grandes partidos, sem tempo de televisão e rádio e com uma chapa “puro sangue”, diria que o resultado ficou longe de ser desapontador.

Vale ressaltar, que o que o Ciro deixou de legado pós-eleitoral foi algo que nenhum outro político havia conseguido, nem mesmo a Marina: incomodar o PT dentro de um campo no qual este reinava absoluto, à esquerda.

Ciro, hoje, não é mais aquele candidato que recebe apenas os votos chapa-branca ou os votos de protestos. Ciro, possui, hoje, uma militância própria que não é derivada de qualquer outro movimento. Pessoas que atuam em torno não só do seu nome, mas do seu Projeto Nacional de Desenvolvimento (PND). Hoje, apenas quatro nomes do cenário político podem dizer que possuem um apoio genuíno, são eles: Bolsonaro, Lula, Moro com o dito “Lavajatismo” e Ciro Ferreira Gomes. Destes nomes, o único confirmado para o próximo pleito e já em aberta campanha eleitoral é o Ciro.

Atualmente, não há como negar que há um claro e evidente racha na esquerda. Críticas ao PT em blogs e páginas de esquerda, algo impensável até pouco tempo atrás, borbulham de forma incontrolável entre progressistas. Reflexo disso, é o aumento do tom contra o Ciro das lideranças e do eleitorado petistas. Alguns, inclusive, praticando aquilo que foi feito contra a Marina Silva, ou seja, lançá-lo para o outro lado do espectro ideológico.

Contudo, dado o eleitorado e as ideias do Ciro, esta não tem sido uma tarefa fácil.

A esquerda sempre se diferenciou da direita pelo seu alto grau de ceticismo e sua capacidade crítica, algo que há muito estava em falta em movimentos esquerdistas. Essa nova capacidade de criticar os atos cometido nos governos passados sem a necessidade de ter que explicar escândalos de corrupção ou alianças, no mínimo, duvidosas, dá ao movimento uma certa oxigenação e uma nova chance para a tão pedida e merecida renovação da esquerda.

Resta saber se tal movimento em torno do Ciro terá forças para quebrar certas hegemonias e bases já estabelecidas há muitos anos na esquerda e se esta terá a coragem necessária para se reinventar

COLETÂNEA PARA APRESENTAR JUNG