O desmonte da Atenção Básica e do SUS em Porto Alegre durante a pandemia

O desmonte da Atenção Básica e do SUS em Porto Alegre durante a pandemia (por Carolina Santana Krieger e Guilherme dos Santos Todeschini)

Carolina Santana Krieger e
Guilherme dos Santos Todeschini (*)

A presente manifestação tem como intuito explicitar a situação de saúde em Porto Alegre desde a criação do Instituto Municipal de Saúde de Estratégia de Saúde da Família até a atual conjuntura. O governo Marchezan decidiu, a partir de dezembro de 2019, demitir em massa os trabalhadores da instituição (em sua quase totalidade profissionais de saúde). Em dezembro de 2020, demitiu 552 trabalhadores, 214 dos quais são técnicos de enfermagem, e 134 enfermeiros – o que corresponde a 63% da força de trabalho retirada da linha de frente no presente contexto pandêmico.


Em 2011 o Município de Porto Alegre editou Lei autorizando o Poder Executivo a criar o Instituto Municipal de Estratégia de Saúde (IMESF) sob a forma de fundação pública de direito privado para atendimento na APS (Atenção Primária de Saúde). A instituição, criada de fato em 2012, chegou a contar com 1840 profissionais de saúde (em 2019), todos ingressantes em seu quadro funcional por meio de concurso público (uma vez que a entidade pertence à administração pública indireta do Município). Por meio do IMESF, o Município conseguiu atingir a cobertura de Atenção Primária em 71%.


Em 2014, contudo, o TJRS declarou a inconstitucionalidade da Lei que autorizou a criação do IMESF, por reconhecimento de vício formal. Conforme o TJRS, a inconstitucionalidade se devia ao fato de que inexistia a Lei Complementar prevista no art. 37, XIX, da Constituição Federal (a qual deveria definir as áreas de atuação de fundações públicas de direito privado instituídas pelo poder público).


O Executivo Municipal, então, recorreu ao STF, e conseguiu a emissão de liminar para manter o IMESF em funcionamento. Um dos fundamentos da liminar concedida, além do fato de que o IMESF já estava em funcionamento e atendendo a população, foi o fato de que o STF está para pronunciar-se a respeito dessa matéria constitucional na ADI 4197, que até hoje não foi julgada.


Surpreendentemente, contudo, em 2019, mesmo com a ADI 4197 não tendo sido julgada, a 1ª Turma do STF julgou o recurso interposto contra a decisão do STF, e decidindo por seu não recebimento. Detalhe: o não conhecimento ocorreu pela falta de assinatura do Prefeito Marchezan (interessado na extinção do IMESF) na peça recursal. Após tal fato, o governo passou a envidar todos os esforços possíveis para extinguir o IMESF e demitir seus profissionais, utilizando a decisão do STF (que sequer examinou o mérito da discussão constitucional que será decidida na ADI 4197) como pretexto para tanto.


Cabe ressaltar que existem soluções para preservar-se a existência do próprio IMESF (com a aplicação da recente decisão do STF proferida na ADI 4247, a qual dispõe que as incorreções legislativas podem ocorrer no próprio âmbito municipal), ou para preservar-se os empregos em outra estrutura administrativa.


Necessário destacar que a cobertura de equipes de saúde da família no ano de 2018 ultrapassou 70% em Porto Alegre, um aumento substancial de quase 30% após 7 anos de implantação do IMESF. Os servidores que compõem o quadro do IMESF são médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, dentistas, auxiliares e técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde e de combate a endemias, assessores jurídicos, contadores, auxiliares contábeis e assistentes administrativos.


De setembro de 2019 até o fim do mandato, a gestão Marchezan utilizou-se da máquina do Município para empregar todo e qualquer artifício vexatório, assediador e humilhante para demitir ou forçar os empregados públicos do IMESF a pedirem demissão: alguns fatos são a utilização sistemática dos meios de comunicação da SMS para divulgar mentiras com a finalidade de ameaçar os empregados (o que ficou conhecido como a “sexta feira do terror”, uma vez que adotou-se a prática sistemática de fazer tais divulgações nesse dia), o impedimento dos demitidos de adentrar em seus locais de trabalho e com uso de força policial, notificações de demissão de empregados por AR (inclusive os afastados por licença saúde, lactantes, ou em gozo de benefício do INSS).


Vale ressaltar que as demissões promovidas em dezembro são ilegais de pleno direito porque descumprem decisão judicial proferida em 17/09/2020 pelo TRT4 (que proibia que se procedesse às demissões) na execução do TAC, e por violação ao art. 73, V, da Lei das Eleições (a qual proíbe demissões nos três meses anteriores à eleição, até a data de posse dos novos eleitos).Cabe ressaltar, ainda, que o Município também descumpriu decisão de outro processo que dispõe que, na hipótese de haver demissão, ela deve se dar com o pagamento de todas as verbas rescisórias. Todos esses aspectos foram transgredidos pelo Município na gestão anterior. O Município segue em situação irregular.


Importante frisar que existe TAC por meio do qual o Município comprometeu-se, em 2007, perante o MPT, o MPF, o MPE, e o MPC, abster-se de contratar profissionais para a Atenção Primária sem a realização de concurso público. Por causa desse TAC, ainda vigente inclusive, é que o IMESF foi criado.


As contratualizações dos serviços de saúde em APS tiveram início em dezembro de 2019, onde 4 Organizações Socias (OS) assumiram: Hospital Santa Casa (sem experiência em APS), Hospital Vila Nova (também sem experiência em atendimento básico), Hospital Divina Providência (que anteriormente havia firmado parceria com o município e descontinuou há alguns anos), e Instituto de Cardiologia (que igualmente teve contrato e cessou há alguns anos após a implantação do IMESF). Esse último interrompeu a parceria após alguns meses.


Cabe ressaltar que o Município está desestruturando o sistema de saúde do Município com a decisão de extinção do IMESF. Terceirizar a saúde básica por meio das OSs também configura transgressão da legislação que rege o SUS, em especial, a Lei 8080. O Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamenta a Lei Orgânica da Saúde – Lei federal nº 8.080/90, no seu artigo 2º considera como portas de entrada os serviços de atendimento inicial à saúde do usuário do SUS. No seu artigo 8º, determina que o acesso universal, igualitário e ordenado às ações e serviços de saúde se inicia pelas Portas de Entrada do SUS e se completa na rede regionalizada e hierarquizada, de acordo com a complexidade do serviço. E, no seu artigo 9º, expressamente consigna ser a atenção primária a porta de entrada às ações e serviços de saúde nas Redes de Atenção à Saúde (RAS). Assim sendo, compete ao poder executivo municipal a contratação de profissionais para atuação na APS, atendendo à modalidade da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB).


O panorama demonstrado apresenta as sucessivas irregularidades cometidas pelo Município no que se refere à tentativa de desmonte do IMESF, bem como os problemas relacionados à implantação da terceirização de atividade-fim – que é responsabilidade do gestor. A postura do Município culminará com a aniquilação da atenção básica do município de Porto Alegre, a qual atualmente conta com 11 unidades de saúde fechadas, e com e prestação parcial de atendimento na maioria dos serviços (vacinas, curativos, atendimentos médicos, odontológicos e de enfermagem).


A quem interessa a demissão de profissionais concursados, altamente qualificados, com ampla experiência em saúde pública e vínculo estreito com as comunidades atendidas em detrimento de processos seletivos escusos que elegem trabalhadores sem a qualificação necessária, desprovidos de experiência em APS e desconhecimento inequívoco do ofício?


Os motivos elencados para a permanência dos trabalhadores do IMESF são inaceitáveis frente ao panorama sanitário atual, às necessidades de saúde da população e ao cabal conhecimento acerca de saúde pública que esses trabalhadores apresentaram ao longo dos anos. É urgente a construção de solução diligente para permanecer com a assistência eficaz, eficiente, humanizada e de qualidade aos munícipes de Porto Alegre.


A crescente privatização da APS preocupa à medida que acompanhamos o desmonte do SUS, o descumprimento das legislações vigentes e a desassistência à comunidade de Porto Alegre com a omissão do judiciário, a indulgência do legislativo e a sagacidade do executivo.



(*) Carolina Santana Krieger é Enfermeira, com Especialização em Saúde Coletiva e da Família, Especialização em Gestão Clínica do Cuidado, MBA em Gestão em Saúde e Mestrado em Gestão em Saúde Pública.

Guilherme dos Santos Todeschini é Advogado, Especialista em Direito Constitucional, Mestrando em Direitos Humanos.

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