Eu quero dividir com vocês alguns conceitos que acredito ter entendido lendo os livros "O Corpo Guarda as Marcas", do Doutor Bessel van der Kolk, "O mito do normal: Trauma, saúde e cura em um mundo doente" escrito por Gabor Maté e Daniel Maté (pai e filho) e do livro "Terapia do Esquema: Guia de Técnicas Cognitivo-Comportamentais Inovadoras" escrito por Jeffrey E. Young, Janet S. Klosko e Marjorie E. Weishaar.
Essas são três leituras que venho fazendo do inicio do ano passado para cá. Primeiro, quero apresentar os autores e as suas publicações! depois um breve resumo de conceitos chave e por fim minha interpretação desses.
Dr. Bessel van der Kolk, fundador e ex-diretor médico do Trauma Center em Brookline, Massachusetts. Controverso, ele ainda é uma das maiores autoridades mundiais no campo do trauma, conhecido por seu trabalho que integra o cérebro, a mente e o corpo na compreensão e no tratamento dos efeitos do estresse traumático. Seu livro, “O corpo guarda as marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma” ,publicado em 2014 (título original: The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma), é um best-seller internacional e um marco na literatura sobre o assunto, mas a sua popularidade e a importância das ideias de Van der Kolk, foram construídas ao longo de 40 anos de carreira, atendendo ex-soldados e pessoas vítimas de violência fazem com que seus conceitos pareçam mais antigo do que a sua data de publicação de seu livro.
Dr. e psicoterapeuta Gabor Maté é um médico com mais de 40 anos de experiência clínica. Sua própria história de vida, como sobrevivente do Holocausto na Hungria, moldou sua visão sobre o trauma e a resiliência. Ele se especializou em medicina familiar e cuidados paliativos, mas é mais conhecido por seu trabalho com pessoas viciadas, em locais como o bairro de Downtown Eastside em Vancouver, Canadá.
E por último, mas não menos importante, o Psicologo Jeffrey Young é uma figura central na psicologia clínica. Psicólogo estadunidense que criou a Terapia do Esquema (ou Terapia Focada nos Esquemas), uma abordagem inovadora que se tornou amplamente reconhecida, foi desenvolvida por Young no final dos anos 1980 para tratar pacientes que não respondiam bem à Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tradicional. Esses pacientes, muitas vezes com transtornos de personalidade ou problemas crônicos e de difícil tratamento, apresentavam padrões de comportamento profundamente enraizados.
Van der Kolk foi pioneiro em mostrar que o trauma não é apenas um evento psicológico, mas que afeta profundamente o cérebro (neurobiologia), a mente (pensamentos e emoções) e o corpo (sensações físicas, dores e doenças).
Assim como Bessel van der Kolk, Maté defende uma abordagem que conecta o corpo, a mente e as emoções. Ele argumenta que o trauma psicológico e o estresse crônico são frequentemente as raízes de doenças físicas e do vício. Em seu livro "O Mito do Normal", ele questiona a noção de "normalidade" na sociedade moderna e argumenta que o que consideramos normal — o estresse constante, o esgotamento, a ansiedade e a alienação — é na verdade patológico e um produto de uma cultura que nos adoece. A doença, para ele, não é um desvio, mas uma resposta ao nosso ambiente.
Young, por sua vez, combinou elementos da TCC com conceitos de outras abordagens, como a teoria do apego, a psicanálise e a terapia gestáltica, para criar um modelo mais profundo e abrangente.
A convergência dessas leituras diferentes que fiz me fizeram ter um entendimento sobre o desenvolvimento humano e de seus problemas emocionais como uma coisa mais orgânica e natural!
Então esse post vai tratar sobre: o impacto do trauma não resolvido e o que Significa Estar Traumatizado?
Mas começamos por definir o que cada um desses autores trata com “Trauma”?
Para van der Kolk, trauma não é só um evento, mas uma mudança fisiológica no organismo. Nessa perspectiva "Trauma é qualquer experiência que supera nossa capacidade de lidar, deixando marcas no corpo, no cérebro e no sistema nervoso, e por tabela, em nossas emoções."
O trauma raramente é armazenado como uma narrativa coerente, antes ele é incorporado como sensações físicas (ex.: cheiros, gostos, dores) e emoções congeladas. O Cérebro então adota uma posição de alerta continuamente. O sistema límbico fica hiperativo nesta posição, enquanto o córtex pré-frontal (racional) "desliga" ou enturva. Sintomas como insônia, dores crônicas ou ataques de pânico são respostas corporais ao trauma não processado. E como esse sistema acredita que esse processo de risco vai se repetir constantemente, não desliga esse alerta!
Então estar traumatizado significa continuar a organizar a sua vida como se o trauma ainda estivesse presente, inalterado e imutável como no exato momento do seu primeiro impacto. Para a pessoa que passa por essa condição, cada novo momento da vida e cada encontro ou evento futuro é contaminado pelo evento do passado, pois o trauma distorce a percepção do presente.
Por exemplo: O maior dano causado por “negligência (parental)”, trauma psicológico agudo ou perda emocional não é a dor imediata, mas as distorções de longo prazo somadas que moldam a maneira como uma criança em desenvolvimento interpreta o mundo e sua posição nele.
Mas porque é assim? Quer percebamos ou não, são nossas feridas e a forma como lidamos com elas que direcionam grande parte de nossos comportamentos, hábitos sociais e padrões de pensamento.
Biológica e Neurologicamente a mente humana evoluiu para sobreviver às intempéries da vida pré-histórica! Possuímos nas áreas mais evolutivamente antigas do nosso cérebro (cérebro reptiliano) estruturas que analisam precocemente as informações da realidade definindo se estamos seguros ou em risco de forma até precipitada, pois errar e se superproteger é melhor que errar e acabar morto por não prever um perigo!
Nossa resposta de luta, fuga ou congelamento é um exemplo da reação automática do corpo a situações percebidas como perigosas ou ameaçadoras. Ela envolve alterações fisiológicas (como a enxurrada de adrenalina e cortisol) e comportamentais que preparam o indivíduo para enfrentar a ameaça ou escapar dela, ou, em alguns casos, paralisar temporariamente.
Como a “Evolução” e a adaptação NUNCA param, esses sistemas se adaptaram às novas necessidades da realidade humana e hoje os padrões de resposta reaparecem mesmo quando a fonte de perigo é interna, seja uma sensação corporal como na Síndrome do Pânico, ou numa situação de avaliação social como na Fobia Social ou mesmo numa reativação de uma lembrança traumática como no Estresse Pós Traumático.
Luta, fuga e congelamento foram convertidos em “estilos de enfrentamento” dos humanos em suas vidas cotidianas…
Enquanto uma criança cresce ela “aprende” a focar suas interações em padrões de pensamento, maneiras de observar o mundo e reagir a ele, baseado nas suas experiências vivenciais.
Se seu ambiente for promissor e minimamente adequado, essa criança desenvolve respostas adaptativas e saudáveis no decorrer de sua vida. Se seu ambiente de formação for inadequado ou ela tiver experiências repetitivas ruins ou traumáticas, ela se adapta com comportamentos disfuncionais (os "esquemas") que continuarão a impactar a sua vida adulta.
Aquelas respostas biológicas (luta, fuga e congelamento) se adaptam em comportamentos de hipercompensação (Luta), resignação (fuga) e evitação ou submissão (congelamento).
Por exemplo, no “Modo de Submissão” (Congelamento/Resignação): A pessoa se submete aos processos prejudiciais da vida, aceitando passivamente o sofrimento e se sentindo impotente. Isso se assemelha à resposta de congelamento.
No “Modo de Hipercompensação” (Luta), a pessoa reage de forma oposta ao esquema. Por exemplo, alguém que se sente defeituoso pode se tornar perfeccionista e arrogante para compensar o sentimento interno de inadequação. Isso é uma forma de "luta" contra a dor emocional do seu passado.
E no “Modo de Evitação” (Fuga) a pessoa evita situações, pensamentos e sentimentos que possam ativar suas lembranças traumáticas. Isso se assemelha à resposta de fuga, onde a pessoa evita conflitos a qualquer custo, mesmo quando injustiçado, porque teme rejeição ou abandono.
Isso quer dizer que quando uma pessoa fica presa no modo de sobrevivência, suas energias se concentram em lutar contra inimigos invisíveis, deixando pouco espaço para nutrição, cuidado e amor.
Para os seres humanos, isso significa que, enquanto a mente se defende de ameaças inexistentes, nossos laços mais íntimos ficam ameaçados. Nossa capacidade de imaginar, planejar, brincar, aprender e atender às necessidades dos outros também é comprometida.
Traumas não resolvidos são como ALARMES para manter a sobrevivência que permanecem ligados indefinidamente no organismo, distorcendo nossa forma de pensar e agir. Passamos a enxergar perigos onde não existem, porque a carga emocional não processada continua influenciando nossas reações.
O que modula esse alarme vai além de uma simples memória do passado. As emoções e sensações físicas registradas durante o eventos repetitivos ruins ou um único grave evento traumático não são vividas como lembranças, mas como reações perturbadoras no presente. Muitas vezes, agimos ou reagimos de maneira desproporcional sem entender o motivo, justamente porque essas respostas estão enraizadas em experiências não resolvidas.
Em resumo, o trauma não tratado “aprisiona” a mente da pessoa em um ciclo de sobrevivência, onde o passado invade o presente, limitando a capacidade de viver plenamente e se conectar com os outros. Não é apenas uma memória dolorosa — é uma ferida viva no corpo, na mente e no sistema nervoso. Segundo Bessel van der Kolk, Gabor Maté e Jeffrey Young, experiências traumáticas não processadas alteram nossa biologia, distorcem nossa percepção do presente e nos mantêm presos em padrões de sobrevivência disfuncionais.
Mas se o Trauma é uma prisão invisível, a neuroplasticidade e o autoconhecimento oferecem as chaves para libertar-se dessa prisão. A cura exige reintegrar corpo e mente ao presente (Van der Kolk), questionar a "normalidade" tóxica (Maté) e reescrever esquemas emocionais (Young). Não se trata de apagar o passado, mas de deixar de viver sob seu domínio.
A psicoterapia é uma das maneiras que Gabor Maté, considera ferramenta que estrutura um caminho de cura. A psicoterapia pode ser desencadeadora ou estimuladora da autorregulação orgânica ou do impulso vital para se reorganizar e a capacidade inata do organismo de buscar saúde, equilíbrio e crescimento — mesmo após traumas. Assim como o corpo cicatriza feridas físicas, a psique mobiliza recursos para reparar danos emocionais quando em ambientes seguros, embora esse processo possa ser bloqueado por estresse crônico, isolamento ou contextos opressivos. Na psicoterapia essa força integrativa opera em sinergia com a neuroplasticidade (estudada por Van der Kolk), mecanismo pelo qual o sistema nervoso se reorganizar diante de novas experiências, permitindo a reestruturação de circuitos neurais rígidos e a superação de padrões disfuncionais. Em essência, enquanto a tendência atualizadora é o princípio motivador da cura, a neuroplasticidade é o alicerce biológico que a torna possível.
A psicoterapia atua como um facilitador essencial no processo de cura, estimulando tanto a tendência atualizadora quanto a neuroplasticidade. Ao oferecer um ambiente seguro e acolhedor, o terapeuta cria as condições ideais para que o cliente possa reprocessar experiências traumáticas e desenvolver novos padrões saudáveis. Através da relação terapêutica baseada em aceitação e empatia, técnicas como mindfulness, regulação emocional e psicoeducação sobre trauma ajudam a acalmar o sistema nervoso hiperativo, permitindo que a neuroplasticidade atue de forma mais adaptativa e integradora.
Abordagens terapêuticas que trabalham com o corpo e as emoções, como EMDR e terapia sensoriomotora, são particularmente eficazes para liberar memórias traumáticas armazenadas somaticamente. Paralelamente, métodos como a Terapia do Esquema ajudam a identificar e transformar padrões de pensamento disfuncionais, criando novas conexões neurais mais saudáveis. O vínculo terapêutico seguro serve ainda como modelo para relações interpessoais mais nutritivas, reparando feridas de apego e restaurando a capacidade de confiar nos outros.
Com o tempo, esse processo contínuo de reprocessamento e reconstrução leva a mudanças profundas: a hipervigilância dá lugar a uma sensação de segurança interna, os esquemas rígidos são substituídos por maior flexibilidade psicológica, e as memórias traumáticas são integradas em narrativas coerentes. A psicoterapia não elimina o passado, mas transforma radicalmente a relação do indivíduo com suas experiências dolorosas, permitindo que os mecanismos naturais de cura do organismo - a tendência atualizadora e a neuroplasticidade - promovam uma reorganização saudável do self.
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