BNDES, ‘caixa-preta’ e outras lendas...


A atuação do banco se revela imprescindível. Dificultar a sua operação representaria adiar a saída da crise.


Por Antonio Corrêa de Lacerda* para O Estado de S.Paulo16 de julho de 2019

Um dos mitos que seguem sendo disseminados é sobre a existência de uma suposta “caixa-preta”, que esconderia os dados sobre os desembolsos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Embora reiteradas vezes desmentida por vários ex-presidentes que passaram pelo banco e de manter em seu site expressiva transparência, essa “lenda urbana” continua sendo repetida. Na verdade, o episódio revela grande preconceito e total desconhecimento da forma de operação desse importante órgão de Estado para o Brasil.

É preciso ficar claro que todas as operações do banco precedem de avaliação criteriosa do seu corpo técnico, formado por profissionais concursados e altamente qualificados. Supor que um determinado presidente ou diretor teria autonomia para conceder empréstimos de risco é desconhecer por completo o trâmite dos projetos na instituição. Uma simples visita ao site do banco evitaria a disseminação de verdadeiras fake news a respeito da sua atuação.

Outro assunto correlato igualmente relevante é quanto ao funding do banco, que conta com repasses do PIS/Pasep ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), dos quais parte é destinada aos seus financiamentos. Especialmente em um momento de crise e atrofia de investimentos como o atual, a preservação de fontes de financiamento para projetos torna-se ainda mais relevante.

Restringir os repasses do FAT ao BNDES, além de limitar a sua própria atuação, representaria mais uma daquelas pseudossoluções simples para problemas complexos, mas longe de serem adequadas. O banco historicamente tem exercido um importante papel. Ao longo dos 67 anos de existência, sempre exerceu função relevante no financiamento do desenvolvimento brasileiro, embora em diferentes períodos suas funções tenham sido mais específicas, a depender das prioridades das políticas econômicas em vigor.

A Constituição de 1988 determina que 40% do PIS-Pasep, principal fonte do FAT, seja destinado ao BNDES. Com o efeito da Desvinculação de Receitas da União (DRU), criada em 1994, os repasses foram reduzidos a 28% do total. O banco repassa via empréstimos esses recursos ao setor produtivo, no financiamento de investimentos para infraestrutura, novos empreendimentos e compras de máquinas e equipamentos. Esses recursos representam cerca de 35% das fontes de financiamento do banco. O saldo atual em carteira monta R$ 268,7 bilhões, 83,7% superior ao de 2011, de acordo com o boletim do FAT. Para o ano em curso está previsto o repasse de R$ 18,8 bilhões.

Com as alterações promovidas pelos governos Temer e agora Bolsonaro, está em andamento um processo de devolução de recursos ao Tesouro por parte do BNDES, um montante de R$ 416 bilhões tomados entre 2008 e 2014 que foram utilizados para fazer um contraponto à crise. Desde 2015, já houve a devolução de R$ 330 bilhões, restando um saldo equivalente a R$ 250 bilhões considerando correção e juros. O plano anterior à mudança de governo previa que o BNDES restituísse cerca de R$ 25 bilhões anualmente. No entanto, o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, pressiona para que R$ 126 bilhões sejam devolvidos ainda este ano.

A sustentabilidade das operações do banco depende das suas fontes de financiamento. Destaque-se que não há substituto para a atuação do BNDES. No mercado privado inexistem fontes de financiamento de longo prazo e a custos (juros) compatíveis com a rentabilidade esperada das atividades e projetos. Assim, a atuação do banco se revela imprescindível, especialmente em face da longa crise enfrentada pela economia brasileira. Dificultar ou buscar inviabilizar a sua atuação representaria, na prática, adiar a saída da crise e postergar as condições para a retomada do desenvolvimento nacional.


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Antonio Corrêa de Lacerda*PROFESSOR-DOUTOR E DIRETOR DA FEA-PUCSP, CONSELHEIRO E ATUAL VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DE ECONOMIA (COFECON), É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘ECONOMIA BRASILEIRA’ (SARAIVA, 2018 – 6ª EDIÇÃO)

Todo dia a esquerda cancela alguém, mas não vemos propostas.



São Paulo - 09 DEC 2019 - 08:24 BRT


Ao longo de vários anos de pesquisa de campo, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado esteve em contato com trabalhadores informais da base da pirâmide brasileira, ouvindo suas demandas e anseios. Ela também vem pesquisando de perto as manifestações e movimentos que explodiram a partir de junho de 2013, passando pela nova geração de feministas, os encontros de jovens da periferia em shoppings que ficaram conhecidos como rolezinhos, as ocupações nas escolas pelos secundaristas, a greve dos caminhoneiros... Professora da Universidade de Bath (Reino Unido) e colunista do site The Intercept, ela transformou o que acumulou em anos de pesquisa em seu novo livro, Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual (Editora Planeta).

Na obra, a pesquisadora analisa, a partir de um ponto de vista progressista, como um Brasil que não se sentia mais representado pela classe política e ocupou massivamente as ruas em junho de 2013, pedindo por mais direitos e menos corrupção, chegou em 2019 tendo o ultradireitista Jair Bolsonaro como presidente da República. Apesar de considerar o cenário atual desolador, acredita que aqueles protestos representaram o marco de uma “revolução” na estrutura social do país, com “uma indignação e uma vontade por politização e processo democrático imenso”. É por causa dessa nova geração e dos movimentos que ganharam força com ela, como o feminista, o LGBT e o negro, que é possível ter esperança.

Em entrevista ao EL PAÍS, ela ainda faz um alerta ao campo progressista: é preciso deixar de lado certa postura rancorosa, revanchista e vingativa que gerou uma cultura do cancelamento nas redes sociais. O futuro, diz ela, ainda está em disputa. Isso passa por voltar às periferias, incorporar novas demandas e novos atores aos quadros dos partidos, apostar por novas propostas e sair em busca dos eleitores que optaram pela extrema direita. Um trabalho que deve ser online (nas redes) e offline (nas ruas).

Pergunta. Por que amanhã vai ser maior?

Resposta. Não só o Brasil, mas o mundo todo, tem ido constantemente às ruas no século XXI. Com características muito diferenciadas, respondendo a demandas nacionais fundamentalmente, mas colocando as pessoas nas ruas de forma que os movimentos tradicionais não compreendem. Então, por um lado, [vai ser maior] por causa deste Brasil que é insurgente e politizado desde junho de 2013 e com o advento das novas tecnologias. Por outro lado, há esperança por conta da luta de vários movimentos que surgiram após junho de 2013. São movimentos que já existiam, como o feminista e o negro, mas vemos a formação de uma nova geração extremamente politizada. Não víamos antigamente nas periferias, e em vários lugares do país, uma geração de meninas feministas. É algo completamente inédito na sociedade brasileira. Essa juventude está sendo disputada à esquerda e à direita.

P. Como enxerga essa nova geração? Que outras diferenças enxerga entre esses novos movimentos e os antigos?

R. Vejo como um processo. Essa explosão no Brasil eu chamo de revolução, mas no sentido antropológico, de uma quebra de estrutura social, não no sentido da teoria política. Junho de 2013 não proporcionou isso, mas é um marco, fruto de processos democráticos e lutas históricas que foram ocupando o poder, se institucionalizando, criando espaços nas escolas e as cotas, reformando currículo... É todo um Brasil que se preparou para isso. A maturidade da Internet nos anos 2010 também proporciona o surgimento dessa subjetividade insurgente. E, para mim, a grande diferença é que esta geração é muito mais autonomista, muito mais democrática, com muitos coletivos. Você vai numa escola e vê 10 grupos feministas, não apenas um DCE centralizador. É uma geração que se expressa de maneira muito mais horizontal. Não é perfeito, a gente sabe de todos os conflitos e contradições que existem, mas há uma lógica muito mais democrática e horizontal. E também pouco partidária. De alguma maneira esta geração inclusive rejeita os partidos.

P. Como conciliar esse novo Brasil com o aquele de centrais sindicais e partidos fechados?

R. Esse é o grande conflito. Você tem a CUT, mas muitas vezes essa nova geração não quer ir a um protesto com a bandeira da CUT ou mesmo do PT. E há uma esquerda que não consegue ver os frutos e sementes de Marielle Franco. É uma esquerda institucionalizada, que sofreu um golpe, é verdade, mas que não consegue abarcar essas novas lideranças e novos movimentos. Vai para a rua com caminhão de som, mas estamos falando de uma geração totalmente contrária ao caminhão de som.

P. Quais são as implicações políticas?

R. O PSOL se abre um pouco mais para isso, mas quem são os novos quadros do PT? Muito difícil você reivindicar novas juventudes no partido. A gente precisa de um quadro de renovação no próprio PT, ele ainda é o maior partido do Brasil. Há uma carência de novas figuras. É preciso ampliar, renovar mesmo. E há uma insegurança da esquerda com essa geração que ocupa as ruas. Não raro a esquerda culpa junho de 2013 por tudo que aconteceu, já que não controla essas pessoas, não é algo centralizado. É muito mais fácil acusar de golpista e não fazer mais nada do que trabalhar politicamente. Precisa negociar, disputar essas multidões, e não culpá-las. A esquerda até quer a multidão, desde que seja controlada por bandeiras. Se não for, ela se torna um risco. Isso é o oposto de um processo de politização e da camaradagem, o que significa trabalhar dentro de uma lógica universal, de amor.

P. Mas esse é um problema exclusivo da esquerda, ou também do centro e centro-direita mais tradicionais e que implodiram ainda mais nas últimas eleições? A classe política e os partidos como um todo operam na mesma lógica, com pouca transparência e dando pouco acesso a dinheiro e cargos de poder para os novatos...

R. É um problema da classe política de modo geral. Mas, ao mesmo tempo, vemos o MBL [Movimento Brasil Livre], que cresceu absurdamente com um discurso juvenil, com uma estética jovem, subversiva... Mas essa crise institucional partidária ficou escancarada em 2013. Já não havia engajamento partidário há muito tempo. A crise é profunda, há uma indignação e uma vontade por politização e processo democrático imenso. Tenho diferenças ideológicas com correntes como o Renova ou MBL, mas acho extremamente positivo que esses diferentes grupos transversais se apropriem da política. O Muitas e a Bancada Ativista estão conseguindo inovar dentro de uma lógica partidária. São movimentos que mostram o esgotamento generalizado do modelo partidário, mas que conseguem incorporar essas novas demandas, apesar das contradições. A população não se vê naquele modelo, então você tenta fazer algo mais transversal e entra na lógica partidária. Como isso funciona na prática é difícil, como vem sendo esse conflito entre a Tabata do Amaral [do Acredito] com o PDT.

P. A socióloga Angela Alonso, pesquisadora do CEBRAP e professora da USP, vem estudando as manifestações desde 2013. Ela rebate a ideia de que sejam espontâneas e mostra como grupos que já vinham se formando anos antes alavancaram esses atos. Afinal, qual é o papel da Internet para que essas manifestações ocorram?

R. Tenho até dificuldade de compreender essa ideia de manifestação espontânea. Eu também não concordo. A Internet ajuda no contágio, na explosão, mas sempre tem alguém por trás. Os grupos de direita estão organizados desde os anos 2000 e começam a ver oportunidade e a se apropriar de slogans como “vem pra rua”, “hospital padrão Fifa”... A greve dos caminhoneiros foi muito mais um pavio que se acendeu e explodiu, com um papel do WhatsApp muito forte. Os rolezinhos, que começaram em 2013 e ganharam força em 2014, era uma organização de jovens via grupo de Facebook. Mas aquilo refletia um momento da Internet que não existe mais.

P. O que mudou?

R. Não tínhamos filtros bolha nas timelines. Com os algoritmos fica muito mais difícil conseguir essa mistura que tivemos em junho de 2013. A Internet mudou. Por outro lado, você pode ter coletes amarelos, greve dos caminhoneiros... Com pautas específicas e com multiplicidade de vieses ideológicos. Isso vai acontecer mais ainda. Vamos ainda ver a revolta do Uber e vai ficar todo mundo dizendo que eles são fascistas (risos).

P. Você parece enxergar essas manifestações recentes como algo positivo, mas elas também podem ser canalizadas por forças de extrema direita, como vem acontecendo.

R. Eu começo o livro falando sobre esses momentos mais paradigmáticos e que, de alguma maneira, mudaram o mundo. Houve um alerta de que as coisas não estavam boas. E a partir dali houve uma mensagem que a extrema direita acabou se apropriando. Mas depois, quando critico a esquerda, explico que a direIta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo. Quem foi atacado por blogueiros de direita como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino ou Reinaldo de Azevedo já sabia, mesmo antes de 2013, que havia uma horda fascista pronta. O discurso antipetista foi sendo forjado.

P. Quais são as características dessa extrema direita? Ela é diferente da extrema direita de antigamente?

R. São as mesmas ideias, citam os mesmos autores fascistas para dizer que há um colapso da civilização ocidental. Há supremacistas, masculinistas, anarcocapitalistas... E brigam entre eles todos, mas querem destruir um inimigo em comum. Estão usando o YouTube e blogs há muito mais tempo e oferecem respostas com raiva e indignação. O Brasil entrando numa crise profunda, multidimensional, econômica fundamentalmente, e eles chegam para dizer “olha, o problema é que tudo foi dado para a feminista e nada para você, trabalhador”. Isso se alinha muito bem com os evangélicos e a tradição religiosa que aponta para o problema da família e da moral em colapso. Passou desapercebido desse mundo establishment que colapsou e ninguém mais sabe como voltar.

P. Todos esses movimento de extrema direita do mundo tem em comum uma pauta antifeminista e contra os avanços nos costumes muito forte. Significa então que algo de fato se moveu na sociedade? Essa não é a boa notícia?

R. A segunda metade do século XX, principalmente a partir de 1968, trouxe grandes progressos para os direitos civis, das mulheres e da população LGBT, mas essas conquistas históricas tiveram reação. Esse é sempre um processo de ação e reação. Michael Kimmel, um sociólogo de que gosto muito, escreveu sobre o “homem branco raivoso”. Ele termina a introdução dizendo que se há uma curva ascendente na história da humanidade é a conquista das mulheres, e que essa curva continua ascendente. São muitas as conquistas, mas como a gente é soterrado pela vitória da extrema direita, não conseguimos enxergar as conquistas dessa juventude e que também elegemos a maior bancada feminista, a primeira deputada indígena... E nem acho que a extrema direita seja só uma reação a isso, as duas coisas estão coincidindo e está muito em disputa ainda. O capítulo do meu livro que resume isso é “a extrema direita venceu, as feministas também”. Há esse avanço das lutas por modos de vida e é dali que vem alguma esperança de conquistas.
“A direta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo”

P. Se é uma disputa, o lado obscurantista pode acabar ganhando. Como o campo progressista deve se organizar?

R. Em primeiro lugar precisa disputar as pessoas, online e offline, e parar com a ideia de que existe uma cisão entre os dois. Você tem que voltar para a periferia para ver que a pessoa está sendo assaltada na parada de ônibus às onze da noite e que quer segurança pública, mas também precisa saber disputar as redes dentro de uma perspectiva de diálogo. Quando as insurgências e contradições vierem, e todos os trabalhadores trazem contradições, é preciso trabalhar para recrutar essas pessoas e trabalhá-las politicamente. Mesmo antes das fake news a direita já fazia isso muito bem. A gente precisa fazer material de qualidade com uma linguagem popular e aberta, que dê respostas à população. Em segundo lugar, temos que fugir do populismo. Significa que não podemos dizer que a solução para a segurança pública é dar armas para as pessoas, mas sim oferecer um projeto para a população. E hoje não enxergo para onde as esquerdas estão indo com relação a projetos. Elas ainda estão na defensiva. É horrível o que aconteceu, mas é preciso trabalhar na construção de alianças democráticas. Primeiro para derrotar o fascismo e, depois, para construir programa de emprego e trabalho no século XXI, na educação, na saúde... A esquerda britânica está aí falando, está sonhando, está sendo radical... No Brasil, a gente só vê radicalismo da esquerda na Internet, nos xingamento e na lacração. Mas em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho? Quem tem a coragem de ser visionário, de ousar, de ser louco, de pensar algo que ninguém pensou?

P. O ex-presidente Lula atrasa essa renovação e esses novos projetos?

R. Lula teve um julgamento extremamente injusto. Todo mundo tem direito fundamental a um julgamento neutro. Então o “Lula Livre” é uma questão de justiça histórica, de democracia. Ponto. Mas a gente precisa avançar para além de Lula, e também para além de sua própria figura. Sem negar o papel fundamental que ele tem, mas buscando novas lideranças.

P. Acredita então que a esquerda replica estratégias de violência nas redes que a extrema direita aplica?

R. Vejo isso entre setores petistas. É um processo de radicalização da agressividade, da violência, do escracho, do cancelamento. É extremamente violento. Neste ponto sou totalmente freiriana. Paulo Freire dizia que corremos o risco de ter uma esquerda magoada, de corte ressentido e vingativo. E de cairmos no mesmo rancor da extrema direita. Essa luta se transformou numa luta revanchista e vingativa, em grande parte. Parece que não fazemos mais nada, que ficamos no Twitter cancelando as pessoas, apontando o dedo para quem não é puro. A gente já tem uma lógica de não recrutar “porque é fascista”. E quem está dentro, você vai cancelando até sobrar muito pouco. Isso é muito danoso, o oposto da esquerda. A esquerda é um princípio humanista e da camaradagem, o oposto do cancelamento. Há varias pessoas da esquerda e do centro que estão com muito medo de se manifestar na Internet. E ninguém acha que está linchando, todo mundo diz que só está “criticando”. Mas é um comportamento de manada, alguém faz um comentário, o outro vai lá responder e em pouco tempo uma nuvem já trucidou a pessoa. Todo dia vemos um cancelamento diferente, mas não vemos programa. Virou radicalismo de Twitter, não de proposta.
“Em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho?”

P. Existe o risco de crescimento da esquerda autoritária?

R. É um movimento crescente, porque provavelmente ela tenta acreditar que quem derrotou o fascismo foi uma esquerda stalinista. Além de reeditar todos os métodos violentos, isso tem um efeito muito perigoso nos jovens. Sou especialista em China e vejo que há um revisionismo da história chinesa, com influencers neo-maoístas dizendo que não há presos políticos na China. E se alguém fala sobre autoritarismo do Estado chinês, pedem provas de que existem presos políticos, mesmo com todas as evidências científicas e jornalísticas indicando que a ditadura chinesa prende. É terraplanismo, mesmo. Todas essas correntes autoritárias estão crescendo absurdamente nos movimentos estudantis, entre jovens que sequer sabem direito quem foi Mao ou Stalin. Então essa geração com a qual estou muito animada pode ser levada para esse caminho autoritário.

P. Os radicais da Internet representam a maioria ou há demanda por mais moderação no discurso?

R. Assim como vejo essa esquerda do cancelamento, que cresce muito e que tem força, vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo. Elas não têm referências ainda, mas estão buscando a nuance e a contradição do processo. E estão completamente órfãs. Então precisamos de uma esquerda que ocupe os canais de comunicação e que consiga um projeto de falar para a população, com todas as suas contradições. Significa falar com o caminhoneiro que quer intervenção militar e ao mesmo tempo queria Lula. Estou convencida de que há uma demanda por essas figuras. As pessoas estão sofrendo com essa radicalização, que não leva a nada, não é programática e não melhora a vida de ninguém.

P. Em entrevista ao EL PAÍS, o sociólogo de Pedro Ferreira de Souza, que estuda a desigualdade social, afirmou que o trabalhador industrial do ABC paulista está mais perto do topo da pirâmide, enquanto que a maioria nunca teve direito algum. A ideia de trabalhador também ficou arcaica?

R. Isso é fundamental. Esse trabalhador ideal não existe. Além de ser um extrato muito pequeno da pirâmide brasileira, esse trabalhador inclusive politicamente não existe. E a tendência é de flexibilizar cada vez mais. Se pensarmos no protótipo do trabalhador brasileiro hoje, tem que pensar no motorista de Uber. Ele compra um carro, vai trabalhar 15 horas por dia, está cansado, mas quer continuar tendo um carro e vai colocar alguém para trabalhar para ele. Esses dias conheci um motorista que disse que trabalhava 24 horas por dia e que dormia dentro do carro, para que com 30 anos tenha dois trabalhadores para ele na mesma lógica. Não acho que isso seja 100%, preto no branco, porque esse trabalhador também está indignado e quer transporte público, saúde e benefícios sociais. Durante 10 anos estudei economia informal, e o sonho de todo camelô, com todo aquele discurso empresarial, é ter a carteirinha de trabalho. As pessoas querem ter a dignidade de ter direitos, mesmo que reproduzam esse discurso do empreendedorismo. Existe um processo de flexibilização, mas também temos que trabalhar para prover mais direitos para essas pessoas. Acho que o MEI, com todas as dificuldades, foi uma tentativa de legalizar essas pessoas e de oferecer um sistema de Previdência.
“Vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo”

P. Como avalia a estratégia da esquerda ao lidar com a reforma da Previdência?

R. Ela ficou na base da negação, com nada de propositivo, apenas no revanchismo. Ela foi inábil e ao mesmo tempo ficou na lógica revanchista, dizendo para o trabalhador “seu pobre, você se ferrou”. Falando para uma população que não necessariamente será afetada pela reforma da Previdência. A população brasileira historicamente está na economia informal, com poucos direitos e que não vai estar lá, nas ruas, lutando por eles. O discurso de retirada de direitos trabalhistas e da aposentadoria não necessariamente pega nessas pessoas. De novo, é mais fácil cancelar. Você pensa a partir de uma linguagem estrita de uma esquerda do século XX, e não consegue responder às pessoas de carne e osso que estão vivendo as contradições do processo. É obvio que temos que lutar pela Previdência e por mais direitos, mas isso não faz sentido nenhum para a base da população.

P. Acha que a esquerda precisa dialogar com centristas, liberais e setores da direita?

R. No aspecto institucional temos hoje que fazer aliança com todo mundo que quiser derrotar Bolsonaro. E isso é fundamental em todas as frentes, inclusive com setores do PSDB que estiverem dispostos a fazer isso. Se FHC fizer a frente, tem que se aliar inclusive com FHC. Quando penso em uma frente, nela tem que estar inclusive uma direita que se denomina democrática. Não é uma aliança para pensar programa, mas de frente democrática, para barrar todos os retrocessos. E para isso é preciso dialogar com todos.
“A violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta o policial. Temos que falar com ele”

P. Como encara a morte dos dez jovens de Paraisópolis no atual contexto político e como enxerga as reações?

R. Evidentemente se trata de mais um episódio que se soma ao genocídio da população negra no Brasil. Essas populações sempre foram desumanizadas, vulnerabilizadas e mortas. Parte da bolha que apoiou a ação policial argumentava que não eram jovens se divertindo, mas sim vagabundos, pessoas que não tinham o que fazer. Estudei os rolezinhos e vi diferença de percepção de lazer de jovens pretos e periféricos e de jovens de classe media alta. Quando há uma tragédia semelhante num baile de camadas médias brancas, essa mesma bolha consegue ver as vítimas como pessoas dignas de luto. E o outro lado é tratado com frieza e desumanidade. Tudo isso é histórico, mas vemos agora uma legitimação inédita por parte dos governos Federal e estadual, com um discurso oficial de que esses policiais estão autorizados a matar e depois são coroados. Por outro lado, vi uma reação positiva na bolha progressista, o que desperta a possibilidade de que isso seja uma fagulha para que movimentos sociais saiam às ruas. Às vezes um fato pode ser disparador de comoção. O grande desafio é ver se há possibilidade maior de contágio, que não se deixe que a pauta do próximo dia tome conta e faça a gente esquecer do ocorrido. Esse massacre precisa continuar sendo algo que trabalhe nossa indignação contra esse novo Brasil marcado pela bala.

P. Como os movimentos sociais e o campo progressista devem abordar a questão da violência policial? Acredita precisam disputar os policiais com a extrema direita?

R. Enquanto nós estivermos um estado policial, devemos disputar os policiais. Como mostram os trabalhos do pesquisador Rafael Alcadipani, o policial militar está entre as profissões com maior nível de estresse, pelo contexto da violência e precariedade da profissão, atentando contra toda a família do policial. É uma classe extremamente precarizada, que sofre depressão e com altas taxas de suicídio. A mesma violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta esse policial, ele mata por ódio e acaba ferrado psicologicamente. Temos que falar com policiais. Claro que parte da esquerda vai dizer que precisam desaparecer, mas a polícia existe. E existem grupos de esquerda e antifascistas na polícia que fazem um trabalho nesse sentido. Evidentemente tem que alargar o discurso para esses setores e trabalhar a questão da violência estrutural.

Dilma não foi progressista, mas sim "Reaganiana"

LAURA CARVALHO | ECONOMISTA

“Os cortes de impostos para as empresas de Dilma não foram progressivos, mas reaganianos”

A economista brasileira Laura Carvalho, professora da Universidade de São Paulo, acaba de publicar 'Valsa Brasileira', um livro que explica as flutuações econômicas de seu país.


Quão semelhante é a política econômica da presidente brasileira Dilma Rousseff , do Partido dos Trabalhadores de esquerda (PT), e as idéias econômicas do conservador Partido Republicano dos EUA? A economista Laura Carvalho (Rio de Janeiro, 1984), professora da Universidade de São Paulo e doutora em economia pela New School for Social Research , explica essa rara relação no Valsa Brasileira (editor Todavia) , livro sobre as flutuações econômicas da Brasil na última década. No trabalho, que está na lista dos mais vendidos nas últimas semanas no país, Carvalho procura explicar o "milagre" do crescimento econômico e da distribuição de renda durante o governo Lula (2003-2011). Também ocorreu o inverso no governo de Dilma (2011-2016), que alimentou uma grave crise fiscal por meio de cortes de impostos para empresários e setores industriais. “Em todo o mundo, esses incentivos não têm nada a ver com políticas progressistas, mas com as idéias de Ronald Reagan . Essa é a chamada economia de cócegas : a idéia de que, ao beneficiar o topo da pirâmide social, ao mesmo tempo a base é favorecida. É algo incompatível com um governo que se diz progressista ”, explica o economista brasileiro ao EL PAÍS.
“Os cortes de impostos para as empresas de Dilma não foram progressivos, mas reaganianos”
Hoje o Brasil ainda está tentando se recuperar de uma grave e longa recessão . Mas como você chegou aqui depois de tantos anos anteriores de otimismo? Você precisa olhar para trás na primeira etapa do governo Lula. Carvalho argumenta que o crescimento econômico do início dos anos 2000 foi mantido pelo boom das matérias-primas e pelo aumento das exportações. Esse contexto externo muito favorável continuou até 2011, mas desde 2005 foram adicionados outros elementos que alimentaram o aumento do PIB: “Investimentos públicos [especialmente em infraestrutura], juntamente com políticas de distribuição de renda, com o crescimento dos salários e de certos setores de serviços - que resultaram em mais empregos para pessoas com menos escolaridade - aumentaram o consumo das famílias e o mercado interno ”, argumenta. “O crescimento da própria economia e os altos preços das matérias-primas aumentaram a arrecadação de impostos, de modo que as contas públicas e a inflação continuaram controladas. Houve uma redução brutal na dívida pública naqueles anos. ” Apesar da crise global de 2008, o Brasil cresceu 7,5% em 2010, o boom do seu boom econômico.
Mas a partir de 2011, os preços das matérias-primas não começaram a cair apenas no mercado internacional: o novo governo brasileiro, já sob o comando de Dilma Rousseff, deu uma guinada no modelo econômico. “As associações sindicais e de empregadores pediram medidas como reduções de impostos (mas sem aumentar outros impostos), controle dos preços da eletricidade, redução das taxas de juros, desvalorização da moeda para promover a competitividade da indústria brasileira ... ”, Diz Carvalho. “O governo teve então a percepção de que eram necessárias políticas para o setor industrial. Acreditava-se que o crescimento naquele momento não era sustentável. Houve desafios como manter a inflação sob controle e melhorar a competitividade e as exportações do setor ”, lembra o economista. E acrescenta: “Essa política estava errada, tanto no diagnóstico quanto no tempo . Pensou-se que exportaríamos mais, mas o contexto internacional não era mais favorável, com a crise européia e o fim do ciclo de matérias-primas. Mas havia também um erro básico: a ideia de que os empreendedores investiam automaticamente se tivessem mais incentivos. Mas eles só investem se houver demanda. ”
A essa "obsessão industrial" do PT foi adicionada uma redução brutal dos investimentos públicos que ajudaram a impulsionar o crescimento na era Lula. Reduções de impostos e um contexto internacional menos favorável afetaram a receita do estado e criaram um sério problema nas contas públicas. Os estímulos econômicos da época também não funcionaram. Em abril de 2014, a economia brasileira iniciou um declínio que durou até dezembro de 2016, período em que o PIB caiu 8,1%. 2015 e 2016 foram os piores anos da recessão, com queda de 3,5% a cada ano. O roteiro para sair da crise é um clássico: cortes. A própria Dilma inaugurou em seu segundo mandato um novo período de austeridade no Brasil, mas foi Michel Temer , após a destituição do ex-presidente em 2016, quem a intensificou : aprovou no Congresso um teto de gastos públicos que os mantém congelados por 20 anos e uma reforma trabalhista que, como na Espanha, facilitou demissões e facilitou contratações temporárias. Em 2017, a economia finalmente voltou a crescer, mas apenas 1%. O desemprego mal caiu e a miséria aumentou .
Apesar dessas reformas e cortes, o Brasil registrou um déficit público de 9% do PIB em 2017, longe dos superávits de alguns anos atrás. A dívida pública líquida, que em 2014 era de 30% do PIB, agora ultrapassa 50%. Uma lição inteira para o resto da América Latina. “O teto da [despesa] não estabilizou a dívida pública, que continua a aumentar, uma vez que depende de crescimento, cobrança e pagamento de juros”, alerta Carvalho. “Não existe em nenhum país e é absurdo. Isso impede que, se a economia voltar a crescer, investimentos públicos e despesas em áreas prioritárias possam ser lançados ”.
O que fazer então? Carvalho, que se estabeleceu como uma das principais vozes progressistas no campo econômico, se faz ouvir através das redes sociais e de sua coluna na Folha de S. Paulo . Ele também assessora o programa econômico do candidato para as eleições presidenciais de outubro deste ano, Guilherme Boulos, do Partido de Socialismo e Liberdade de esquerda (PSOL). Ele recusa a austeridade a todo custo realizado pela direita liberal que chegou ao poder por Temer, mas também não quer um projeto industrial e intervencionista que não leve em consideração a distribuição de renda.
Em vez disso, ele se identifica com um novo mundo deixado por políticos como Bernie Sanders nos Estados Unidos e Jeremy Corbyn no Reino Unido, alegando que os mais ricos pagam mais impostos para que o Estado recupere sua capacidade de fazer investimentos públicos. O Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, possui um sistema tributário regressivo que está entre os mais injustos. Os rendimentos mais altos pagam apenas um imposto de 27,5% - se não conseguirem escapar do tesouro - e as heranças são pouco tributadas. Os lucros e dividendos dos empreendedores nem são tributados. O mesmo não ocorre com os bens de consumo das famílias brasileiras, que precisam pagar até 34% dos impostos quando compram um remédio ou 44% dos impostos quando abastecem o carro com gasolina, por exemplo.
“Hoje, as despesas sociais que reduzem a desigualdade apenas neutralizam a concentração de riqueza resultante da injustiça tributária. A tarefa de distribuir renda no Brasil é quijotesca ”. Propõe que a reforma tributária aumente a arrecadação estadual, mas que, em um segundo momento, haja reduções tributárias no consumo e nos setores produtivos. Existe espaço político para isso? “As pessoas reclamam do imposto que pagam, não do imposto que 1% mais rico paga. Se vamos aumentar o imposto de renda dos mais ricos, precisamos explicar que eles são os menos pagos hoje. Por que seria mais difícil do que explicar que estamos cortando em saúde, educação e investimentos públicos? ”, Ele pergunta. "Defendo o fim da desigualdade tributária que funciona como transferência de renda para os mais ricos".
Também exige que os investimentos públicos se concentrem no desenvolvimento de setores produtivos e novas tecnologias relacionadas aos serviços e às deficiências dos brasileiros. “Gostaria de recuperar algumas coisas que funcionaram entre 2006 e 2010, mas vão mais longe. Não estou preocupado com o crescimento do setor de serviços, porque aumenta a oferta de trabalho para quem tem menos treinamento e ajuda a distribuir riqueza. Mas, ao mesmo tempo, precisamos ter uma política de desenvolvimento que resulte em melhores serviços públicos. Por exemplo, se vamos investir em saúde pública e planejar bem, podemos desenvolver uma indústria de equipamentos médicos. Se vamos investir em mobilidade urbana, podemos promover tecnologias para carros elétricos. ”

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