Psicanálise e ciência: chega de bobagem
O livro “Que Bobagem!”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, obteve notoriedade pelos ataques que faz à psicanálise e outros saberes, inscrevendo-os na categoria de “pseudociências” — que seriam indignas de crédito por não se submeterem ao escrutínio científico.
Para um exemplo recente, a revista World Psychiatry traz em junho de 2023 uma rigorosa metanálise sobre as psicoterapias psicodinâmicas. A conclusão é que estas provaram “ser um tratamento com suporte empírico para transtornos mentais comuns”, atingindo “recomendação forte”. Esse artigo soma-se a muitos outros demonstrando a eficácia das terapias psicodinâmicas, publicados em periódicos como a Lancet Psychiatry e o American Journal of Psychiatry.
Quanto à capacidade dos principais conceitos da psicanálise de serem pesquisados pela neurobiologia, é impressionante que os autores do livro desconheçam que, em 2004 e 2007, a revista Science publicou dois estudos independentes sobre os mecanismos neurais do conceito psicanalítico de recalque inconsciente. O primeiro artigo cita Freud como motivação da pesquisa na primeira linha do resumo! Ambos corroboram a noção de uma supressão ativa de memórias, pela ação inibitória do córtex pré-frontal sobre hipocampo e amígdala.
Outra omissão incompreensível são os diversos estudos publicados em revistas como Science, Nature e Nature Communications sobre as propriedades associativas das representações linguísticas no cérebro, totalmente compatíveis com as hipóteses psicanalíticas sobre a linguagem, indo da semântica até o nível dos fonemas, tão estudado por Freud e Lacan. Essa negligência atinge também a ciência nacional, pois o grupo de pesquisa coordenado por um dos autores deste artigo [Sidarta Ribeiro] publicou diversos estudos quantitativos sobre a estrutura do discurso inspirados na teoria psicanalítica. Tais estudos, como por exemplo o artigo publicado em 2017 na revista Nature Schizophrenia, mostraram que relatos de sonho são efetivamente um “caminho real para o inconsciente” como proposto por Freud, pois permitem um diagnóstico precoce da esquizofrenia, o que não ocorre com outros tipos de relato.
Além disso, a estrutura da linguagem — não o que se fala, mas de que modo se fala — mostrou-se um marcador fidedigno da esquizofrenia, tal como proposto por Lacan em seus estudos sobre as psicoses.
O suposto isolamento científico da psicanálise é mero negacionismo. Argumentos semelhantes aos aqui elencados podem também ser feitos em relação a outros saberes atacados no livro, como a acupuntura, cuja ação sobre o eixo vago-adrenal foi publicada pela revista Nature em 2021.
A vitória sobre a Covid-19 e o fascismo nos permite sair do modo “frente ampla”, permitindo divergências sem comprometer a luta democrática. Respeitando o valioso papel de Pasternak na pandemia, a tentativa de usar o lugar de fala da ciência para lacrar um embate unilateral, raso e generalizado contra saberes tão diversos e importantes como a psicanálise e a acupuntura, é uma grande bobagem.
Decerto útil para vender livros, mas não para qualificar o debate.
- Artigos aqui mencionados e outros estudos relacionados à psicanálise em revistas científicas podem ser acessados aqui!
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