A impressionante vida secreta do meu filho gamer com doença degenerativa


Quando Mats morreu, os pais descobriram que pessoas de toda a Europa acenderam velas em sua memória.  ~~  Por Vicky Schaubert*, BBC ~ 26/03/2019 

Esta história foi publicada originalmente em norueguês pela NRK, emissora pública de rádio e televisão da Noruega.



Ibelin, personagem de Mats em World of Warcraft, ao lado do 'pai', Robert Steen — Foto: Patrick da Silva Saether/NRK









Robert e Trude lamentavam a vida solitária do filho em uma cadeira de rodas. Mas quando Mats morreu, descobriram que pessoas de toda a Europa acenderam velas em sua memória.

"Nós éramos muito conservadores. Não queríamos que Mats virasse a noite acordado, e assim por diante." -  Sentado em um café perto do escritório onde trabalha, na Prefeitura da capital norueguesa, Oslo, Robert Steen, de 56 anos, fala sobre o filho. - "Fazendo uma retrospectiva, acho que deveríamos ter nos interessado mais pelo mundo dos games, de que ele tanto gostava."

"Ao não fazer isso, perdemos uma oportunidade que não sabíamos que tínhamos", completa.


O encontro com os 'desconhecidos'

Quatro anos antes, Robert estava ao lado do caixão de Mats na nova capela do cemitério Vestre Gravlund, em Oslo, fazendo um discurso em homenagem ao filho. Entre os que estavam sentados nas cadeiras azuis da capela ouvindo o discurso, em sua maioria parentes e funcionários do serviço de saúde próximos a Mats, havia um grupo que a família não conhecia.

Lorde Ibelin RedmooreApenas Robert havia estado com eles. E só uma vez, na noite anterior.

Considerando que nos últimos anos de vida Mats quase não saía de seu quarto, no porão da casa dos pais, era estranho que desconhecidos da família estivessem presentes em seu funeral.

Mais estranho ainda era o fato de que o próprio Mats, que jazia naquele caixão branco, também nunca havia encontrado com aquelas pessoas frente a frente.

Antes de sua morte, na verdade, aquele grupo desolado não se relacionava com ele, como Mats. Eles o viam como Ibelin: nobre de nascença, detetive e sedutor. Muitos vieram de longe, outros de perto, e choraram pelo grande amigo que haviam perdido.

Mais tarde no velório, um deles discursaria e contaria aos presentes que, naquele momento, em toda a Europa, pessoas acendiam velas para Mats, lembrando-se dele com pesar e amor.


Expectativa de vida

Estava escrito nas estrelas, codificado em seu DNA. O Mats que saracoteava com uma coroa na cabeça no seu aniversário de quatro anos, em julho de 1993, dentro de quatro anos ficaria preso a uma cadeira de rodas para nunca mais se levantar.

Robert e Trude tinham recebido a notícia em maio. Em uma pequena sala do enorme prédio de tijolos que abriga o Hospital Ullevål, o casal descobriu por que o filho caía e se machucava com tanta frequência. Por que despencava dos balanços. Por que não subia a escada do escorrega na creche, embora adorasse escorregar. Por que se apoiava nos joelhos como um velho quando estava sentado e precisava se levantar. Por que não corria com as outras crianças.

Os médicos contaram a Robert e Trude que Mats sofria de Distrofia Muscular de Duchenne, uma doença rara que causa degeneração muscular em meninos. Os genes de Mats tinham um erro de codificação que impediria o desenvolvimento normal de seus músculos. E que, gradativamente, os destruiria.

"Depois que colocamos Mats na cama naquela noite, ligamos para o médico. Tínhamos permissão para fazer isso. 'Liguem a qualquer hora se precisarem de mais informações'", diz Robert. Com Trude sentada ao seu lado, ele lembra que, depois de meia hora de conversa, conseguiu encontrar um pequeno conforto:

"Eu falei para o médico: 'Mas pelo menos ele não vai morrer disso!' O médico ficou em silêncio do outro lado da linha por um momento. Depois, disse: 'Não, mas nossa experiência mostra que esses pacientes raramente vivem até depois dos 20 anos'."

Robert faz uma pausa.  "Ele conseguiu chegar aos 25", completa.

Naquela noite de maio de 1993, na casa geminada em que moravam em Ostensjo, a sudeste de Oslo, o casal tentava assimilar todas as informações, enquanto a ideia de futuro – promessas vagas de algo bom – se transformava em uma ameaça. Mats não teria "uma vida normal". Ele não seria capaz de praticar esportes. Não sairia e conheceria garotas. Não experimentaria o mundo.

Ele morreria jovem, sem ter vivido uma vida plena.

Robert e Trude acreditavam que o filho seria tirado deles sem deixar sua marca no mundo. 

Mas estavam completamente enganados.



Como criar uma identidade do zero

Se o nosso DNA mapeia nossas vidas antes mesmo de nascermos, como podemos escolher quem queremos ser?  Mats encontrou uma forma e se reinventou. Na virada do milênio, a família Steen se mudou para uma casa adaptada para cadeira de rodas em Langhus, ao sul de Oslo.

Embora Mats pudesse jogar Gameboy durante o recreio na escola, nem mesmo o Super Mario conseguiria afastar a sensação de ser diferente. Ele estava em uma cadeira de rodas, tinha um assistente com ele em todos os lugares.

Os pais se perguntavam o que Mats gostaria de fazer no tempo livre, quando os colegas de turma jogavam futebol e zanzavam de um lado para o outro.

Jogar games online, talvez? Robert deu ao filho a senha do computador da família – e um mundo novo se abriu para o menino de 11 anos.

"Nos últimos dez anos de vida, Mats jogou entre 15 mil e 20 mil horas", estimou Robert em seu discurso. "Isso equivale a mais de dez anos de um emprego em tempo integral."

Mas o jogo também era motivo de atrito familiar.

"Quando o acompanhante noturno chegava, às 22h, Mats precisava estar na cama", diz o pai. "A função dele era monitorar se Mats estava deitado, não colocá-lo na cama. Mats protestou, é claro, mas contra a vontade concordou em ir dormir cedo."

Mats tinha se tornado um gamer, e os gamers não vão para a cama às dez da noite.

Mas quem foi Mats durante todas essas horas em que passou jogando? Lorde Ibelin Redmoore se tornou o principal personagem de Mats em seu universo de games. O segundo era Jerome Walker. "Jerome e Ibelin são extensões de mim mesmo, representam diferentes lados meus", escreveu Mats. Com o tempo, eles desempenhariam um papel importante na vida de outras pessoas também.

Mats jogava vários tipos de games online, mas acabava viajando com frequência para Azeroth - um planeta no jogo World of Warcraft.

Azeroth é um mundo de fantasia mítica com continentes, mares e florestas. Há penhascos e planícies, vilarejos e cidades. Mats passou a maior parte do tempo na região chamada Reinos do Leste.

Como um gamer, você vai conhecendo este mundo pouco a pouco, assim como conhece o mundo real.

Haverá lugares para onde você vai planejar viajar, paisagens e cidades que você domina - algumas mais do que outras. Em certas áreas, você vai precisar ficar alerta. Em outras, vai adorar sair e fazer novos amigos. Sem contar a sua comunidade local, onde se encontram seus amigos mais próximos.

É assim que o mundo funciona. É assim que Azeroth é.

Mats fez essa jornada e encontrou companheiros. Formou um amplo círculo de amigos queridos.

Mas se você não viajar para Azeroth, não será capaz de saber quão bom é.



As aparências enganam

Robert Steen se lembra do que via. "Quando passava pelo porão de Mats durante o dia, e as cortinas estavam fechadas... sentia uma tristeza de que me lembro muito bem." "'Ah, não, pensava: 'Ele nem sequer começou o dia ainda'. Eu ficava triste, porque o mundo dele era tão limitado." Mas quem não é um gamer não consegue enxergar o panorama todo. "Achávamos que se tratava apenas do jogo. E nada mais. Pensávamos que era uma competição que você precisava ganhar", diz Robert.

E havia a questão do ritmo circadiano - o ciclo diário de 24 horas do nosso organismo. "Não entendíamos por que era importante para Mats estar online tarde da noite. Mas é claro, não é pela manhã ou no meio do dia que as pessoas estão jogando. Nesse horário, a maioria está na escola ou no trabalho." "Nós só entendemos isso depois que ele morreu. Até o último minuto, queríamos que ele estivesse dormindo às 11h da noite, como outras pessoas 'normais'."


Um roubo em Goldshire

Lisette Roovers, de Breda, na Holanda, era uma das amigas mais próximas de Mats. E foi uma das pessoas que voaram para Oslo em 2014 para participar do seu funeral. Ela está na Noruega novamente – desta vez, visitando Kai Simon Fredriksen, que também jogava com Mats. Sentada no sofá da casa dele, em Hoybraten, a nordeste de Oslo, Lisette lamenta a morte de Mats. "Eu conhecia Mats havia muitos anos. Foi um choque quando ele morreu e isso mexeu comigo."  Ela tinha apenas 15 anos e Mats, 16, quando se conheceram. Ou, para ser mais precisa: quando Rumour, personagem de Lisette, conheceu Ibelin.

Lisette Roovers e sua personagem, Rumour — Foto: Patrick da Silva Saether/NRK


Hoje com 28 anos, Lisette lembra como foi.

"Nós nos conhecemos em Goldshire (VilaD'ouro). Não é mais um lugar legal, mas naquela época Goldshire era uma pequena vila agradável, onde você podia conhecer novos personagens interessantes. Eu estava procurando alguém para jogar, e entre outros sentados ao redor de uma fogueira estava quem mais tarde eu viria saber que era Ibelin."

"Eu - ou melhor, Rumour – agi um tanto impulsivamente: saltei dos arbustos e peguei o chapéu de Ibelin. Parei por um momento, olhando para frente e para trás, depois corri com o chapéu sem rumo", conta Lisette.

Ela sorri um pouco.

Mats também escreveu sobre o primeiro encontro dos dois, em um post em seu blog intitulado "Amor".

"Neste outro mundo, uma garota não veria uma cadeira de rodas ou qualquer coisa diferente. Ela veria minha alma, coração e mente, convenientemente colocados em um corpo forte e bonito. Felizmente, quase todos os personagens deste mundo virtual têm uma aparência ótima."

"Mats era um grande amigo, às vezes um amigo muito próximo", diz Lisette.

"Nós escrevíamos sobre tudo, mas ele não escrevia sobre sua condição. Eu achava que a vida dele era como a minha. Por exemplo, nós dois odiávamos a escola."

Mas havia coisas nas quais eles discordavam.

"Ele escreveu que odiava neve. Eu escrevi que adorava. Não sabia que ele odiava neve porque estava sentado em uma cadeira de rodas. Não sabia sobre a cadeira de rodas."


Carta para os pais

Lisette gostava de socializar quando jogava. "Enquanto minha irmã saía com os amigos, eu ficava em casa jogando." Mas o amor dela pelos games deixava os pais angustiados. Eles se preocupavam com seu desempenho escolar e aparente falta de vida social. A solução encontrada por eles foi restringir o acesso da filha ao jogo. "Ficar longe dos meus amigos gamers foi difícil para mim", lembra Lisette. Mas Mats não desistiu da sua amizade. Mesmo sem encontrá-la online, ele manteve contato com ela por meio de outros canais.

"Ele até escreveu uma carta séria para meus pais, na qual tentou ajudá-los a entender o quão importante o jogo era para mim", diz Lisette.

"Guardei essa carta."


Amigos reais x virtuais

Robert e Trude sabiam que o filho se comunicava com alguém chamado Lisette. "Mats falou um pouco sobre esses personagens do jogo - esses avatares - mas não nos ligamos muito nisso. Ele nos contou sobre a Rumor, entre outros", lembra.

"Ela, ou melhor, Lisette, mandou presentes para ele, inclusive no aniversário. Achamos comovente, e também provocamos ele um pouco em relação a isso. Ele ficou corado, muito corado", diz o pai. "Pensávamos em Lisette como uma amiga, por causa dos presentes, que eram uma prova tangível de uma amizade real, por assim dizer."

Robert acrescenta: "Nós não nos referíamos aos outros que ele conheceu jogando como amigos. Chamávamos de avatares." Ele faz uma pausa por um momento. "Nossa percepção de amizade era muito tradicional. Aqueles que estavam lá apenas digitalmente, nós realmente não considerávamos como amigos." 



Encontrando sua tribo

Em World of Warcraft, você pode jogar sozinho ou se juntar com outros gamers e formar um grupo – ou irmandade. Mats fazia parte da irmandade Starlight, que conta com cerca de 30 membros.
Nomine / Kai Simon Fredriksen
"Ninguém se torna um membro da Starlight por acaso", diz Robert.

"Para se tornar um membro da Starlight você tem de ser recomendado por alguém que já faz parte e, em seguida, completar um período de experiência de um a dois meses."

A Starlight existe há mais de 12 anos e ainda é uma irmandade ativa. Doze anos é muito tempo para uma irmandade – quase metade da vida de Mats.

"A Starlight é um grupo especial, porque permaneceu unida por muito tempo. É provavelmente por isso que as amizades da Starlight são tão profundas", conclui.

Aos 40 anos, Kai Simon, ou Nomine, como se chama seu personagem no jogo, é o líder da Starlight.

Todos os anos, desde que Mats morreu, a Starlight faz uma homenagem para Ibelin com o intuito de compartilhar memórias do companheiro.

Eles fizeram isso no primeiro domingo após a morte de Mats, e repetem o ritual desde então. Antes do tributo do ano passado, Kai Simon descreveu o evento da Starlight assim:

"Vamos nos lembrar de Lord Ibelin Redmoore juntos, e nosso foco será correr e nadar."

"Ibelin era um corredor", explicou Simon.

"Era importante para ele ser capaz de correr, e era importante para ele poder compartilhar a experiência de correr com os outros."

Será que Simon está falando agora sobre Mats ou Ibelin? Talvez não seja importante. Ou talvez Mats e o personagem tenham se tornado um só.



Levando a cadeira de rodas para Azeroth



Mats já havia vivido quatro anos a mais do que os médicos haviam previsto. Em 2013, a família Steen estava passando as férias de verão em Maiorca, na Espanha, enquanto Mats – impossibilitado de viajar – ficou em casa, em Langhus, com seu assistente pessoal. Ele tinha completado 24 anos recentemente. 

Naquele verão, Mats começou a escrever seu blog: "Reflexões sobre a Vida" (em tradução livre). No post que intitulou "Minha fuga", Mats escreveu sobre a vida em Azeroth: "Lá minha deficiência não importa, estou livre das amarras e posso ser quem eu quiser. Lá me sinto normal." 

Mats compartilhou o endereço do blog com os membros da irmandade - um por um - e foi assim que eles ficaram sabendo sobre sua situação offline. 

Lisette lembra a primeira vez que leu o blog: "Fiquei atordoada. E com a consciência pesada porque provoquei ele no jogo algumas vezes e nem sempre fui muito atenciosa." "Depois, eu pensei: 'Tenho de começar a me comportar de maneira diferente com ele a partir de agora?' Mas decidi tratá-lo do mesmo jeito que fazia antes. Ele também escreveu no blog que era isso que ele queria."

"E ele de fato não mudou."


Um território livre

Chit / Anne HamillNo jogo, ela se chama Chit, um personagem sem frescuras. Offline, é Anne Hamill, de 65 anos, psicóloga aposentada e entusiasta de jogos online, de Salisbury, na Inglaterra.

Anne acha fascinante o que o grupo Starlight representa para aqueles que costumam ser colocados de escanteio no "mundo real":

"Como nos conhecemos livre de preconceitos, a Starlight parece um ambiente seguro, mesmo para aqueles que se veem como 'excluídos'", diz Anne.


"O jogo online é uma arena fantástica para conhecer pessoas e fazer amizades. Descobrimos uns aos outros sem estereótipos no caminho, e isso nos dá a oportunidade de descobrir se gostamos de alguém – só revelamos nossa idade, sexo, deficiência ou cor da pele se tivermos vontade.

Ela acrescenta: "Acho que Mats teve a sorte de pertencer ao nosso tempo, tecnologicamente. Na Starlight, ele era um membro-chave. Se ele tivesse nascido 15 anos antes, não teria encontrado uma comunidade como essa."


Premonição sombria

Cerca de seis meses antes de morrer, Mats ficou ausente do World of Warcraft por dez dias. Seus companheiros se perguntavam onde ele estava. "Dez dias era muito tempo para ficar desconectado, porque Mats estava sempre lá, quando você precisava de alguém para jogar ou conversar", diz Anne.

Quando ele voltou ao jogo, ficaram sabendo que ele tinha sido internado. Anne conta que finalmente decidiu dizer o que estava pensando. Ela escreveu: "Mats, você deve dar a alguém a possibilidade de entrar em contato conosco, caso algo aconteça com você. Para que a gente fique sabendo, se você não puder nos enviar uma mensagem".

Hamill esperava que ele desse sua senha a alguém, ou pensasse em uma solução para informar a Starlight se algo acontecesse com ele.

"Você é importante para a gente", acrescentou.

Mats respondeu: "Você só está dizendo isso porque sabe que estou sentado em uma cadeira de rodas."

"Eu disse a ele que isso não era verdade", conta Hamill. "Eu falei: 'Você é importante para a irmandade. Você é um ouvinte fantástico. Você é uma das pessoas que coloca os outros para cima na Starlight'."

Mats levou um tempo para escrever de novo.

Mas entendi que ele havia levado a sério o que eu falei", diz Hamill.


Ele só tinha mais seis meses de vida.

Em 18 de novembro de 2014, Mats morreu.

Em estado crítico, ele foi novamente internado. Os médicos conseguiram estabilizá-lo e disseram que poderia ter alta em breve. Mas, em seguida, a família foi instruída a ir o mais rápido possível para o hospital. "Ele estava no quarto andar, no fim de um corredor. Cada segundo era precioso, o corredor era muito longo", diz Robert.


Eles chegaram tarde demais.



A foto que Robert tirou do filho no leito de morte mostra um jovem pálido, com cabelo escuro e ondulado - os olhos finamente desenhados, nariz delicado e a boca marcada pela máscara de respiração que ele usou por tanto tempo. Parece que ele está dormindo.

Muitos anos antes, Lisette fez um desenho para Mats:


Ibelin está abraçando Rumour, com um lenço que cobre sua boca e nariz. — Foto: Família Steen/Arquivo Pessoal/NRK

Ibelin está abraçando Rumour, com um lenço que cobre sua boca e nariz.

"Mats recebeu pelo correio", diz Robert.

"Agora, está pendurado na parede da nossa casa".

Um pensamento repentino e libertador

No dia seguinte à morte de Mats, amigos e familiares se reuniram na casa da família em Langhus. Robert diz que foi um 'pequeno caos'. "A campainha tocou, as flores chegaram, os vizinhos apareceram. Todo mundo chorou." No meio de tudo isso, Robert tentou fazer uma lista de quem precisava ser avisado da morte de Mats. Ele se lembrou dos gamers e se perguntou como poderia entrar em contato com eles. 

"Antes de Mats morrer, nunca pensei que precisaria ter sua senha."

Mas agora ele precisava.

"Foi quando eu lembrei do blog", diz Robert.

Mats deu a senha do blog para o pai, para que Robert pudesse checar as estatísticas de quantas pessoas haviam visitado o site e lido cada post.

Hamill, mais conhecida como Chit, aproveita para dar alguns conselhos a todos os pais: "Você não sabe quem faz parte da vida do seu filho se você não conhece seus amigos digitais." "Faça um acordo com seus filhos sobre como entrar em contato com seus amigos digitais, caso algo aconteça com eles. Caso contrário, eles podem ter amigos que ficarão se perguntando para sempre o que aconteceu, se eles permanecerem desconectados", completa. 



No fim da jornada

O post comunicando o falecimento de Mats, escrito por Robert, foi publicado no blog no dia seguinte à morte dele. No fim do texto, Robert deixou um endereço de e-mail para quem quisesse entrar em contato.

"Eu escrevi e chorei. Cliquei, então, em publicar. Não sabia se viria alguma resposta."

Robert respira fundo e continua: "Algumas horas se passaram, e chegou o primeiro e-mail – os pêsames sinceros de um dos integrantes da Starlight."

"Eu li o e-mail em voz alta: 'É com o coração pesado que eu escrevo este post para um homem com quem nunca me encontrei, mas que eu conhecia tão bem'. Isso me marcou."

Começaram a chegar mais mensagens de condolências - mais histórias da vida online de Mats.

"Ele transcendeu seus limites físicos e enriqueceu a vida de pessoas em todo o mundo", dizia um deles.

"A morteu de Mats me atingiu com muita força. Não consigo colocar em palavras o quanto sentirei falta dele", afirmava outro.

"Não acredito que exista uma pessoa que seja o coração da Starlight. Mas se tivesse de ser alguém, teria sido ele", escreveu um terceiro.


A voz de Robert embarga. 

"Uma sociedade inteira, uma pequena nação de pessoas começou a tomar forma", diz ele. "E numa escala que não tínhamos ideia. Chegaram vários e-mails no decorrer do dia e nos dias que se seguiram, falando sobre o que Mats tinha significado."

Robert explica que as duas realidades se fundiram.


Como se mede a amizade?

Quando a Starlight soube da morte de Mats, seus membros arrecadaram dinheiro para ajudar aqueles que não tinham condições de pagar a viagem para participar do funeral na Noruega.

O pai diz que a família ficou comovida.

"Nós choramos muito, sentimos uma alegria imensa ao ver o tipo de vida que Mats tinha vivido de fato. Com amigos de verdade, namoradas, pessoas que se importavam tanto que voariam de outro país para o funeral de alguém com quem nunca tinham se encontrado pessoalmente. Isso foi poderoso."

Lisette, que mora na Holanda, foi para o funeral. Assim como Anne, do Reino Unido, Janina, da Finlândia, e Rikke, da Dinamarca.

Os amigos digitais foram informados que seria exibido um pequeno filme sobre Mats durante a cerimônia.

"Estávamos discutindo se seria certo a gente ver esse filme, já que Mats sempre manteve sua aparência física escondida de nós. Mas nós fomos, e vimos ele, do jeito que estava neste mundo. Não fazia diferença para a gente, mas ficamos profundamente tocados."




Amigos digitais foram informados que seria exibido um pequeno filme sobre Mats durante a cerimônia. — Foto: Família Steen/Arquivo Pessoal/NRK

Às 2h30 do dia 28 de novembro de 2014, teve início o funeral na capela nova do Cemitério Vestre Gravlund.

Em nome dos membros da Starlight, Kai Simon, nativo de Oslo, dirigiu-se aos presentes:

"Enquanto estamos reunidos aqui hoje, uma vela está sendo acesa por Mats em uma sala de aula na Holanda, uma vela queima em um call center na Irlanda, em uma biblioteca na Suécia há uma vela acesa, ele é lembrado em um pequeno salão de beleza na Finlândia, em uma secretaria municipal na Dinamarca, em muitos lugares na Inglaterra. Por toda a Europa, Mats é lembrado por muita gente, mais do que tiveram a oportunidade de vir aqui hoje."

[…]

"Eu conheci Mats em um mundo onde não importa nem um pouco quem você é, que tipo de corpo você tem, ou como você se parece na realidade, atrás do teclado. Lá, o que importa é quem você escolhe ser e como você se comporta em relação aos outros. O que importa é o que se encontra aqui [Kai Simon põe a mão na cabeça] e aqui [ele coloca a mão no coração]."

Quando o corpo foi levado para fora da capela, Lisette foi uma das seis pessoas a carregarem o caixão. Foi a primeira vez que ela esteve fisicamente perto de Mats.
"Eu tentei não pensar em como estava leve. Na minha vida, eu via Mats como Ibelin Redmoore, um personagem alto e forte. Dentro do caixão, havia uma pessoa que não pesava quase nada."
"O legado de Mats será a marca que ele deixou em todos nós que o conhecemos. Ele tocou muita gente", diz Lisette.



'Ser alguém'


O que significa ser alguém no mundo – e como você se torna essa pessoa? Em seu blog, Mats escreveu sobre a tela do computador - à frente da qual ficou sentado mais da metade do tempo que passou no planeta Terra:

"Não é uma tela, é um portal para onde seu coração desejar."



*Vicky Schaubert trabalha para a NRK, emissora pública de rádio e televisão norueguesa, em Oslo. Este artigo foi publicado originalmente no site da NRK - leia aqui a versão original (em norueguês).

Desafio da boneca Momo é o resultado da soma de pais culpados e imprensa irresponsável


Desafio da boneca Momo é o resultado da soma de pais culpados e imprensa irresponsável



O público-alvo da Momo, aquele que realmente tem pavor da boneca, não são as crianças.
São os pais delas.

Publicado em 21 de Março de 2019


Na última segunda-feira (18/04/2019), o site da revista Crescer publicou uma reportagem alertando os pais de que supostos vídeos da boneca Momo, em que ela ensinaria crianças a se mutilarem e a cometerem suicídio, estariam aparecendo dentro de vídeos do YouTube Kids, versão da plataforma do Google com conteúdo exclusivamente infantil.

A reportagem é totalmente baseada no relato de uma professora de Campinas (SP). Ela teria recebido o vídeo denunciando a presença da boneca maligna no YouTube Kids pelo WhatsApp. Ao conversar com sua filha, esta teria dito que já tinha visto a Momo e começado a chorar.


A chamada da matéria recorre ao preguiçoso “diz mãe” no final, uma praxe do jornalismo que não apura e apenas repercute ou confia em uma única fonte. Em casos como o da Momo, esse tipo de abordagem preguiçosa é de uma irresponsabilidade tremenda. O caos que se instalou após a publicação confirma isso: novos relatos de supostas aparições surgiram em várias partes do Brasil, incontáveis jornais regionais deram espaço ao caso em tom alarmista e as autoridades (Ministério Público, Procon, polícias) emitiram alertas e pediram ao Google e Facebook para que removessem a boneca Momo do YouTube e WhatsApp, respectivamente.
Imagem: Crescer/Reprodução.

O YouTube emitiu uma nota, via Twitter, afirmando que não encontrou aparições da Momo no YouTube Kids. A empresa, quando quer, consegue identificar automaticamente detalhes humanamente impossíveis no volume de vídeos que a plataforma comporta, como trechos de músicas protegidas por direitos autorais, logo, o posicionamento merece algum crédito:


Sobre o desafio Momo: não encontramos nenhum vídeo que promova um desafio Momo no #YouTubeKids. Qualquer conteúdo que promova atos nocivos ou perigos é proibido no YouTube. Se encontrar algo parecido, denuncie.

O repórter Phillippe Watanabe, da Folha, fez o que qualquer jornalista deveria ter feito: procurou pelo vídeo da Momo no YouTube Kids. Após dois dias mergulhado na plataforma, não encontrou vestígio dela. Não é difícil, mas é um esforço que consome tempo precioso — e escasso — nas redações e que, no fim, pode não dar em nada. Acontece. Ou deveria acontecer.

A histeria coletiva que a “reportagem” da Crescer desencadeou é um tiro pela culatra. Ao alimentar um monstro inexistente, pais e imprensa o criam. Mais que isso: desviam as atenções dos verdadeiros problemas que o YouTube tem, que não são poucos nem banais e, alguns deles, dentro do próprio YouTube Kids.


A Safernet Brasil divulgou um alerta sobre os supostos vídeos na esteira da publicação da Crescer. Nele, cita uma investigação da agência de fact-checking Snopes, de 26 de fevereiro, que contestou publicações norte-americanas sobre o aparecimento da Momo em vídeos infantis no YouTube. Por lá e em outros países, como Índia e Argentina, a boneca Momo também leva a culpa por aparições terríveis em vídeos infantis jamais comprovadas. Segundo o alerta, a investigação da agência apontou que se trata de uma “campanha de desinformação em torno da ‘Momo’, associando-a ao suicídio de crianças”.

Não é a primeira vez que isso acontece. Em 2017 foi a vez do “desafio da baleia azul” aterrorizar pais do país inteiro. A única diferença é que não havia um personagem tão marcante quanto a Momo. De resto, tínhamos os desafios, o definitivo do suicídio, uma cobertura destrambelhada da imprensa e a ausência absoluta de um caso concreto que fosse para justificar todo o alarde.

Algumas crianças dizem ter visto a Momo. Com a repercussão, é bem provável que sim, mas não nos vídeos do YouTube Kids. Na hora de “conversar com os filhos”, os pais assustados apresentam a Momo a eles e a coisa sai totalmente do controle, algo que especialistas desaconselham veementemente. A Safernet orienta os pais a “agirem com responsabilidade”:


Caso receba conteúdos, fotos ou vídeos que sejam uma ameaça à segurança de crianças e adolescentes de números desconhecidos, bloqueie o contato no WhatsApp.

Caso o material tenha sido publicado em um grupo que você faça parte ou de um número de um conhecido, evite repassar a informação sem checar a origem. Desconfie sempre de correntes alarmistas no WhatsApp. Elas causam o efeito reverso, aumentando a curiosidade sobre o conteúdo e, consequentemente, sua busca. Também jamais exiba esse tipo de conteúdo para crianças e adolescentes.

Pais e educadores podem e devem alertar sobre a existência de vídeos e notícias perigosas na internet, mas abrindo a possibilidade para um diálogo: crianças e adolescentes devem se sentir seguros para compartilhar e conversar com os responsáveis caso sejam impactados por conteúdos violentos.

O colunista de mídia do New York Times, John Hermann, foi quem fez a melhor análise do caso. Segundo ele, pais que delegam ao YouTube parte do cuidado dos filhos, sem terem a certeza do que se esconde dentro dos vídeos, veem na Momo a materialização dos seus medos mais profundos e um alvo para direcionarem a culpa por não estarem presentes quando estão cansados ou ocupados com qualquer outra coisa. “O medo da Memo existe há anos, mas agora ele tem um nome e um rosto”, escreveu Hermann. Rosto que, nas palavras brincalhonas de uma amiga do colunista, seriam o de “uma mãe que não dorme ou toma banho pela falta de um momento longe de filhos exigentes”.

A Momo é real, e nem me refiro à escultura do japonês Keisuke Aisawa, exposta em Tóquio em 2016 e apropriada pelo boato como a imagem do mal. Falo do fenômeno da Momo coach de suicídio infantil. Não pelos seus “atos” em vídeos infantis, que até agora não foram comprovados e nem devem existir, mas pelo terror que ela (ou quem está por trás dessa boataria) cria em pais que são, em igual medida, super protetores e super culpados. O público-alvo da Momo, aquele que realmente tem pavor da boneca, não são as crianças. São os pais delas.

* * *

Nota do editor: este artigo foi publicado originalmente no Manual do Usuário, um blog focado em tecnologia que publica artigos opinativos, reportagens aprofundadas e que questiona a premissa de que a tecnologia pode resolver todos os problemas.

publicado em 21 de Março de 2019, 16:36

Rodrigo Ghedin ~ Escreve sobre tecnologia, estuda comunicação e vive tentando entender a convergência dessas duas áreas. Está à frente do Manual do Usuário, um blog de tecnologia diferente. Ele não sabe consertar seu computador.
 

Pós-verdade ~ Algumas fake news duram para sempre

Pós-verdade é o capítulo 17 do último livro do historiador isralense Yuval Harari: HARARI, Yuval (2018). 21 lessons for the 21st century. New York: Spiegel & Grau, 2018. Usamos a tradução brasileira de Paulo Geiger. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Pós-verdade

Algumas fake news duram para sempre

Atualmente se repete que estamos vivendo uma nova e assustadora era da “pós-verdade”, e que estamos cercados de mentiras e ficções. Não é difícil oferecer exemplos. No final de fevereiro de 2014, unidades especiais russas, sem ostentar insígnias de um exército, invadiram a Ucrânia e ocuparam instalações-chave na Crimeia. O governo russo e o presidente Putin em pessoa negaram repetidamente que eram tropas russas, e as descreveram como “grupos de autodefesa” espontâneos que poderiam ter adquirido equipamento parecido com o russo em lojas locais (1). Ao fazer essa declaração absurda, Putin e seus assessores sabiam perfeitamente bem que estavam mentindo.

Nacionalistas russos são capazes de desculpar essa mentira alegando que ela atende a uma verdade maior. A Rússia estava engajada numa guerra justa, e, se é válido matar por uma causa justa, também não seria válido mentir? A causa mais elevada que alegadamente justificaria a invasão da Ucrânia era a preservação da sagrada nação russa. Segundo mitos nacionais, a Rússia é uma entidade que perdurou por mil anos apesar de repetidas tentativas de inimigos perversos de invadi-la e desmembrá-la. Depois dos mongóis, dos poloneses, dos suecos, da Grande Armée de Napoleão e da Wehrmacht de Hitler, na década de 1990 foi a Otan, os Estados Unidos e a União Europeia que tentaram destruir a Rússia, desmembrando partes de seu território e formando com eles “falsos países”, como a Ucrânia. Para muitos nacionalistas russos, a ideia de que a Ucrânia é uma nação separada da Rússia é uma mentira muito maior do que qualquer coisa pronunciada pelo presidente Putin durante sua missão sagrada de reintegrar a nação russa.
Cidadãos ucranianos, observadores externos e historiadores podem sentir-se ultrajados por essa explicação, e encará-la como uma espécie de “bomba atômica da mentira” no arsenal russo de embustes. Alegar que a Ucrânia não existe como nação e como país independente é desconsiderar uma longa lista de fatos históricos — por exemplo, que durante os mil anos de suposta unidade russa, Kíev e Moscou foram parte do mesmo país por somente trezentos anos. Isso também viola numerosas leis e tratados internacionais que a Rússia tinha aceitado e que salvaguardaram a soberania e as fronteiras da Ucrânia independente. Mais importante, ignora o que milhões de ucranianos pensam de si mesmos. Será que eles não têm o direito de dizer quem são?
Os nacionalistas ucranianos certamente concordariam com os nacionalistas russos de que existem por aí alguns falsos países. Mas a Ucrânia não é um deles. E, sim, esses falsos países são a “República Popular de Lugansk” e a “República Popular de Donetsk”, que a Rússia estabeleceu para mascarar sua não provocada invasão da Ucrânia (2).
Seja qual for o lado que você apoia, parece que estamos realmente vivendo uma era terrível da pós-verdade, quando não só incidentes militares específicos, mas narrativas e nações inteiras podem ser falsificadas. Mas, se essa é a era da pós-verdade, quando, exatamente, foi a era de ouro da verdade? Na década de 1980? De 1950? 1930? E o que desencadeou a transição para a pós-verdade — a internet? A mídia social? A ascensão de Putin e Trump?
Uma análise superficial da história revela que a propaganda e a desinformação não são nada novas, e até mesmo o hábito de negar nações inteiras e criar países falsos tem um longo pedigree. Em 1931 o Exército japonês encenou ataques simulados a si mesmo para justificar sua invasão da China, e depois criou o país falso de Manchukuo para legitimar suas conquistas. A própria China negou durante muito tempo que o Tibete alguma vez tenha existido como país independente. A colonização britânica na Austrália foi justificada com a doutrina legal de terra nullius (“terra de ninguém”), que efetivamente apagou 50 mil anos de história aborígene.
No início do século XX, um dos lemas favoritos do sionismo falava do retorno de “um povo sem terra [os judeus] a uma terra sem povo [Palestina]”. A existência de uma população árabe local foi convenientemente ignorada. Em 1969 a primeira-ministra israelense Golda Meir disse que não existe e nunca existiu um povo palestino. Essas ideias são muito comuns em Israel até hoje, apesar de décadas de conflitos armados contra algo que não existe. Por exemplo, em fevereiro de 2016, a parlamentar Anat Berko fez um discurso no Parlamento de Israel no qual duvidava da realidade e da história do povo palestino. Sua prova? A letra “P” nem sequer existe em árabe, então como pode haver um povo palestino? (Em árabe, usa-se “f” em lugar de “p”, e o nome árabe para a Palestina é Falastin.)
A ESPÉCIE DA PÓS-VERDADE
Os humanos sempre viveram na era da pós-verdade. O Homo Sapiens é uma espécie da pós-verdade, cujo poder depende de criar ficções e acreditar nelas. Desde a Idade da Pedra, mitos que se autorreforçavam serviram para unir coletivos humanos. Realmente, o Homo Sapiens conquistou esse planeta graças, acima de tudo, à capacidade exclusiva dos humanos de criar e disseminar ficções. Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários estranhos porque somente nós somos capazes de inventar narrativas ficcionais, espalhá-las e convencer milhões de outros a acreditar nelas. Enquanto todos acreditarmos nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às mesmas leis e, portanto, cooperamos efetivamente.
Assim, se você culpa o Facebook, Trump ou Putin por introduzir a nova e assustadora era da pós-verdade, lembre-se de que séculos atrás milhões de cristãos se fecharam dentro de uma bolha mitológica que se autorreforçava, nunca ousando questionar a veracidade factual da Bíblia, enquanto milhões de muçulmanos depositaram sua fé inquestionável no Corão. Por milênios, muito do que era considerado “notícia” e “fato” nas redes sociais humanas eram narrativas sobre milagres, anjos, demônios e bruxas, com ousados repórteres dando cobertura ao vivo diretamente das mais profundas fossas do submundo. Temos zero evidência científica de que Eva foi tentada pela serpente, que as almas dos infiéis ardem no inferno depois que morrem ou que o criador do universo não gosta quando um brâmane se casa com um intocável — mas bilhões de pessoas têm acreditado nessas narrativas durante milhares de anos. Algumas fake news duram para sempre.
Estou ciente de que muita gente poderá se aborrecer por eu equiparar religião com fake news, mas este é exatamente o ponto. Quando mil pessoas acreditam durante um mês numa história inventada — isso é fake news. Quando 1 bilhão de pessoas acreditam durante milhares de anos — isto é uma religião, e somos advertidos a não chamar de fake news para não ferir os sentimentos dos fiéis (ou incorrer em sua ira). Observe, no entanto, que não estou negando a efetividade ou benevolência potencial da religião. Exatamente o contrário. Para o bem ou para o mal, a ficção está entre os instrumentos mais eficazes na caixa de ferramentas da humanidade. Ao unir pessoas, credos religiosos possibilitam a cooperação em grande escala. Eles inspiram a construção de hospitais, escolas e pontes, além de exércitos e prisões. Adão e Eva nunca existiram, mas a catedral de Chartres continua linda. Grande parte da Bíblia pode ser ficcional, mas ainda é capaz de trazer alegria a bilhões, e ainda é capaz de incentivar os humanos a serem compassivos, corajosos e criativos — assim como outras grandes obras de ficção, como Dom Quixote, Guerra e paz e Harry Potter.
De novo, algumas pessoas podem se ofender com minha comparação da Bíblia com Harry Potter. Se você é um cristão com mente científica poderia minimizar todos os erros e mitos na Bíblia alegando que nunca se pretendeu que o livro sagrado fosse lido como um relato factual, e sim como uma narrativa metafórica que encerra profunda sabedoria. Mas isso não vale para Harry Potter também?
Se você é um cristão fundamentalista é mais provável que insista em que cada palavra da Bíblia é verdade. Suponhamos por um momento que você tem razão, e que a Bíblia realmente é a infalível palavra do único e verdadeiro Deus. O que, então, você faz com o Corão, o Talmude, o Livro dos Mórmons, os Vedas, o Avesta, o Livro dos Mortos egípcio? Você não fica tentado a dizer que esses textos são elaboradas ficções criadas por humanos de carne e osso (ou talvez por demônios)? E como vê você a divindade de imperadores romanos como Augusto e Cláudio? O Senado Romano alegava ter o poder de transformar pessoas em deuses, e depois esperava que os súditos do império cultuassem esses deuses. Isso não era ficção? De fato, temos pelo menos um exemplo na história de um falso deus que reconheceu a ficção numa declaração por sua própria boca. Como já observado, o militarismo japonês na década de 1930 e início da de 1940 apoiava-se na crença fanática na divindade do imperador Hirohito. Após a derrota do Japão, Hirohito proclamou publicamente que isso não era verdade, e que ele afinal de contas não era um deus.
Assim, mesmo se concordarmos que a Bíblia é a verdadeira palavra de Deus, isso ainda nos deixa com bilhões de devotos hindus, muçulmanos, judeus, egípcios, romanos e japoneses que durante milhares de anos depositaram sua confiança em ficções. De novo, isso não quer dizer que essas ficções são necessariamente desprovidas de valor ou danosas. Ainda podem ser belas e inspiradoras.
É claro que nem todos os mitos religiosos foram igualmente benevolentes. Em 29 de agosto de 1255, o corpo de um menino inglês de nove anos de idade chamado Hugh foi encontrado num poço, na cidade de Lincoln. Mesmo sem Facebook nem Twitter, rapidamente espalhou-se o boato de que Hugh tinha sido vítima de um assassinato ritual realizado pelos judeus locais. A história foi crescendo à medida que era recontada, e um dos mais renomados cronistas ingleses da época — Matthew Paris — criou uma detalhada e sangrenta versão de como judeus proeminentes de toda a Inglaterra reuniram-se em Lincoln para engordar, torturar e finalmente crucificar o menino sequestrado. Dezenove judeus foram julgados e executados pelo suposto assassinato. Libelos de sangue semelhantes tornaram-se populares em outras cidades inglesas, levando a uma série de pogroms nos quais comunidades inteiras foram massacradas. Posteriormente, em 1290, toda a população judaica da Inglaterra foi expulsa do país (3).
A história não termina aí. Um século depois da expulsão dos judeus da Inglaterra, Geoffrey Chaucer — o pai da literatura inglesa — incluiu um libelo de sangue modelado na história de Hugh de Lincoln em seus Contos da Cantuária (“Conto da Prioresa”). O texto culmina com o enforcamento dos judeus. Libelos de sangue semelhantes tornaram-se subsequentemente componentes básicos de todo movimento antissemita, da Espanha medieval à Rússia moderna. Pôde-se ouvir um eco distante disso na fake news de que Hillary Clinton chefiava uma rede de tráfico humano que mantinha crianças como escravas sexuais no porão de uma pizzaria muito frequentada. Não foram poucos os americanos que acreditaram na história, destinada a prejudicar a campanha eleitoral de Clinton, e uma pessoa até veio armada à pizzaria e exigiu ver o porão (constatou-se que a pizzaria nem tinha porão) (4).
Quanto ao próprio Hugh de Lincoln, ninguém sabe realmente como ele morreu, mas foi enterrado na catedral de Lincoln e venerado como um santo. Foi reputado como o realizador de vários milagres, e seu túmulo continua a atrair peregrinos até mesmo séculos depois da expulsão de todos os judeus da Inglaterra (5). Foi somente em 1955 — dez anos após o Holocausto — que a catedral de Lincoln repudiou a versão do libelo de sangue, colocando uma placa junto ao túmulo, onde se lê: Histórias inventadas de “assassinatos rituais” de meninos cristãos por comunidades judaicas eram comuns em toda a Europa durante a Idade Média, e mesmo muito mais tarde. Essas ficções custaram a vida de muitos judeus inocentes. Lincoln teve sua própria lenda, e a alegada vítima foi sepultada na Catedral no ano de 1255. Essas histórias não redundam em crédito para a Cristandade (6).
Bem, algumas fake news duram apenas setecentos anos.
UMA VEZ MENTIRA, SEMPRE VERDADE
Religiões antigas não foram as únicas que usaram ficção para cimentar cooperação. Em tempos mais recentes, cada nação criou sua própria mitologia nacional, enquanto movimentos como o comunismo, o fascismo e o liberalismo modelaram elaborados credos que se autorreforçam. Diz-se que Joseph Goebbels, o maestro da propaganda nazista, e talvez o mais realizado mago da mídia da era moderna, explicou seu método sucintamente declarando que “uma mentira dita uma vez continua uma mentira, mas uma mentira dita mil vezes torna-se verdade” (7). Em Mein Kampf, Hitler escreveu que “a mais brilhante técnica de propaganda não vai ter sucesso a menos que se leve sempre em conta um princípio fundamental — ela tem de se limitar a alguns pontos e repeti-los sem parar” (8). Será que algum vendedor de fake news atual é capaz de fazer melhor do que isso?
A máquina de propaganda soviética foi igualmente ágil com a verdade, reescrevendo a história de tudo, desde guerras inteiras até fotografias individuais. Em 29 de junho de 1936, o jornal oficial Pravda (“verdade”, em russo) trazia na primeira página uma foto de um sorridente Josef Stálin abraçando Gelya Markizova, uma menina de sete anos. A imagem tornou-se um ícone stalinista, consagrando Stálin como o Pai da Nação e idealizando a “Feliz Infância Soviética”. Gráficas e fábricas por todo o país produziram milhões de pôsteres, esculturas e mosaicos da cena, que foram exibidos em instituições públicas de uma extremidade da União Soviética a outra. Assim como nenhuma igreja ortodoxa russa está completa sem um ícone da Virgem Maria segurando o menino Jesus, nenhuma escola soviética poderia dispensar um ícone de papai Stálin segurando a pequena Gelya.
Infelizmente, no império de Stálin a fama era quase sempre um convite à catástrofe. Um ano depois da foto, o pai de Gelya foi preso sob a espúria acusação de que era um espião japonês e um terrorista trotskista. Em 1938 foi executado, uma das milhões de vítimas do terror stalinista. Gelya e sua mãe foram exiladas para o Cazaquistão, onde a mãe logo morreu em circunstâncias misteriosas. O que fazer agora com os incontáveis ícones mostrando o Pai da Nação com a filha de um condenado “inimigo do povo”? Sem problema. Daquele momento em diante, Gelya Markizova desapareceu, e a “Feliz Criança Soviética” na imagem ubíqua foi identificada como Mamlakat Nakhangova — uma menina tadjique de treze anos que recebeu a Ordem de Lênin colhendo diligentemente grandes quantidades de algodão nos campos (se alguém achasse que a menina na foto não parecia ter treze anos, pensava duas vezes antes de mencionar tal heresia antirrevolucionária) (9).
A máquina de propaganda soviética era tão eficiente que conseguiu esconder as atrocidades monstruosas em casa ao mesmo tempo que projetava uma visão utópica no exterior. Hoje os ucranianos se queixam de que Putin conseguiu enganar grande parte da mídia ocidental quanto às ações da Rússia na Crimeia e em Donbas. Mas na arte da enganação ele dificilmente se equipara a Stálin. No início da década de 1930, jornalistas e intelectuais ocidentais de esquerda louvavam a União Soviética como uma sociedade ideal, enquanto ucranianos e outros cidadãos soviéticos morriam de fome aos milhões por causa das políticas orquestradas por Stálin. Apesar de, na era do Facebook e do Twitter, ser às vezes difícil decidir em quais versões de um acontecimento acreditar, pelo menos já não é mais possível um regime matar milhões sem que o mundo saiba.
Além de religiões e de ideologias, empresas comerciais também se apoiam em ficção e fake news. Divulgar uma marca envolve recontar a mesma narrativa ficcional várias vezes, até as pessoas ficarem convencidas de sua veracidade. Que imagens ocorrem quando você pensa em Coca-Cola? Você pensa em pessoas jovens e saudáveis praticando esportes e se divertindo? Ou pensa em pessoas com diabetes e sobrepeso deitadas numa cama de hospital? Beber Coca-Cola não te deixará mais jovem, mais saudável, nem mais atlético — e sim mais propenso a sofrer de obesidade e diabetes. Mas durante décadas a Coca-Cola investiu bilhões de dólares associando sua imagem a juventude, saúde e esportes — e bilhões de humanos subconscientemente acreditam nessa associação.
O fato é que a verdade nunca teve papel de destaque na agenda do Homo Sapiens. Muita gente supõe que se uma determinada religião ou ideologia não representa a realidade, cedo ou tarde seus adeptos acabarão descobrindo, porque não serão capazes de competir com rivais mais esclarecidos. Bem, esse é apenas mais um mito reconfortante. Na prática, o poder da cooperação humana depende de um delicado equilíbrio entre a verdade e a ficção.
Se você distorcer demais a realidade, isso na verdade vai enfraquecê-lo, fazendo-o agir de maneira irrealista. Por exemplo, em 1905 um médium da África Oriental chamado Kinjikitile Ngwale alegou estar possuído pelo espírito da cobra Hongo. O novo profeta tinha uma mensagem revolucionária para o povo da colônia alemã da África Oriental: unam-se e expulsem os alemães. Para tornar a mensagem mais atraente, Ngwale proveu seus seguidores de remédios mágicos que, supostamente, transformariam as balas dos alemães em água (maji, em suaili). Isso deu início à Rebelião Maji Maji. Ela fracassou. Porque no campo de batalha as balas alemãs não se transformaram em água. Em vez disso, elas rasgaram impiedosamente o corpo dos mal armados rebeldes (10). Dois mil anos antes, a Grande Revolta Judaica contra os romanos foi inspirada, de forma parecida, por uma ardente crença de que Deus lutaria pelos judeus e os ajudaria a derrotar o aparentemente invencível Império Romano. Isso fracassou também, levando à destruição de Jerusalém e ao exílio dos judeus.
Por outro lado, você não será capaz de organizar com eficiência grandes massas sem se apoiar em alguma mitologia. Se ficar preso à realidade crua, poucas pessoas o seguirão. Sem mitos, teria sido impossível organizar não só as revoltas Maji Maji e judaicas, mas também as muito mais bem-sucedidas rebeliões dos Mahdi e dos Macabeus.
As histórias falsas têm uma vantagem intrínseca em relação à verdade quando se trata de unir pessoas. Se você quer calibrar a lealdade de um grupo, pedir às pessoas que acreditem num absurdo é um teste muito melhor do que pedir que acreditem na verdade. Se um grande chefe disser “o sol nasce no leste e se põe no oeste” não se requer lealdade para aplaudi-lo. Mas se o chefe disser “o sol nasce no oeste e se põe no leste” apenas os que lhe forem verdadeiramente leais baterão palmas. Da mesma forma, se todos os seus vizinhos acreditarem na mesma história absurda, você pode contar com eles em momentos de crise. Se só aceitam acreditar em fatos comprovados, o que isso prova?
Poder-se-ia alegar que, ao menos em alguns casos, é possível organizar pessoas mediante acordos consensuais e não por meio de ficções e mitos. Assim, na esfera econômica, dinheiro e corporações unem pessoas muito mais efetivamente do que qualquer deus ou livro sagrado, apesar de todos saberem que isso é apenas uma convenção criada por humanos. No caso do livro sagrado, um verdadeiro crente diria “eu acredito que o livro é sagrado”, enquanto no caso do dólar, um verdadeiro crente diria apenas que “eu acredito que outras pessoas acreditam que o dólar tem valor”. É óbvio que o dólar é apenas uma criação humana, porém pessoas do mundo inteiro o respeitam. Se é assim, por que os humanos não são capazes de abandonar todos os mitos e ficções, e se organizar com base em convenções consensuais, como o dólar?
Essas convenções, no entanto, não são claramente diferentes de ficção. A diferença entre livros sagrados e dinheiro, por exemplo, é muito menor do que pode parecer à primeira vista. Quando veem uma nota de dólar, a maioria das pessoas esquece que aquilo é apenas uma convenção humana. Quando veem o pedaço de papel verde com a figura do homem branco que já morreu, elas o veem como algo valioso em si mesmo e por si mesmo. Dificilmente pensam: “Na verdade, isto é um pedaço de papel sem valor, mas, como outras pessoas o consideram valioso, posso fazer uso dele”. Se você observar um cérebro humano num escâner de ressonância magnética funcional, verá que quando se mostra a alguém uma mala cheia de cédulas de cem dólares, as partes do cérebro que começam a zumbir excitadamente não são as partes céticas (“outras pessoas acreditam que isto é valioso”) e sim as partes gananciosas (“Puta merda! Eu quero isso!”). Inversamente, na grande maioria dos casos, as pessoas só começam a santificar a Bíblia ou os Vedas ou o Livro dos Mórmons após uma longa e repetida exposição a outras pessoas que os consideram sagrados. Aprendemos a respeitar livros sagrados da mesmíssima maneira que aprendemos a respeitar notas de dinheiro.
Daí que, na prática, não existe uma divisão clara entre “saber que algo é apenas uma convenção humana” e “crer que algo é inerentemente valioso”. Em muitos casos, as pessoas são ambíguas ou desatentas a essa divisão. Para dar outro exemplo, se você sentar e tiver uma profunda discussão filosófica sobre isso, quase todo mundo concordaria que corporações são narrativas ficcionais criadas por seres humanos. A Microsoft não é os prédios que possui, as pessoas que emprega ou os acionistas aos quais ela serve — e sim uma intricada ficção legal tecida por legisladores e advogados. Mas em 99% do tempo não estamos engajados em profundas discussões filosóficas, e tratamos as corporações como se fossem entidades reais no mundo, assim como tigres ou humanos.
Embaçar a linha entre ficção e realidade pode servir a muitos propósitos, começando com “divertimento”, até “sobrevivência”. Você não pode jogar jogos ou ler romances a menos que suspenda sua descrença, ao menos por um momento. Para realmente curtir o futebol, você tem de aceitar as regras do jogo, e esquecer, ao menos durante noventa minutos, que elas são apenas invenções humanas. Se não fizer isso, vai achar ridículo que 22 pessoas fiquem correndo atrás de uma bola. O futebol pode começar como diversão, mas depois se tornar coisa muito mais séria, como qualquer hooligan inglês ou nacionalista argentino atestará. O futebol pode ajudar a formar identidades pessoais, pode cimentar comunidades em grande escala e pode até mesmo ensejar motivos para violência. Nações e religiões são times de futebol hipertrofiados.
Humanos têm a notável capacidade de saber e não saber ao mesmo tempo. Ou, mais corretamente, eles são capazes de saber alguma coisa quando de fato pensam sobre ela, mas na maior parte do tempo não pensam sobre ela, por isso não sabem. Se realmente se concentrar, você se dará conta de que dinheiro é ficção. Mas normalmente você não se concentra. Se lhe perguntam sobre o futebol, você sabe que é uma invenção humana. Mas no calor de um jogo, ninguém lhe perguntará sobre isso. Se dedicar tempo e energia, você poderá descobrir que nações são elaboradas invencionices. Mas em meio a uma guerra você não tem tempo nem energia. Se você exigir a verdade suprema, constatará que a história de Adão e Eva é um mito. Mas quão frequentemente você exige a verdade suprema?
Verdade e poder podem andar juntos só até certo ponto. Cedo ou tarde vão seguir caminhos separados. Se você quer poder, em algum momento terá de disseminar mentiras. Se quiser saber a verdade sobre o mundo, em algum momento terá de renunciar ao poder. Terá de admitir coisas — como as origens de seu poder, por exemplo — que vão enfurecer aliados, desengajar seguidores e minar a harmonia social. Não há nada de místico nessa lacuna entre verdade e poder. Como testemunho disso, apenas encontre um típico americano protestante, anglo-saxão, branco e levante a questão de raça, localize um israelense da corrente majoritária e mencione a Ocupação, ou tente falar com um sujeito comum sobre patriarcado.
Ao longo da história, eruditos depararam com esse dilema repetidamente. Deveriam servir ao poder ou à verdade? Deveriam manter as pessoas unidas, garantindo que todas acreditassem na mesma narrativa, ou deveriam deixar que soubessem a verdade, mesmo ao preço da desunião? Os intelectualmente mais poderosos — fossem sacerdotes cristãos, mandarins confucianos ou ideólogos comunistas — puseram a união acima da verdade. E justamente por isso eram tão poderosos.
Como espécie, os humanos preferem o poder à verdade. Dedicamos muito mais tempo e esforço tentando controlar o mundo do que tentando compreendê-lo —, e mesmo quando tentamos compreendê-lo, normalmente fazemos isso na esperança de que compreender o mundo fará com que nos seja mais fácil controlá-lo. Por isso, se você sonha com uma sociedade na qual a verdade reina suprema e os mitos são ignorados, não pode esperar muito do Homo Sapiens. Melhor tentar a sorte com os chipanzés.
ESCAPANDO DA MÁQUINA DE LAVAGEM CEREBRAL
Tudo isso não significa que as fake news não sejam um problema sério, ou que políticos e sacerdotes tenham liberdade total para mentir descaradamente. Também seria errado concluir que tudo são apenas fake news, que toda tentativa de descobrir a verdade está destinada ao fracasso e que não existe diferença entre jornalismo sério e propaganda. Subjacentes a todas as fake news existem fatos reais e sofrimentos reais. Na Ucrânia, por exemplo, soldados russos estão realmente combatendo, milhares já morreram de verdade e centenas de milhares perderam seus lares. O sofrimento humano pode ser causado por crença na ficção, mas o sofrimento em si ainda é real.
Portanto, em vez de aceitar fake news como a norma, deveríamos reconhecer que é um problema muito mais difícil do que supomos, e que deveríamos nos esforçar ainda mais para distinguir a realidade da ficção. Que não se espere perfeição. Uma das maiores ficções de todas é negar a complexidade do mundo e pensar em termos absolutos numa pureza imaculada contra o mal satânico. Nenhum político diz toda a verdade e nada além da verdade, mas alguns políticos são bem melhores que outros. Se pudesse escolher, eu confiaria muito mais em Churchill do que em Stálin, embora o primeiro-ministro britânico não deixasse de dourar a pílula quando isso lhe era conveniente. Da mesma forma, nenhum jornal está livre de vieses e erros, mas alguns fazem um esforço honesto de descobrir a verdade, enquanto outros são uma máquina de lavagem cerebral. Se eu tivesse vivido na década de 1930, gostaria de ter tido o bom senso de acreditar mais no New York Times do que no Pravda e no Der Stürmer.
É responsabilidade de todos nós investir tempo e esforço para expor nossos vieses e preconceitos, e para verificar nossas fontes de informação. Como observado em capítulos anteriores, não somos capazes de investigar tudo sozinhos. Mas exatamente por causa disso precisamos ao menos investigar com cuidado nossas fontes de informação preferidas — seja um jornal, um site, uma rede de televisão ou uma pessoa. No capítulo 20 vamos explorar com muito mais profundidade como evitar a lavagem cerebral e como distinguir realidade de ficção. Aqui, gostaria de oferecer de improviso duas regras gerais simples.
Primeira: se você quer uma informação confiável — pague por ela. Se obtiver suas notícias gratuitamente, talvez o produto seja você. Suponha que um obscuro bilionário lhe ofereça o seguinte negócio: “Vou lhe pagar trinta dólares por mês, e em troca você permitirá que todo dia eu lhe faça uma lavagem cerebral durante uma hora, instalando em seu cérebro quaisquer vieses políticos ou comerciais que eu queira”. Você aceitaria esse acordo? Poucas pessoas mentalmente sãs o fariam. Assim, o obscuro milionário oferece um acordo um pouco diferente: “Você permitirá que eu lhe faça uma lavagem cerebral diariamente, e em troca não vou lhe cobrar nada pelo serviço”. Agora o acordo soa tentador para centenas de milhões de pessoas. Não vá por esse caminho.
A segunda regra geral é que se algum assunto parece ser importante para você, faça o esforço de ler literatura científica relevante sobre ele. E o que entendo por literatura científica são artigos avaliados por pares, livros publicados por editoras acadêmicas bem conhecidas e textos de professores de instituições respeitáveis. Obviamente, a ciência tem suas limitações e se envolveu com muitas coisas erradas no passado. Ainda assim, a comunidade científica tem sido nossa fonte mais confiável de conhecimento, durante séculos. Se você acha que a comunidade científica está errada quanto a alguma coisa, isso é bem possível, mas pelo menos conheça as teorias científicas que está rejeitando, e apresente alguma evidência empírica que sustente sua alegação.
Os cientistas, por sua vez, precisam estar muito mais envolvidos nos debates públicos atuais. Não deveriam ter medo de se fazer ouvir quando o debate se estender a seu campo de especialidade, seja a medicina ou a história. Silêncio não é neutralidade, é apoio ao status quo. É claro que é extremamente importante continuar a fazer pesquisa científica e publicar os resultados em revistas científicas que só uns poucos especialistas leem. Mas é igualmente importante comunicar as últimas teorias científicas ao público em geral por meio de livros de divulgação científica e até mesmo mediante o uso inteligente da arte e da ficção.
Isso significa que cientistas deveriam começar a escrever livros de ficção científica? Não seria má ideia. A arte desempenha um papel fundamental na maneira pela qual as pessoas concebem o mundo, e no século XXI a ficção científica é sem dúvida o gênero mais importante de todos, pois ela expressa como a maioria das pessoas compreende coisas como a IA, a bioengenharia e a mudança climática. De fato precisamos de boa ciência, mas de uma perspectiva política, um bom filme de ficção científica vale muito mais do que um artigo na Science ou na Nature.
Notas
1. Julian Borger, “Putin Offers Ukraine Olive Branches Delivered by Russian Tanks’ (The Guardian, 4 mar. 2014). Disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2018.
2. Serhii Plokhy, Lost Kingdom: The Quest for Empire and the Making of the Russian Nation (Nova York: Basic Books, 2017); Snyder, The Road to Unfreedom, op. cit.
3. Matthew Paris, Matthew Paris’ English History, trad. J. A. Gyles, vol. 3 (Londres: Henry G. Bohn, 1854, pp. 138-41). Patricia Healy Wasyliw, Martyrdom, Murder and Magic: Child Saints and Their Cults in Medieval Europe (Nova York: Peter Lang, 2008, pp. 123-5).
4. Cecilia Kang e Adam Goldman, “In Washington Pizzeria Attack, Fake News Brought Real Guns” (New York Times, 5 dez. 2016). Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2018.
5. Leonard B. Glick, Abraham’s Heirs: Jews and Christians in Medieval Europe (Syracuse: Syracuse University Press, 1999, pp. 228-9).
6. Anthony Bale, “Afterword: Violence, Memory and the Traumatic Middle Ages”, in Sarah Rees Jones e Sethina Watson (Orgs.), Christians and Jews in Angevin England: The York Massacre of 1190, Narrative and Contexts (York: York Medieval Press, 2013, p. 297).
7. Embora a citação seja frequentemente atribuída a Goebbels, convém assinalar que nem eu nem meu dedicado assistente para pesquisa conseguimos verificar que Goebbels alguma vez tivesse escrito ou dito isso.
8. Hilmar Hoffman, The Triumph of Propaganda: Film and National Socialism, 1933-1945 (Providence: Berghahn Books, 1997, p. 140).
9. Lee Hockstader, “From a Ruler’s Embrace to a Life in Disgrace” (Washington Post, 10 mar. 1995).
10. Thomas Pakenham, The Scramble for Africa (Londres: Weidenfeld& Nicolson, 1991, pp. 616-7).

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