O revisionismo histórico e a desinformação
Grupos usam redes sociais para distorcer fatos, manipular narrativas e detratar as ciências humanas
Como se sabe, o negacionismo do Holocausto não é um fenômeno novo –ganhou força nos anos 80 e teve, na década seguinte, um de seus episódios mais memoráveis, quando a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt, autora do livro “Denying the Holocaust” (1993), foi processada por David Irving, um historiador britânico citado por ela como um dos maiores negacionistas do genocídio de judeus. O julgamento foi registrado por Lipstadt no livro “History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier” (2005) que ganhou uma versão cinematográfica em 2016.
Exposição virtual à casa de Anne Frank
Ademais, da mesma forma que existem jornalistas profissionais acusando veículos e colegas de mentirosos, não é difícil encontrar pesquisadores e escritores com diversos livros publicados (como David Irving), alguns inclusive com boas instituições de ensino no currículo, que estejam alinhados com narrativas negacionistas. Em outras linhas: assim como existem médicos antivacina (vide o caso Andrew Wakefield), haverá historiadores que distorcem fatos.
O mesmo vale para políticos e demais autoridades. Exemplos de reinterpretação ideológica dos fatos não faltam, e talvez a narrativa falaciosa de que o nazismo seria alinhado ideologicamente ao pensamento de esquerda seja o melhor exemplo para ilustrar como se faz um uso político do passado.
No Brasil, esse suposto debate (que também não é novo) apareceu com mais força em 2018, quando a embaixada alemã publicou nas redes um vídeo explicando o regime ditatorial de Hitler como uma ideologia de extrema direita, gerando uma enxurrada de comentários de internautas que “desmentiam” tal caracterização. Membros do governo Bolsonaro, incluindo o próprio presidente, também já manifestaram o mesmo posicionamento.
Vale destacar que não são apenas os fatos horrendos da Segunda Guerra Mundial que são alvo de pseudocientificismo. Outros eventos –como a ditadura militar– e figuras históricas –como Zumbi do Palmares– também são constantemente revisados por grupos que manipulam a história e difamam personalidades e vítimas.
Nesses termos, o revisionismo histórico não deixa de ser também uma maneira de diminuir a importância das ciências humanas, logrando a esses saberes a pecha de subjetivação dos fatos, como se não houvesse nenhum tipo de método envolvido nesse tipo de fazer científico.
É também um ataque à democracia na medida em que exalta períodos históricos de repressão, censura e tortura como tempos idílicos de liberdade e benesses coletivas. E não deixa de ser um propulsor de discursos de ódio e apologia a ideias discriminatórias.
Parafraseando um lugar-comum no mundo da estatística (“torture os números que eles confessam qualquer coisa”), a crença de que é possível falsificar a história para se ganhar uma guerra cultural ultrapassa a noção de desonestidade intelectual, especialmente quando se trata da negação de crimes contra a humanidade. Trata-se do apagamento das vítimas, do desdém pelo sofrimento das famílias delas. É o desprezo pelo conhecimento e a consagração do achismo e dos nossos vieses de confirmação.
Não se escreve nem reescreve a história com memes, deep fakes e guerras ideológicas promovidas por perfis falsos nas plataformas digitais. É preciso valorizar a profissão de historiador e o ensino da disciplina nas escolas, sem descolá-lo do universo midiático que tanto tenta ressignificá-lo de modo pernicioso. Precisamos de cidadãos midiaticamente educados que sejam refratários a revisionismos e que entendam que livros como “O Diário de Anne Frank” infelizmente passam muito longe de serem ficção.
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