As redes sociais deram voz a uma legião de idiotas. Desde que o filósofo italiano Umberto Eco fez o raciocínio em 2015, ele virou uma verdade absoluta da internet, já que o idiota é sempre o outro. Quando recebia o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura na Universidade de Turim, o escritor fez um discurso sobre a sociedade do espetáculo. Começou com o idiota da aldeia, algo que sempre existiu. Com a TV, o idiota da aldeia já conseguiu um patamar superior e, na internet, "têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel", defendeu. Na aldeia, a baderna do idiota era logo calada. Na internet, ele é mais ouvido que os demais.
Evidente que, ao possibilitar contato imediato o tempo inteiro com pessoas em todos os cantos do planeta, a internet nos apresenta idiotas e formas de ser idiota que ainda não conhecíamos. Ocorre que também apresenta muita coisa que presta. O problema está no idiota, na possibilidade do idiota falar, no tipo de coisa que o idiota fala ou na aldeia? Inspirada pela colorista digital Marina Amaral, especializada em história e ícone mundial em sua área, trago a vocês o desafio de comparar o que escrevemos nas redes com o que se escrevia em 79 d.C..
Quem visita a fascinante Pompéia, ao pé do vulcão Vesúvio, no sul da Itália, geralmente chega atraído pelos corpos petrificados na erupção há 2 mil anos. Mas é no lupanar, a "casa de tolerância", que a gente reconhece a essência da alma humana que segue sendo a mesma tanto tempo depois. As frases escritas na parede por prostitutas, clientes e frequentadores do local são frases que, nos anos 80, caberiam na porta de um banheiro público e hoje são mundialmente unificadas no Twitter.
As redes sociais encorajam anônimos a despejar publicamente toda sua frustração, insegurança, inveja e recalque em forma de discurso violento e maldoso. Será? Recentemente, arqueólogos começaram a coletar frases pichadas em 79 d.C. por toda Pompeia, além do lupanar. Será que as redes sociais mudaram o que dizemos ou o que escolhemos ouvir e reverberar? Confira.
Há 2 anos, uma maledicência escrita numa casa particular mudou a história que conhecemos de Pompéia. Até então, a data da erupção do Vesúvio era estimada entre agosto e setembro, mas com base na transcrição de um documento oficial, feito pelo historiador Pliny com o relato da tragédia 25 anos depois que ela aconteceu. Essa pichação é a prova científica de que a erupção foi depois, no inverno, pelo menos em outubro. Como foi feita em carvão, que se apaga com facilidade, foi preservada apenas porque toda a cidade acabou atingida pela erupção no máximo uma semana depois da inscrição, explicou a arqueóloga Kristina Killgrove na Revista Forbes norte-americana.
Nos acostumamos a ver a história da humanidade contada a partir de grandes atos e grandes feitos, como se as miudezas do nosso dia a dia estivessem apartada de tudo o que nos faz evoluir. A descoberta da diferença de dois meses pode parecer uma bobagem, mas é algo fundamental para todos os estudos mais avançados sobre epidemias, pandemias e doenças recorrentes.
Os bioarqueólogos estudam os restos mortais de cadáveres ancestrais encontrados pelo mundo em busca de patógenos que se assemelhem aos que hoje causam doenças, então comparam os dados históricos do que ocorreu com aquela população, se a doença migrou, voltou, acabou. Dois meses são a diferença entre inverno e outono. Ou seja, uma doença recorrente de inverno é causada por um patógeno que age melhor em temperatura mais baixa. Agora, na pandemia, vemos o quanto a questão da temperatura influi nos estudos sobre o vírus e sobre possíveis vacinas e remédios.
É uma frase que pode ter um impacto enorme nos estudos de história, arqueologia e biologia. Sem dúvida, é uma frase histórica de 79 d.C., que ficou durante 2 mil anos escondida até escavações recentes. O que dizia? Em latim: "XVI (ante) K(alends) Nov(embres) in[d]ulsit pro masumis esurit[ioni]." Em português: "No dia 17 de outubro, ele se empanturrou de comida".
O pé do Vesúvio é um terreno arqueológico que não temos nem ideia de quando terminará de ser estudado. Em Pompéia, as escavações ainda prosseguem. Já foi encontrada uma cidade mais antiga, que também sucumbiu a uma erupção e está embaixo da que conhecemos. Outras áreas continuam sendo escavadas e analisadas com tecnologia cada vez mais moderna. É uma amostra de que a natureza humana, essa que conhecemos das pequenas alegrias e sofrimentos do cotidiano, permanece a mesma.
As "redes sociais" de Pompéia
Trago aqui uma coletânea de frases encontradas nos mais diversos lugares de Pompéia. Algumas são anônimas, as outras são assinadas, mas impossível saber se pelo real autor ou se com nome de outra pessoa. A maioria era feita com materiais que logo se apagavam e em locais onde outras pessoas podiam ver. Podemos imaginar que a única diferença entre as pichações e as redes sociais é que antes não tinha print. Pois é, só que estamos aqui 2 mil anos depois vendo todas essas frases na internet.
"O ministro das finanças do imperador Nero disse que esta comida é veneno", anônimo, na casa de Cuspius Pansa, integrante de uma família de políticos poderosos.
"Floronius, soldado privilegiado da 7a legião, esteve aqui. As mulheres nem perceberam a presença dele. Só 6 mulheres vieram aqui para conhecê-lo, bem poucas para tal garanhão", anônimo, no quartel dos gladiadores.
“Para aquele que anda defecando aqui. Cuidado com a maldição. Se você desprezar esta maldição, pode ter um Júpiter zangado como inimigo” - inscrição na porta da casa de Pascius Hermes.
Neste pequeno quadrado da parede da basílica, temos 3 frases:
"Virgula para seu amigo Tertius: você é repugnante."
"Lucius Istacidius, eu trato como estranho qualquer um que não me convida para jantar."
"Samius para Cornelius: se enforque!"
Todas as paredes têm inscrições. Vamos a mais exemplos:
"Phileros é eunuco."
"Ephapra, você é careca!"
"Chie, espero que suas hemorróidas se esfreguem tanto que doam mais do que antes!"
"Ephapra joga bola mal."
"O homem com quem eu estou jantando é um bárbaro."
"Eu poderia acariciar as costelas de Vênus com um pedaço de pau e chicotear suas nádegas com uma alavanca: ela perfurou meu coração, e eu ficaria feliz em quebrar sua cabeça com um porrete!"
Sabem essa história de "fake news" e campanhas eleitorais difamatórias? Então, também tinha em Pompéia. O print é eterno.
"Os bandidinhos pedem que Vadia seja eleito para aedile (administrador da cidade)."
"Todos o bando que bebe até tarde é a favor da eleição de Vadia."
"Vesonius Primus apóia a eleição de Gnaeus Helvius para aedile, um homem à altura do cargo."
"Os ourives de forma unânime apóiam a eleição de Gaius Caspius Pansa para aedile." (É o mesmo que recebeu, em outro grafitti uma "crítica" à comida que serve em sua casa.)
Estas inscrições anteriores não são feitas por cidadãos comuns, são inscrições encomendadas a profissionais, utilizados nas campanhas políticas e também nos anúncios comerciais de Pompéia, colocados nos locais mais movimentados da cidade. No caso, era um bar, onde também há inscrições de pessoas comuns, como:
"Dois amigos estiveram aqui. Enquanto estavam, eles receberam um serviço ruim em todos os sentidos de um cara chamado Epafrodito. Eles o expulsaram e gastaram 105 e meio sestércios (moeda local) mais agradavelmente com prostitutas."
"Manuseie com cuidado." - ao lado da pintura de um pênis.
Nos livros de história, as pessoas que viveram no tempo de Cristo parecem muito diferentes de nós. Eu não consigo encontrar palavras para descrever a sensação de constatar que estamos há 2 mil anos reclamando das mesmas coisas e repetindo as mesmas pequenas maldades indefinidamente. Por que só agora as pessoas enlouquecem tanto e parecem hipnotizadas? O que mudou é a configuração da praça pública e a maioria de nós ainda não percebeu.
Fake News eleitorais: Pompéia x Brasil
Após anos de estudo e dedicação, fico sabendo que as campanhas políticas na época de Cristo falavam exatamente as mesmas coisas que falamos hoje. A diferença está no impacto, distribuição e reação ao conteúdo. Imagine se fosse possível controlar essas variáveis para favorecer ou prejudicar um candidato. Vamos voltar à parede do bar para um exemplo prático.
Todos os que passavam por lá viam, ao mesmo tempo, as seguintes frases:
"Os bandidinhos pedem que Vadia seja eleito para aedile (administrador da cidade)."
"Todos o bando que bebe até tarde é a favor da eleição de Vadia."
"Vesonius Primus apóia a eleição de Gnaeus Helvius para aedile, um homem à altura do cargo."
"Os ourives de forma unânime apóiam a eleição de Gaius Caspius Pansa para aedile."
Imagine se fosse possível mostrar às pessoas só as frases que interessam, por exemplo, a Vesonius Primus, que era o então administrador de Pompéia.
A primeira providência seria diminuir o máximo possível o alcance informação do apoio unânime dos ourives a Gaius Caspius Pansa e maximizar o alcance do apoio de Vesonius Primus a Gnaeus Helvius. Depois, seria necessário fazer os boatos sobre Vadia chegarem a pessoas que já nutrem alguma antipatia por ele, melhor ainda se tivessem sido vítimas dos pequenos ladrões da cidade ou não gostassem dos bêbados que ficavam pelas ruas até tarde. Quanto mais os simpatizantes de Vadia demorassem para saber dos ataques, melhor.
As informações selecionadas deveriam chegar às pessoas num momento em que não estivessem perto de ninguém em que confiam e que duvidasse do que foi dito. O cenário perfeito seria montar essa operação enquanto as pessoas pensassem que todas elas estão vendo as mesmas frases na parede. Isso hoje tem o nome de Facebook, Twitter, Google, YouTube e Instagram. Não é à toa que são bilionários e tornaram os políticos e a imprensa reféns.
Todos os jornalistas estão inseridos no mesmo contexto. Dessa forma, a percepção de mundo que boa parte da imprensa passa a ter é construída a partir de informações selecionadas de acordo com o perfil individual. A própria imprensa passa a dar importância àquilo que é mais visível e causa mais indignação aos indivíduos que compõem uma redação. Ocorre que esses processos são artificiais e se atribui importância a fatos sem que se tenha acesso ao todo.
Prender o jornalismo no ecossistema das redes sociais faz com que se tornem o tema do dia os não-fatos ou as passagens anedóticas, como o conflito Bolsonaro-Dória sobre a vacina que ainda nem existe. Enquanto isso, assuntos espinhosos que não interessam a quem gasta com os anúncios passam despercebidos. Um exemplo? O Fundo Eleitoral não está sendo gasto com campanhas, falta menos de um mês para as eleições e a maioria do dinheiro não foi repassada para os candidatos, principalmente mulheres.
Na semana passada, o Wall Street Journal publicou uma reportagem investigativa mostrando que o próprio Mark Zuckerberg, depois de jantar com políticos e lobistas importantes, pediu e supervisionou mudanças no algoritmo do Facebook para maximizar a distribuição de alguns produtores de conteúdo e diminuir a de outros. Os atingidos pela redução já haviam percebido, mas julgavam ser questão ideológica. Não era. Os que esclarecem as pessoas sobre como as plataformas desinformam são os alvos, em qualquer espectro ideológico. O que produzem tem menos alcance, gente falando bem tem menos alcance e a difamação é maximizada.
Logo após as eleições presidenciais nos Estados Unidos, as plataformas foram chamadas ao Congresso Nacional para esclarecer a lambança que haviam feito. Em seguida, explodiu o escândalo da Cambridge Analytica, até então a empresa mais famosa em capturar a história de vida e comportamento das pessoas para direcionar informação que interessa a seus clientes. O Facebook declarou oficialmente que iria mexer no algoritmo para reduzir o alcance de postagens políticas e aumentar o que vemos de posts pessoais dos nossos amigos, objetivo inicial da plataforma.
Isso foi feito, mas iria afetar demais clientes gordíssimos do Facebook, os novos "comunicadores independentes", gente paga por políticos, empresas e instituições para emitir opiniões sensacionalista mexendo com os medos e traumas das pessoas. Eles são os melhores clientes das plataformas porque, como a incoerência no comportamento pode ser percebida até por crianças, precisam apelar para a manipulação das emoções individuais para ganhar confiança do público. Isso custa dinheiro e é legalizado, chama-se impulsionamento e marketing segmentado.
Na primeira mudança, um dos clientes mais gordos teve um impacto além do esperado e, conforme noticiado pela imprensa na época, os donos do empreendimento jantaram com Mark Zuckerberg na mesma época em que ele manteve reuniões com órgãos tradicionais de mídia, que foram menos afetados porque têm reputação mas queriam acertar as coisas. Agora, o WSJ informou que os engenheiros do Facebook foram chamados a fazer uma segunda mudança, pessoalmente supervisionada por Zuckerberg. Era preciso dar um grau extra de diminuição aos veículos que combatiam esses clientes.
Você já deve ter visto reclamações de diminuição de alcance de postagens tanto à direita quanto à esquerda e isso nos faz questionar qual a ideologia das plataformas. Chama-se dinheiro. Os que mais precisam colocar dinheiro na plataforma para chegar às pessoas são os que têm conteúdo com potencial explosivo, sem credibilidade e bancado por algum interesse econômico que não pode ser dito abertamente. Quem os incomodar sofrerá as consequências.
Este não é um problema do Facebook. Citei o caso específico porque é o mais novo. O que mais me incomodou, particularmente, é em outra plataforma. No ano de 2018, foi criado o YouTube Kids, para que nossos filhos não fossem expostos a conteúdo adulto, violento, malicioso ou de desinformação. Pois bem, 3 anos depois que a plataforma estava no ar e milhões de pais em todo o mundo pensavam ter resolvido um problema, a Business Insider descobriu que o algoritmo do YouTube oferecia às nossas crianças teorias conspiratórias em vez de conhecimento.
A reportagem fez buscas simples, dessas que a gente fazia em enciclopédia. Procuraram, por exemplo, "chegada do homem à Lua". Todos os vídeos que apareciam no YouTube Kids eram diferentes teorias de como a NASA nunca foi à Lua e de que forma encenou uma mentira para o mundo todo. Ao vê-los, a crianças era sugada para um universo paralelo de medo: seres humanos híbridos vivendo entre nós a serviço de extraterrestres, sacrifícios humanos feitos em lojas maçônicas, o governo dos EUA planejando o assassinato do presidente Kennedy, os aliens que vivem na Lua, difamação de vítimas de tiroteios em escolas. Isso era o conteúdo para crianças.
A resposta do YouTube para a Business Insider foi: "O aplicativo YouTube Kids oferece uma grande variedade de conteúdo que inclui vídeos enriquecedores e divertidos para famílias. Esse conteúdo é exibido usando sistemas treinados por humanos. Dito isso, nenhum sistema é perfeito e às vezes erramos o alvo. Quando o fazemos, tomamos medidas imediatas para bloquear a exibição de vídeos ou, conforme necessário, canais no aplicativo. Continuaremos trabalhando para melhorar a experiência do aplicativo YouTube Kids."
Um novo mundo?
Há dois mil anos temos as mesmas ambições, as mesmas irritações, as mesmas frustrações e reagimos a tudo isso do mesmo jeito. A qualidade humana, sagrada e imperfeita, atravessa os séculos com as mesmas glórias, os mesmos defeitos e uma única segurança: a união nos equilibra. Seja uma família, uma empresa, uma pequena comunidade ou um país, viver sabendo que somos parte de um todo e iguais em dignidade e direitos é o que possibilita que as qualidades de um supram os defeitos do outro.
O que o nosso mundo novo trouxe não é uma nova teoria nem uma nova forma de negócio. Dividir para governar é ancestral. A diferença é que isso antes só era possível para uns poucos, os que têm instinto, talento para governar, força, poder e aliados. Agora, está ao alcance de qualquer um que queira pagar por impulsionamento e segmentação de anúncios. É uma espécie de integração homem-máquina em que a máquina supre a capacidade que falta a um indivíduo para causar divisão social e ganhar com ela.
Não é um mecanismo feito para a política. Como na nossa ancestral Pompéia e seus letreiros profissionais, começou para promover negócios e depois o mundo político achou uma boa ideia. O problema da nossa era é matar a galinha dos ovos de ouro, distorcer a praça pública e fragmentar a sociedade de uma forma que nos deixa vulneráveis como indivíduos e como povos. Precisamos urgentemente sair da zona de conforto que é debater apenas conteúdo, nosso futuro está em entender e controlar o contexto.
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