82 ANOS DE ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

Ouça o podcast:




No dia 11 de dezembro comemora-se o aniversário de criação da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP).


Foi nesta data que, em 11 de dezembro de 1940, Carl Rogers realizou uma palestra na Universidade de Minesota, num evento sobre Psicoterapia promovido por Edmund Williamson.

Segundo o relato do próprio Rogers, ele acreditava estar apresentando apenas um trabalho sobre as antigas e as novas tendências em psicoterapia.

Ao falar sobre uma abordagem mais permissiva e acolhedora, que enfocava mais os sentimentos e o potencial do próprio cliente para se reorganizar, Rogers estava, sem saber, atacando tudo o que se fazia até então em Psicoterapia.

De fato, os próprios organizadores do evento defendiam uma abordagem mais diretiva, assim como todo o campo da Psicoterapia da época, que ainda estava sob um poder hegemônico da influência médica, psicanalítica e psicométrica.

Segundo Rogers, a audiência reagiu fortemente depois de sua palestra:

“Eu estava totalmente despreparado para o furor que a fala provocou. Fui criticado, fui exaltado, atacado, fui olhado com perplexidade”.


O fato é que somente depois dessa palestra, Rogers percebeu que tinha algo de novo a contribuir para o campo da Psicoterapia. Foi a partir da mesma que ele escreveu parte do seu livro "Psicoterapia e Consulta Psicológica" e a data acabou se tornando um marco inaugural de criação da ACP.

A Abordagem Centrada na Pessoa é um termo que designa todas as práticas, metodologias e formulações teóricas iniciadas por Rogers desde 1940. Este nome veio substituir as antigas denominações Orientação Não-diretiva e Terapia Centrada no Cliente.

Como proposta para a Psicologia, a ACP tem como base a crença nos potenciais positivos da pessoa, que podem ser atualizados mediante uma relação na qual estejam presentes as condições facilitadoras do crescimento psicológico humano.

Como proposta ética e filosófica, a ACP se mostra como um jeito de ser e de se relacionar com o mundo, afirmando em sua prática valores como a liberdade, a dignidade e a realização humana.

(Texto de Luis Maciel, Psicólogo, Psicoterapeuta e Professor, Supervisor e Palestrante)



MAS O QUE É A "ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA"?

É uma modalidade de terapia que foca na pessoa e sua autodescoberta

A abordagem centrada na pessoa foi desenvolvida em 1940 pelo psicólogo Carl Rogers. Também conhecida como terapia centrada na pessoa, ela procura estimular e expor a tendência humana de autoatualização das pessoas. Nesse caso, é privilegiada a experiência subjetiva do indivíduo.

O psicólogo Carl Rogers desenvolveu essa abordagem baseado no cerne de que os seres humanos buscam a saúde mental e o crescimento, ao contrário de outras linhas da Psicologia, que em sua maioria são baseadas na ideia de que há por trás uma neurose básica, ou seja algum tipo de doença ou distúrbio mental.

Para Rogers, essa tendência humana de buscar a saúde e o bem-estar foi batizada de Tendência Atualizante. Esse termo foi resultado de uma pesquisa científica de observação de comportamentos humanos.

A partir desse conceito basilar, a ideia é desenvolver o descobrimento ou redescobrimento da essência da pessoa. Ou seja, consiste em explorar e expor o núcleo verdadeiro da personalidade do indivíduo. Isso acarretará na descoberta ou redescoberta da autoestima, da autoconfiança e do amadurecimento emocional.

Dessa maneira, a abordagem é essencialmente positiva, já que esse núcleo de personalidade a ser redescoberto ou descoberto é também positivo. Ainda, esse potencial de núcleo positivo está presente em todas as pessoa, mas para que ele seja explorado deve-se adotar a abordagem centrada na pessoa.

Segundo Rogers, existem 3 (três) condições básicas, necessárias e simultâneas para que o indivíduo consiga de fato exercer o seu cerne positivo. 

São elas: 
  • a consideração positiva incondicional;
  • a empatia;
  • a congruência.

Vamos agora aprofundar um pouco mais nossos conhecimentos sobre o que consiste a Tendência Atualizante definida por Rogers e essas três condições básicas, para melhor entender como funciona a terapia centrada na pessoa.


Tendência de Atualização

Esse postulado fundamental da abordagem centrada na pessoa constitui a satisfação das necessidades básicas e complexas do indivíduo. Isso permite uma confirmação dele, assim como a preservação de seu corpo. Dessa maneira, a pessoa pode ter maior sinergia entre a experiência vivida por ela e a simbolização que faz dessas vivências.

Quando há uma dissonância entre a experiência vivida e a simbolização, o indivíduo pode viver uma espécie de incongruência consigo mesmo. Isso pode significar uma espécie de distúrbio comportamental, que pode ser explicado pelo fato da pessoa não estar em contato com sua real personalidade, levando a um comportamento desajustado e um maior distanciamento de sua verdadeira essência.

Nesse sentido, a Tendência da Atualização, que é o pilar da abordagem centrada na pessoa, vai possibilitar ao indivíduo se reconectar com sua verdadeira personalidade. Esse pilar vai proporcionar a autoatualização do indivíduo com relação a suas potencialidades e tomar decisões mais autênticas, que realmente se conectem com seu eu essencial.

Segundo Carl Rogers, em seu livro “Tornar-se pessoa”, “o indivíduo tem dentro de si amplos recursos para autocompreensão, para alterar seu autoconceito, suas atitudes e seu comportamento autodirigido”.

Nesse sentido, o indivíduo pode retomar a confiança de tomar as rédeas de sua vida.


Aceitação Positiva Incondicional

Esse princípio basilar está apoiado na ideia principal da abordagem centrada na pessoa que é a Tendência Atualizante. A aceitação positiva incondicional consiste em aceitar a essência da pessoa da maneira que ela é. Ou seja, é a aceitação da personalidade do indivíduo em sua forma completa, sem expressar qualquer juízo de valor ou críticas.

Ainda, aceitar a pessoa como ela é deve ser recebido com afeto positivo pelo simples fato da pessoa existir. Os outros ao redor devem deixar de colocar pressão para que ela atenda suas expectativas, para que seja isso ou aquilo.
Empatia

A empatia está em voga atualmente, mas pode ser que muito do que se fala sobre empatia não é praticado, ou pode ser mesmo incorreto. Não se trata a empatia de se colocar no lugar do outro. Essa conceituação é errada, porque é impraticável se colocar no lugar do outro, não se consegue de fato simular como o outro se sente e enxerga determinada situação.

Dessa forma, a empatia é na verdade estar verdadeiramente disponível para o outro. É buscar se aproximar da visão da outra pessoa, sem a pretensão de se colocar no lugar dela.

Para isso, é imprescindível ter em mente que a empatia requer que a pessoa esteja disponível internamente para se distanciar dos seus princípios e valores. Esse exercício possibilitará que ela possa melhor compreender o outro, sob a própria perspectiva dele.

Nesse sentido, vai se estar mais distante de julgamentos pessoais e, mesmo compreender os motivos, os medos e os sentimentos do outro. Isso possibilita também que a ajuda que se oferece para ele não seja direcionada pelas crenças, princípios e valores da pessoa que oferece essa ajuda.


Congruência

A congruência é a assimilação coerente que a pessoa tem das suas atitudes com a sua personalidade. Nesse sentido, espera-se que o indivíduo seja o mais autêntico possível nas suas relações com os outros.

Para isso, é necessário que a pessoa aceite e compreenda seus sentimentos, experiências e ações de maneira genuína.

A congruência inicia um processo na pessoa para que ela passe a se aceitar, ao passo que possa se tornar a pessoa que deseja ser. É importante que nesse processo ela tenha em mente que as metas devem ser adaptáveis à realidade da sua própria personalidade. É preciso também ser mais flexível com sua própria essência e também ser mais tolerável com a essência dos outros.

Vale lembrar que a abordagem centrada na pessoa deve iniciar, não só a aceitação de si próprio, mas também dos outros.

O modelo que tratamos aqui, da abordagem centrada na pessoa, procura desenvolver o potencial natural que o indivíduo possui para o crescimento e para a saúde, através das experiências que esse indivíduo tiver. A partir do desenvolvimento de relações empáticas, ele estará em um contato maior com sua verdadeira essência, que possibilita uma vida mais congruente com a realidade.






CARL ROGERS (1) – TENDÊNCIAS FORMATIVA E ATUALIZADORA na  ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA








CARL ROGERS (2) – O SELF E A AUTORREALIZAÇÃO na ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA



Este texto foi construído em função da comemoração ao centenário do trabalho ALGUNS TIPOS DE CARÁTER
ENCONTRADOS NO TRABALHO PSICANALÍTICO, de S. Freud. Assim, a Febrapsi solicitou
que alguns profissionais escrevessem textos dedicados a cada um dos três tipos de
caráter descritos no trabalho de Freud, sendo este fala sobre CRIMINOSOS EM CONSEQUÊNCIA DE UM SENTIMENTO
DE CULPA, texto feito pelo Médico, Psiquiatra e Psicanalista Ignacio A. Paim Filho.




Criminosos em Consequência de um Sentimento de Culpa ~ Uma Questão Contemporânea?

Em 1916, ainda, sob as ressonâncias da primeira guerra – o homem matando
o homem – Freud vai escrever uma trilogia, Alguns Tipos de Caráter Encontrados no
Trabalho analítico. Entre eles encontra-se o ensaio, que da titulo a esse texto.
Ensaio breve de apenas duas paginas. Entretanto, traz para reflexão o conceito
paradigmático da psicanalise: o complexo de Édipo, fazendo a interlocução entre o
individual e o coletivo. Nesse sentido, recorda que nos constituímos como sujeito e
um ser da cultura, a partir da interdição – função paterna – das duas grandes
intenções criminosas: matar o pai e ter relações sexuais com a mãe.

Esses desejos universais seguem vigente na vida psíquica, sepultados nas
profundezas da alma, e desde esse lugar influenciam o modo de ser de cada um de
nós. Com essa visão em mente, Freud pergunta-se, pensando das pequenas
transgressões da vida cotidiana ao crime propriamente dito, o porquê destes? Suas
cogitações direcionam-se no sentido inverso do pensamento vigente – a culpa
como consequência do ato – para afirmar que essa é movedora desse agir. Culpa
muitas vezes vivida, mas, não sentida. Tal assertiva referenda a tese do pecado
original, todos somos pecadores. Nesse contexto o criminoso, por sua precária
constituição psíquica, nos possibilita pensar na força da destrutividade humana de
maneira mais explicita. Não esqueçamos, Freud (1913) sustenta a tese da presença
de sentimento idênticos na vítima e no carrasco: o que varia são suas intensidades.
Com essa proposição pretende lançar uma luz na psicologia do crime.
Assim sendo, o castigo há de ser executado.

 Resumidamente, podemos dizer:
a culpa – com a angustia decorrente – por ter desejado em fantasia inconsciente,
matar o pai e casar com a mãe, fragilmente metabolizada pela psique, determina
que esses sujeitos realizem o ato criminoso. Ato esse que dá um sentido consciente
a angustia culposa – paradoxalmente, produzindo alivio – abre as portas para o
acontecer da punição. Com isso feito, o cenário para o desfecho da tragédia edípica.

"Dez práticas questionáveis" utilizadas com frequência muito acima do desejável por pesquisadores em psicologia.


O texto a seguir foi retirado do capítulo: Nada é perfeito: o lado obscuro da ciência, do livro Ciência e pseudociência – escrito pelo Doutor em Psicologia e professor de Psicologia Social na Universidade de Brasília, Ronaldo Pilati.

Sua área de interesse é a Cognição Social, com foco em racionalidade e irracionalidade humana. Realiza pesquisas científicas sobre diversos temas, como moralidade, comportamento pró-social, desonestidade e influência da cultura no comportamento. Possui interesse especial em como as pessoas compreendem e acreditam em explicações sobre o mundo que as rodeia.



Leslie John, George Loewenstein e Drazen Prelec (2012) descreveram em um artigo "Dez práticas questionáveis" utilizadas com frequência muito acima do desejável por pesquisadores em psicologia.


São elas: 

  1. Não relatar todas as formas de medir as variáveis da pesquisa; 
  2. Aumentar a coleta de dados a partir de análises intermediárias, sem alcançar o número inicialmente planejado;
  3. Deixar de relatar todas as condições experimentais de um estudo, informando apenas aquelas que “deram certo”;
  4. Parar de coletar dados porque o resultado que se procurava foi encontrado;
  5. Arredondar o valor de probabilidade para favorecer o resultado que se esperava no estudo;
  6. Relatar seletivamente os estudos que “funcionaram”, deixando de relatar aqueles que “não funcionaram”;
  7. Excluir dados de forma a fazer com que os resultados deem certo;
  8. Relatar resultados inesperados como se fossem esperados desde o início da pesquisa;
  9. Defender que resultados não são afetados por fatores demográficos quando, na verdade, não se tem certeza disso; e 
  10. Falsificar dados.



Segundo os autores, essas estratégias questionáveis são frequentemente utilizadas por dois mil pesquisadores dos EUA que responderam a um questionário em que as práticas foram avaliadas de forma indireta. No questionário, perguntou-se ao participante sobre o uso que seus colegas faziam das práticas, bem como se o participante já havia realizado uma delas em algum momento. Dessa forma, foi possível fazer uma comparação para se estimar a prevalência das práticas, bem como não levantar suspeitas nos participantes (quem diria que faz uso de práticas questionáveis abertamente?). Em algumas delas, mais de 60% relataram tê-las utilizado em algum momento e, em outras, como é o caso de falsificação de dados, menos de 2% disseram tê-lo feito.


Ainda que não seja a regra, casos específicos são importantes para demonstrar o ponto aqui. Há alguns anos, Diederik Stapel, um psicólogo social holandês, ficou internacionalmente famoso porque foi descoberto que ele era um fraudador contumaz de dados de pesquisa. Em 2011, após uma denúncia de ex-alunos de doutorado, foi constituído um comitê na Universidade de Tilburg (instituição em que Stapel trabalhava na época) para avaliar se ele havia tido má conduta ética em atividades de pesquisa. Após meses de investigação, o próprio Stapel admitiu ter inventado dados em dezenas de artigos científicos publicados em diversas revistas, entre elas a Science e o Journal of Personality and Social Psychology. Os periódicos se apressaram em iniciar a despublicação 14 desses trabalhos. Ele foi demitido da universidade a qual era ligado e, basicamente, viu encerrada sua carreira científica. Tempos mais tarde, o próprio Stapel publicou um livro tentando justificar o injustificável. Em formato de e-book, 15 ele apresentou seus motivos, bem como as estratégias que utilizava para criar os dados de suas pesquisas.


O que aconteceu com esse psicólogo social é um triste exemplo de como a artimanha e o comportamento antiético também estão presentes na ciência. Ainda que existam mecanismos de controle, as pessoas desenvolvem formas de burlá-los e só ficamos sabendo o que aconteceu mais tarde, quando o sistema consegue identificar a fraude e o fraudador. O caso de Stapel ainda ganhou mais notoriedade porque ele desenvolveu toda uma carreira apresentando pesquisas sobre fenômenos e efeitos contrários à nossa intuição (i.e., contraintutivos), o que lhe rendeu notoriedade e muitas citações de seus trabalhos. Na verdade, ele percebeu que tais temas eram muito valorizados pelos editores das revistas científicas e a criação de dados que demonstravam tais fenômenos aumentava as chances de seus manuscritos serem bem avaliados para publicação durante o processo de arbitragem. Ele, portanto, descobriu um filão e fez uso dele em benefício próprio, fabricando dados integralmente. É uma história lamentável, mas fundamental para lembrarmos sempre que oportunistas estão presentes também no meio científico.




Zygmunt Bauman: Retrotopia ou os retrocessos do nosso tempo


Enquanto o mundo lamenta um ano sem Zygmunt Bauman, conhecemos as ideias de sua última obra, "Retrotopia", em que a nostalgia é mostrada como um mecanismo de defesa contemporâneo.

Há 20 ou 30 anos, não faltava quem assumisse que, em 2017, nos alimentaríamos de pílulas coloridas, que iríamos de férias de Verão até a Lua, que o crescimento econômico seria ilimitado, os recursos infinitos e que as desigualdades sociais se atenuariam.
Existia crença no futuro. Os traumas do fascismo e o desacreditar do comunismo, depois da queda do muro de Berlim, faziam acreditar que os modelos políticos e socioeconômicos vigentes poderiam ser melhorados e que a tecnologia nos salvaguardaria.
A partir da década de 1990, no campo cultural, que tantas vezes é reflexo e profecia do mundo, começou a perceber-se que entráramos em plena era dos “re” (reformulações, remisturas, reciclagens, revivalismos, regressos, recuperações, remakes, reedições, retrospectivas), vislumbrando-se uma certa paralisia, como se a única opção fosse voltar melancolicamente ao passado, mas ainda assim a fé no progresso parecia imparável.

Na última década, esse alento se foi. Filhos começaram a duvidar de que a sua vida seria melhor do que a dos pais. O sentimento de que as elites políticas eram incapazes de gerar mudanças foi crescendo e a desconfiança em relação ao sistema político acentuou-se. O desemprego, a precariedade e as desigualdades cresceram. Até a tecnologia começou a ser olhada com suspeita com o receio da substituição do trabalho humano por máquinas.

A descrença num futuro melhor intensificou-se com o terrorismo, a crise financeira e a estagnação econômica, impondo-se uma atmosfera de incerteza e impotência, como se preservar o mínimo (emprego, educação, saúde) fosse o máximo possível. As ferramentas que, no passado, se revelaram eficazes para lidar com os desafios da vida individual e coletiva, foram desacreditadas.
Hoje, parece que projetamos os medos para o futuro e falamos com saudade do passado – não só o recente, antes do irromper da crise financeira, mas principalmente do mais longínquo. Em alturas de desordem, quando não parece existir confiança num rumo, podem traçar-se utopias, esse impulso para transformar o presente através do vislumbre de um outro futuro. Mas, a desilusão e o temor pelo que poderá vir aí podem levar-nos a tentar regressar a um passado seletivo, logo, idealizado, ou a algo que foi abandonado lá atrás e que se julga poder agora reparar.

Em parte é isto que é refletido em Retrotopia, obra póstuma de Zygmunt Bauman, que faleceu no dia 09 de janeiro de 2017, há exatos 365 dias.

É como se Bauman nos dissesse que uma das consequências do fim do pensamento utópico, com todos os seus riscos, mas apesar de tudo baseado numa vontade transformadora e na confiança, tivesse dado lugar agora à retrotopia, assente na desconfiança e num regresso a um passado mitificado, que nunca existiu realmente, do qual se selecionam apenas algumas partes, numa replicação mais imaginária do que real.
 
Deslocamos as esperanças de uma sociedade melhor num futuro que ainda o não foi para um passado que não foi da forma como tentamos fazer crer, num regresso à caverna, à tribo, ao que julgamos conhecer.

O objetivo já não é conseguir uma sociedade melhor, porque consegui-lo parece uma esperança vazia, mas apenas melhorar a posição individual dentro da mesma. Vive-se numa urgência sem fim e há quem desista de pensar ou construir mundo, satisfeitos que o mundo lhes aconteça. Mas, se a grande maioria deixou de pensar o futuro, não o fez por opção, mas sim porque não possuem um horizonte. Estão vivos hoje, têm emprego e comida para os filhos, mas não sabem se o terão amanhã. A incerteza não lhes permite ver o futuro para além do imediato.

Vive-se numa espécie de eterno presente, com mais perguntas do que respostas, mais problemas do que soluções. Mas regressar ilusoriamente ao passado, seja ele qual for, não parece solução para quebrar o enguiço. É necessário encontrar outras formas de viver o tempo que temos para viver, valorizando a memória, mas sem ficar preso à história, não temendo paradoxos ou o que não se conhece por inteiro, porque é nesse processo que o desejável pode ser alcançado.

Numa das últimas entrevistas, perguntaram a Bauman se este era otimista em relação ao futuro. Respondeu que era pessimista no imediato e otimista no longo prazo, refletindo que a humanidade já havia passado por encruzilhadas que tinham sido superadas. É isso. Mas, até que a confiança no futuro seja uma reposta, é inegável que muitas vidas continuarão com um ponto de interrogação.
 
Retrotopia é o último livro de Bauman, em que o grande pensador da modernidade líquida, falecido em janeiro de 2017, disseca o fenômeno atual de busca por um mundo melhor não mais no futuro a ser construído, mas em ideias e ideais do passado, como nacionalismos exacerbados e fechamento de fronteiras.

Assim, a nostalgia se transformou em um mecanismo de defesa nos últimos tempos. Grandes planos do passado - abandonados, mas não mortos - estão sendo ressuscitados e reabilitados como possíveis caminhos para um mundo melhor.

Assista à entrevista exclusiva com Zygmunt Bauman, concedida a Fernando Schuler e Mário Mazzilli, na Inglaterra. Democracia, laços sociais, comunidade, rede, pós-modernidade, dentre outros tópicos analisados por uma das grandes mentes da contemporaneidade.


A MENTE do endividado!

Estar endividado te deixa doente. O que fazer sobre isso?


O endividamento pode fazer com que o seu cérebro te sabote na hora de lidar com a situação. Descubra por que isso acontece e veja dicas práticas para começar a sair do vermelho.Criado em 06 nov 22 Atualizado em 07 nov 22 Sair das Dívidas


Imagine a seguinte situação: você acabou de acordar e todo o dinheiro que tinha na conta sumiu. Não sobrou nada, nem para pagar os boletos. Só que ainda está no meio do mês e você precisa do dinheiro para continuar vivendo. O que você faz? Pede socorro para algum parente? Apela pro cheque especial? Usa o cartão de crédito? Faz um empréstimo?

Essa situação hipotética na verdade tem um belo pé na realidade. É que hoje, um em cada quatro brasileiros realmente não consegue pagar todas as contas do mês, segundo uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria. É como se o dinheiro tivesse, de fato, desaparecido.

O levantamento também mostra que 34% dos entrevistados atrasam contas básicas como água ou luz e 16% já precisaram vender algum bem para quitar dívidas. Na hora do aperto, muitas pessoas buscam pelas alternativas citadas anteriormente – e é aí que a bola de neve financeira começa.

Os motivos que levam uma pessoa a se endividar são muitos, mas qual será o impacto disso sobre a saúde mental e física de uma pessoa? Descubra a seguir.


Endividamento e superendividamento: qual é a diferença?

Antes de tudo, é preciso entender dois conceitos importantes: qual é a diferença entre estar endividado e estar superendividado?

Se você usa cartão de crédito, por exemplo, você está endividado, porque o seu limite é uma espécie de empréstimo curto que deve ser pago, sem falta, na data de vencimento da fatura.

Isso, por si só, não é um problema. Problema mesmo é o tal do efeito “bola de neve”, que costuma nascer com o uso do cartão quando uma pessoa perde as rédeas do controle financeiro e gasta mais do que consegue pagar.

Geralmente funciona assim: você faz várias compras parceladas, pega mais de um cartão de crédito, não consegue pagar nenhum deles, e vai vendo os juros correrem soltos até dever mais do que você realmente gastou no começo de tudo.

Na hora em que não sobra mais nenhum dinheiro para as despesas básicas do dia a dia (como aluguel e mercado), e tudo o que você ganha vai direto para pagar dívidas, acontece o que chamamos de superendividamento.

Como vivem as pessoas superendividadas?

Pelo menos 80% delas está com a saúde mental comprometida de alguma forma, segundo um estudo conduzido pela psicóloga Tatiana Filomensky, coordenadora do tratamento para compradores compulsivos no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Em 2011, a psicóloga foi convidada pelo Procon a participar de um projeto piloto para ajudar pessoas superendividadas a lidar com as dívidas. Na época, ouvindo as dores de mais de 300 voluntários, ela notou que o superendividamento gera uma bola de neve emocional que acaba afetando a saúde física das pessoas.


“Estar endividado é um quadro que vai além das questões econômicas. Você dorme pouco, você dorme preocupado, você passa a ter quadros de insônia ou perda de sono. Aí vem junto problemas com concentração, desânimo, perda de vontade de fazer as coisas, uma preocupação excessiva e um quadro de ansiedade, porque você não sabe como vai fazer para pagar a conta do mês seguinte”, afirma Tatiana Filomensky.

Ainda que o endividamento afete as relações sociais, é sempre muito difícil que uma pessoa endividada converse com amigos ou familiares sobre o problema. Dá vergonha, gera culpa… Às vezes nem as pessoas mais próximas de quem está endividado sabem que ele está lidando com isso, como demonstra um estudo da Serasa, feito em parceria com a Opinion Box em 2021.

Eles mapearam o perfil de brasileiros endividados em diferentes pontos do país, para saber as consequências disso no emocional. O estudo mostrou que 88% sentiam vergonha por ter dívidas e contas atrasadas. 85% sofrem com insônia ou dificuldade para dormir causadas pela preocupação com as dívidas, enquanto que mais de 60% dos entrevistados afirmaram que as dívidas impactaram o relacionamento com familiares, amigos ou com o parceiro.

Se falar de dinheiro ainda é tabu, falar de dívida é ainda pior.

Quais são os efeitos do endividamento no corpo?

A psicóloga Tatiana Filomensky explica que o endividamento leva as pessoas a viverem preocupadas, tensas, angustiadas e viver dessa forma por um tempo prolongado gera um quadro importante de estresse. Isso pode provocar a baixa da serotonina, que é um neurotransmissor importante que regula o humor, o sono e a disposição.

O sistema de recompensas do cérebro também fica muito comprometido nestes casos. Geralmente, quem está endividado e busca um plano para sair do vermelho precisa cortar alguns excessos e viver uma vida mais regrada para dar conta de pagar o que deve. Fazendo uma analogia, é como manter uma dieta super restritiva quando se quer emagrecer.

Só que comprar, assim como comer, é algo extremamente prazeroso. Seja comprar uma coisa para você ou para alguém que você ama, por exemplo. Isso acontece porque, na hora da compra, outro neurotransmissor importante entra em cena: a dopamina, que é responsável por essa sensação de bem-estar que vem quando a gente faz alguma coisa que nos deixa muito feliz. Isso ajuda a explicar porque é tão difícil manter a rédea das finanças tão curta.

Outros estudos provam que o cérebro não é o único impactado: em 2013, a Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, constatou que as dívidas estavam relacionadas com o aumento da pressão arterial em um grupo de jovens de 24 a 32 anos. Os resultados também indicaram que as pessoas mais endividadas apresentavam um nível de estresse quase 11% maior do que a média.


No Brasil, 78% das pessoas consideram que a incerteza financeira é a principal causa de preocupação que elas têm na vida, segundo pesquisa feita pela International Stress Management Association. Na outra ponta, pessoas estressadas estão mais propensas a ter seu sistema imunológico afetado e sofrerem com problemas cardíacos. Ou seja: tudo está conectado.

Qual é o papel do cérebro nessa história?

O cérebro é um órgão incrível que aprende rápido demais – mas nem tudo o que ele aprende faz bem para a sua saúde financeira. A psicologia econômica é um campo de estudos que se dedica a analisar os atalhos que o cérebro pode seguir de forma involuntária, seja pro bem ou pro mal do seu bolso.

Quem explica um pouco dessa ciência é a economista Neide Ayoub, da Escola de Proteção e Defesa do Consumidor do Procon. Ela também faz palestras gratuitas sobre psicologia econômica. Neide diz que nós temos dois modos de funcionamento mental: um rápido, automático e outro reflexivo e ponderado.


“É óbvio que se eu for tomar um empréstimo, eu preciso usar o segundo sistema e considerar N aspectos daquela decisão. Só que o mercado e os bancos fazem o impossível para que você decida pelo crédito usando o modo automático”, diz Neide Ayoub.

Ou seja: existem maquiagens que o mercado, o marketing e sistema financeiro tradicional fazem para enganar o seu cérebro na hora de tomar uma decisão importante. Quando uma pessoa não percebe essas armadilhas, fica fácil cair nelas. Existem também alguns vieses cognitivos que atuam nesse sentido. Neide Ayoub nos explicou dois deles. O primeiro é a aversão à perda.

Por exemplo: já reparou que quando um vendedor percebe que você está com medo de se arrepender de uma compra, ele procura substituir esse medo pelo medo de você perder a oportunidade de comprar. Argumentos como “essa é a última peça” ou “hoje é o último dia dessa promoção” são estratégias para criar um senso de urgência sobre a compra que te impede de raciocinar com clareza.

O segundo viés é a crença na força de vontade futura, que é tipo acreditar no seu eu do amanhã. Neide explica que esse viés leva a uma tendência de pensar que, milagrosamente, você terá mais disciplina amanhã. Logo, esse viés cognitivo leva muitas pessoas a cometerem excessos contando que, no futuro, elas irão compensar – algo que, neste caso, seria equivalente a gastar menos amanhã.

Também é comum que uma pessoa endividada (ou mesmo quem não tem tanto controle sobre a própria vida financeira) faça contas mentais ao invés de colocar tudo no papel. Seja para calcular o tamanho de uma dívida ou os prós e contras de um empréstimo.

Como sair do ciclo do endividamento?

Existem alguns caminhos que você pode seguir caso esteja em uma situação de endividamento. Veja a seguir:
1. Fale sobre o problema

Um dos passos mais importantes é falar sobre o problema e se livrar da culpa. É difícil, mas ninguém deveria sentir vergonha por não ter a vida financeira organizada. A economista Neide Ayoub conta que as pessoas superendividadas costumam sentir vergonha e não percebem que, muitas vezes, o crédito também é concedido a ela de uma forma irresponsável, ou seja, é uma responsabilidade compartilhada.
2. Não sinta vergonha

Outro ponto importante, considerando sua saúde mental, é pensar que ninguém se endivida de propósito. Se fosse um amigo seu te contando que está passando por um problema financeiro, o que você diria para ele? Será que você seria tão duro com ele quanto é com você mesmo?
3. Faça um cálculo para saber o tamanho da dívida

Depois de cuidar destas questões com atenção, é hora de traçar um plano de recuperação. Neste momento, papel, caneta e calculadora serão grandes aliadas. Esqueça as contas mentais, pois o cérebro tem a tendência de ser extremamente otimista. As contas mentais sempre fecham, mas a calculadora não vai te enganar.
4. Conheça seus credores e abra negociações com eles

Quando você já souber o quanto deve, o planejamento entra em cena. Às vezes, é mais interessante guardar dinheiro por um tempo e pagar tudo à vista do que fazer um parcelamento, por exemplo. Não fique ansioso ou ansiosa querendo quitar tudo de uma vez só para tirar a restrição do seu nome. Isso pode te levar a fazer más negociações ou cair em um empréstimo com mais juros do que os que já estão na sua mão.


Quem quer negociar dívidas ou adiantar parcelas de empréstimos pode aproveitar o décimo terceiro salário. Fique atento também aos feirões de desconto e oportunidades que aparecem. No fim de ano costumam aparecer alguns deles. Preste atenção no aplicativo ou nos emails que as instituições financeiras costumam enviar sobre isso, assim você pode conseguir quitar dívidas e se livrar de uma vez dessas preocupações.
5. Cuide da sua saúde

Por último, mas não menos importante: lembre-se sempre de que a saúde financeira do seu bolso anda lado a lado com a sua saúde mental. Você só tem a ganhar quando lida com as dívidas ao mesmo tempo em que também passa por um processo terapêutico, se isso for possível.

Dito tudo isso: que tal um plano para começar o próximo ano saindo do vermelho?

Este conteúdo faz parte da missão do Nubank de devolver às pessoas o controle sobre a sua vida financeira. Ainda não conhece o Nubank? Saiba mais sobre nossos produtos e a nossa história.

TRANSTORNO DE ESTRESSE ELEITORAL! Como se proteger de tristeza, raiva e medo após eleição?

Escrito por André Biernath Pela BBC News Brasil direto de Londres, em 3 outubro 2022 e Atualizado 31 outubro 2022



Debates acalorados, ânimos acirrados, opiniões opostas… A eleição presidencial foi para muita gente fonte importante de estresse — que, por sua vez, é um dos fatores de risco por trás de transtornos mais sérios, como ansiedade e depressão.

De acordo com psiquiatras, a probabilidade de desenvolver um quadro desses é ainda maior quando a disputa fica polarizada demais e pessoas do outro lado do espectro político passam a ser vistas como inimigas, que precisam ser derrotadas a qualquer custo.

Além de fazer mal à democracia, esse tipo de pensamento representa uma ameaça à própria saúde mental das pessoas que nutrem sentimentos tão intensos, explicam os médicos.

A boa notícia é que existem estratégias que ajudam a evitar uma piora da situação e a prevenir danos ao bem-estar, como fazer autoavaliação do comportamento, desligar das redes sociais e buscar uma avaliação com profissionais da saúde.

Origem das preocupações

A Associação Americana de Psicologia (APA) fez em 2020 um levantamento para entender o impacto das eleições presidenciais dos EUA no dia a dia das pessoas.

O estudo revelou que 68% dos participantes encaravam a disputa política entre o democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump como uma fonte significativa de estresse.

"O ano de 2020 foi diferente de tudo que já vivemos. Não apenas lidamos com uma pandemia que matou centenas de milhares de americanos, como observamos um aumento da divisão e da hostilidade", analisou à época o psicólogo Arthur Evans Junior, presidente da APA.

Já foi identificado em uma investigação liderada pela Universidade da Califórnia em San Francisco (na tradução livre: Angústia eleitoral? A saúde mental do eleitor sofre quando o candidato perde!) Ou seja, o estresse e depressão aumentaram em redutos de Clinton após a eleição de 2016 (mostra estudo da UCSF-Duke, nos EUA) e descobriu que estar do lado derrotado do pleito impactava mais na saúde mental.

Ao analisar as informações de meio milhão de americanos, os acadêmicos notaram que os moradores de Estados cuja maioria votou na democrata Hillary Clinton, que perdeu a disputa, relataram mais transtornos um mês após as eleições de 2016.

De acordo com os cálculos, isso se traduziu em 54,6 milhões de dias a mais de estresse e depressão para os 109,2 milhões de adultos que vivem nos Estados que preferiram Clinton.

"Os profissionais de saúde devem considerar que as eleições podem ter um efeito, ao menos transitório, na piora da saúde mental", constatou a médica Renee Hsia, uma das responsáveis pelo trabalho.

O assunto ganhou uma repercussão tão grande em terras americanas que alguns profissionais de saúde desenvolveram até um termo para descrevê-la: transtorno de estresse eleitoral.

Embora não seja uma enfermidade oficialmente aceita nos manuais de psiquiatria, alguns acadêmicos a descrevem como "uma ansiedade generalizada que foca na eleição, mas não é causada apenas por ela".

Um dos criadores do conceito é o terapeuta Steven Stosny. Ele aponta que os principais sintomas são dificuldades para dormir, dor de cabeça, problemas estomacais e aumento da irritabilidade ou da ansiedade.

O ingrediente por trás de tudo

No final das contas, o que esse rol de experimentos americanos revela é o papel de destaque do estresse no comportamento e nas emoções.

O médico Daniel Martins de Barros, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, explica que o estresse é um conjunto de reações do nosso organismo quando estamos diante de situações novas, que requerem algum tipo de adaptação e enfrentamento.

"Essas mudanças geram uma série de reações no nosso corpo para deixar a atenção afiada, o raciocínio veloz, os músculos tensos e o coração acelerado", diz.

A princípio, esse conjunto de alterações é bem-vindo. Foi esse mecanismo que permitiu à nossa espécie identificar os perigos e responder de forma rápida — geralmente fugindo ou lutando.

"A questão é quando esse estresse se transforma em algo crônico", diferencia o psiquiatra.

"Uma demanda constante por mudanças e adaptações leva a desgastes no organismo e aumenta o risco do desenvolvimento de quadros como a ansiedade e a depressão", acrescenta.

O estresse é uma reação natural e esperada em situações de mudança. O problema é quando ele dura por muito tempo!

A situação no Brasil

Não é segredo para ninguém que as eleições no país foram polarizadas - a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em segundo turno, contra Jair Bolsonaro, por 50,9% a 49,1%, foi a mais apertada desde a redemocratização do país - e geraram disputas muito intensas. Mas será que é possível medir o estresse da população neste momento?

Embora não existam muitas pesquisas publicadas sobre o tema no Brasil, Barros observa que a corrida presidencial de 2022 parece diferente do que aconteceu há quatro anos.

"Me parece que a maioria das pessoas aprendeu a lição em 2018 e criou mecanismos para não entrar em conflitos ou brigas. Entre amigos e familiares com visões opostas, parece existir uma espécie de pacto de silêncio sobre o tema", avalia.

"Mas é claro que não podemos ignorar os episódios de violência entre adversários políticos registrados nessas últimas semanas", complementa.

Já o psiquiatra Lucas Spanemberg, do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, entende que a participação política pode ter dois lados.

"É algo paradoxal, mas engajar-se numa campanha é bom ao trazer uma sensação de pertencimento, de participação cívica, de protagonismo, de influência positiva no futuro do país", lista.

"O problema é quando isso passa do ponto e gera uma tentação autoritária, em que a discussão se centra apenas no ataque ao adversário por meio da raiva, do ódio e da rejeição", compara.

"Do ponto de vista da saúde mental, isso é negativo e pode trazer ansiedades."

O papel das redes sociais

Os médicos ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que o acirramento dos ânimos se deve em parte às mídias sociais.

Barros aponta que temos uma tendência natural de favorecer as pessoas que reconhecemos como semelhantes — e somos mais críticos e duros com quem é de fora do nosso grupo social.

"Nós combatemos essa tendência com mecanismos civilizatórios, como a justiça social e a transparência".

"A ideia de defender um ponto de vista e criar divergências faz parte da natureza humana. Mas os algoritmos das redes sociais favorecem o que a gente chama de viés de confirmação", ensina Spanemberg, que também trabalha no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Em termos práticos, essas plataformas são configuradas de modo a mostrar apenas conteúdos que se encaixam naquilo que a gente acredita.

Em longo prazo, isso cria uma falsa sensação de que todo mundo pensa igual — opiniões divergentes são tão raras nessas redes que acabam ignoradas, ou atacadas com toda a força.

"Ficamos, ao mesmo tempo, com a sensação de que somos validados o tempo todo, e com uma dificuldade de transitar com o diferente e o contraditório", resume o psiquiatra.

Redes sociais reforçam a ideia de que nossas ideias estão sempre corretas

O que acontece com quem ganha e quem perde

O psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, destaca que a atitude após uma vitória ou uma derrota também influencia não apenas no futuro político do país, mas no acirramento de ânimos nas relações pessoais.

"Na história brasileira, o lado vitorioso costuma usar o sarcasmo e a humilhação como ferramentas diante do derrotado."

E isso, por sua vez, gera uma reação de vingança, raiva e rancor entre quem perdeu.

"Me parece que ainda precisamos aprender a ganhar ou perder durante a disputa política", conta.

"Outra falha que temos é a noção de que os líderes são infalíveis, não podem errar ou voltar atrás. Isso cria figuras de autoridade que são inflexíveis, o que se reflete no comportamento da sociedade", completa.

Como evitar esses males

Mas será que existe um caminho para lidar com um problema desse tamanho e fugir dos sentimentos de raiva, tristeza ou medo durante e após as eleições?

Há pelo menos sete recomendações básicas que ajudam a refletir sobre as emoções e o comportamento — e como eles impactam a saúde mental.

1: OBSERVE-SE: Tudo começa com um processo de autoavaliação. Como você reage quando uma pessoa diz algo que vai contra o que acredita? Isso te causa um estresse muito grande? Uma conversa sobre política gera um mal-estar ou uma sensação ruim em você ou nos demais participantes?

"Há algo de errado quando as suas posições políticas limitam as conversas dentro da própria família, ou os grupos de WhatsApp deixaram de ser um lugar de confraternização para virar um terreno de disputa política", exemplifica Spanemberg.

Vale também checar se esse comportamento impede você de fazer qualquer atividade profissional e de lazer ou prejudica os relacionamentos.

2: TESTE SUA ACERTIVIDADE PRESUMIDA (ou seja: duvide de si!) Em segundo lugar, os médicos orientam ficar atento se você acha que está sempre correto em tudo.

"Ninguém está certo em 100% das vezes", lembra Barros.

"Pense se você já discordou alguma vez do grupo com o qual interage mais. Se isso nunca aconteceu, você pode estar sendo manipulado", complementa.

3: PRATIQUE DIALÉTICA na hora do diálogo! O terceiro ponto é exercitar o consenso. Ao conversar com pessoas que têm visões antagônicas, tente encontrar pontos em comum que todos podem concordar.

Isso ajuda a criar laços e mostrar que, mesmo quem tem visões diferentes sobre vários assuntos, pode estar de acordo em alguns pontos, apontam os pesquisadores.

Estabelecer o diálogo e respeitar posições antagônicas são estratégias para fugir de conflitos desnecessários

4: NÃO SE PERMITA SOFRER POR ANTECEDÊNCIA! A dica número quatro é tentar não antecipar quais serão as práticas políticas do  próximo governo a partir de 2023.

Uma pesquisa feita pela Universidade do Estado da Carolina do Norte, nos EUA, revelou que pessoas que antecipam cenários sociais e econômicos e acham que vão se estressar com a política do próximo governante geralmente estão certas.

De fato, elas costumam sofrer mais com o estresse, mesmo antes que as coisas realmente aconteçam.

5: VIVA O PRESENTE E O ESPAÇO ONDE ESTA COM QUEM VOCÊ ESTA! Os psiquiatras também sugerem que as pessoas façam pausas nas redes sociais e nas notícias. Isso ajuda a tirar o foco da disputa eleitoral e abre espaço para outras atividades mais relaxantes, como fazer um exercício físico ou passear num parque.

6: RESPEITE SEU ALARME!! A sexta orientação é que as pessoas procurem ajuda profissional se sentirem que não estão melhorando. Passar por uma análise com o psicólogo ou com o psiquiatra ajuda a encontrar as fontes do estresse, da ansiedade ou da depressão — e permite escolher os melhores caminhos para tratar e resolver o transtorno.

7: LIDE (viva) COM A REALIDADE, E NÃO COM A IDEALIZAÇÃO! Por fim, Barros acredita que as pessoas se esqueceram de um aspecto importante das eleições. "O processo democrático envolve a continuidade ou a troca de governos, a depender da vontade da maioria dos cidadãos", diz.

A existência desses processos é algo saudável e fundamental não apenas para o funcionamento da democracia, mas também para o equilíbrio da nossa própria saúde mental, destaca.

Ele aponta que precisamos encarar a oposição ao governo da vez como parte do processo democrático — e não como um inimigo que deve ser eliminado.

Segundo o psiquiatra, lidar com pessoas que a gente não gosta faz parte do convívio em sociedade. E entender isso pode até ajudar a aliviar o estresse e a carga emocional que vêm junto com os debates e as propostas para melhorar o futuro do país.


Esse texto foi publicado originalmente em:

O que é a "LEITURA PROFUNDA" e por que ela faz bem para o cérebro




Redação da BBC News Mundo lá, em novembro 2021.



A pesquisa da neurocientista Maryanne Wolf aponta que "não há nada menos natural do que ler" para os seres humanos — mas isso não é de forma alguma ruim.

"A alfabetização é uma das maiores invenções da espécie humana", diz a especialista americana. Além de útil, é tão poderosa que transforma nossas mentes: "Ler literalmente muda o cérebro", diz ela.

O avanço da tecnologia e a proliferação das mídias digitais, contudo, têm modificado profundamente a forma como lemos.

Apesar de estarmos lendo mais palavras do que nunca — uma média estimada de cerca de 100 mil por dia —, a maioria vem em pequenas pílulas nas telas de celulares e computadores, e muita coisa é lida "por alto".

Essas mudanças de hábito têm preocupado cientistas, entre outros motivos, porque a transformação de novas informações em conhecimento consolidado nos circuitos cerebrais requer múltiplas conexões com habilidades de raciocínio abstrato que muitas vezes faltam na leitura "digital".

Ao contrário da linguagem oral, da visão ou da cognição, não existe uma programação genética nos humanos para aprender a ler.

Se uma criança, em qualquer parte do mundo, estiver em um ambiente em que as pessoas a seu redor conversam umas com as outras, sua linguagem será naturalmente ativada. O mesmo não acontece com a leitura, que implica a aquisição de um código simbólico completo, visual e verbal.

É uma invenção relativamente recente — "é uma piscadela em nosso relógio evolutivo: mal tem 6 mil anos", diz Wolf.

"Começou de forma simples, para marcar quantas taças de vinho ou ovelhas tínhamos. E, com o nascimento dos sistemas alfabéticos, passamos a ter um meio eficiente de armazenar e compartilhar conhecimento."

"Ler é um conjunto adquirido de habilidades que literalmente muda o cérebro", ressalta a neurocientista.

"Permite fazer novas conexões entre regiões visuais, regiões da linguagem, regiões de pensamento e emoção", completa.

Essa transformação "começa com cada novo leitor". "(A habilidade de ler) Não existe dentro de nossa cabeça. Cada pessoa que aprende a ler tem que criar um novo circuito em seu cérebro."

E isso abre portas para um novo mundo.

"A leitura traz três poderes mágicos: criatividade, inteligência e empatia", pontua Cressida Cowell, escritora de literatura infantil e autora da série Como Treinar Seu Dragão.

"Ler por prazer é um dos fatores-chave para o sucesso financeiro de uma criança na vida adulta. É mais provável que ela não acabe na prisão, que vote, que tenha casa própria…"

Além disso, "ler uma grande história é muito mais do que entretenimento", acrescenta a biblioterapeuta Ella Berthoud.

"A leitura, na verdade, tem muitos benefícios terapêuticos. Seu cérebro entra em um estado meditativo, um processo físico que retarda o batimento cardíaco, acalma e reduz a ansiedade", diz Berthoud.

Para ela, por exemplo, ler o romance Zorba, o Grego, de Níkos Kazantzákis, funciona como um remédio conta "claustrofobia, raiva e exaustão".

A arte de prescrever ficção para curar as doenças da vida, batizada de biblioterapia, foi reconhecida no Publisher's Illustrated Medical Dictionary, um dicionário médico ilustrado publicado nos Estados Unidos em 1941.

A prática remonta à Grécia Antiga, quando avisos eram afixados nas portas das bibliotecas para alertar os leitores de que estavam prestes a entrar em um local de cura da alma.

No século 19, psiquiatras e enfermeiras prescreveram todos os tipos de livros para seus pacientes, desde a Bíblia até literatura de viagem e textos em línguas antigas.

Vários estudos mais recentes, dos séculos 20 e 21, mostraram que a leitura aguça o pensamento analítico, o que nos permite aprimorar nossa capacidade de discernir padrões, uma ferramenta muito útil diante de comportamentos desconcertantes dos outros e de nós mesmos.

A ficção, em particular, pode transformar os leitores em pessoas mais socialmente habilidosas e empáticas. Os romances, por sua vez, podem informar e motivar, os contos confortam e ajudam a refletir, enquanto a leitura de poesia já demonstrou estimular partes do cérebro relacionadas à memória.

Muitos desses benefícios, no entanto, dependem de um estado conhecido como "leitura profunda".


Não é só o que lemos, a forma como lemos também é importante, dizem cientistas

Pensamento analítico

"Quando lemos em um nível superficial, estamos apenas obtendo a informação. Quando lemos profundamente, estamos usando muito mais do nosso córtex cerebral", explica Maryanne Wolf.

"Leitura profunda significa que fazemos analogias e inferências, o que nos permite sermos humanos verdadeiramente críticos, analíticos e empáticos."

Em seu livro Proust and the Squid: The Story and Science of the Reading Brain ("Proust e a Lula: a História e a Ciência por Trás do Cérebro que Lê", em tradução livre), a especialista em neurobiologia da leitura explica como, "a certa altura, quando uma criança vai da decodificação à leitura fluente, o caminho dos sinais através do cérebro muda".

"Em vez de percorrer um trajeto dorsal (...), a leitura passa a se deslocar por um caminho ventral, mais rápido e eficiente. Como o tempo depreendido e o gasto de energia cerebral são menores, um leitor fluente será capaz de integrar mais seus sentimentos e pensamentos à sua própria experiência", escreve.

"O segredo da leitura está no tempo que ela libera para que o cérebro possa ter pensamentos mais profundos do que antes."

Mas, enquanto o processo de aprender a ler muda nosso cérebro, o mesmo acontece com o que lemos e como lemos.




Tempos modernos


Há aqueles, contudo, que acreditam que as novas plataformas são parte da solução, e não do problema.

Para Chris Meade, autor que utiliza vários tipos de mídia para veicular seu trabalho, "pensamos no livro como a obra, mas o livro é apenas um mecanismo de entrega".

A narrativa transmídia é um tipo de história em que o enredo se desenrola por meio de múltiplas plataformas — aplicativos, livros digitais, games, quadrinhos, blogs — e na qual os consumidores podem assumir um papel ativo no processo de construção.

"As novas mídias estão dando voz a uma nova geração de escritores. Elas impedem que nos condicionemos a pensar que existe apenas um tipo de 'boa escrita' e permitem que as pessoas simplesmente compartilhem histórias e experiências", opina Natalie A. Carter, cofundadora do clube do livro Black Girls Book Club.

"Não importa o meio, é a história que importa", emenda Melissa Cummings-Quarry, também cofundadora do Black Girls Book Club.

"O romance está evoluindo. Há todo tipo de livro incrível sendo escrito especificamente para ser lido no celular", afirma Berthoud.

"O livro talvez passe a ilusão de que ele é tudo. Nunca foi, é uma forma de entrar em um processo de pensamento", diz Meade.

Ainda assim, os cientistas afirmam que a leitura digital pode ter um custo para o cérebro do leitor.

Para alguns, plataformas digitais não são problema, mas solução

Fragmentação

"Reunimos acadêmicos e cientistas de mais de 30 países para pesquisar o impacto das mídias digitais na leitura", afirma Anne Mangen, à frente da E-READ (Evolução da Leitura na Era da Digitalização), organização cujo objetivo é melhorar a compreensão científica das implicações da digitalização da cultura.

Faz parte do programa internacional da Cooperação Europeia em Ciência e Tecnologia (ou COST, sigla para European Cooperation in Science and Technology), que considera a leitura um "tema urgente".

Segundo o programa, "a pesquisa mostra que a quantidade de tempo gasto na leitura de textos longos está diminuindo e, devido à digitalização, a leitura está se tornando mais intermitente e fragmentada", algo que poderia "ter um impacto negativo nos aspectos cognitivos emocionais da leitura".

"Descobrimos que existe o que se chama de inferioridade na tela", destaca Anne Mangen.

"Há muitas coisas que podem ser lidas igualmente bem no smartphone, como as notícias mais curtas, mas, quando se trata de algo que é cognitiva ou emocionalmente desafiador, ler em uma tela leva a uma compreensão de leitura pior do que ler no papel", diz ela.

Maryanne Wolf concorda, dizendo que "a realidade é que não é apenas o que ou o quanto lemos, mas como lemos que é realmente importante".

"O próprio volume [de informação disponível nas plataformas digitais] está tendo efeitos negativos porque, para absorver tanto, há uma propensão a se ler 'por alto'. O cérebro leitor tem um circuito plástico, que refletirá as características do meio em que se lê. As características do digital caminham para que sejam refletidas no circuito."

Em outras palavras, assim como ao aprender a ler da maneira tradicional o cérebro formata e registra os itinerários da razão e os caminhos para a emoção, ao aprender a ler da maneira como fazemos nas mídias digitais o cérebro traçará diferentes trajetórias e, se deixarmos a leitura profunda de lado, ele apagará as anteriores, caso tenham um dia existido.

"Se não treinarmos essas habilidades, podemos acabar perdendo a capacidade de entender conteúdos mais complexos e, talvez, de nos envolvermos e usarmos a imaginação", destaca Mangen.

Então, o que o futuro reserva para os livros e para o cérebro da leitura?

"A imaginação humana é uma coisa fantástica, somos muito flexíveis. Encontramos maneiras de fazer o que queremos com a tecnologia disponível", pontua Chris Meade.

Para Natalie Carter, o futuro trará "muito mais coleções de contos, e acho que veremos muito mais livros curtos".

Nesse sentido, Cressida Cowell diz já ter sentido a mudança: "Mudei a maneira como escrevo, porque o tempo de atenção das crianças diminuiu. Os livros têm capítulos curtos e são incrivelmente visuais, brilhantes, como doces".

Para a neurocientista Maryanne Wolf, "assim como as pessoas podem ser bilíngues e trilíngues, minha esperança é que desenvolvamos um cérebro 'biletrado'. Podemos nos disciplinar para escolher o meio que melhor se adapta ao que estamos lendo e, assim, não perder o dom extraordinário que a leitura deu à nossa espécie".

COLETÂNEA PARA APRESENTAR JUNG