Por Briahna Gray, 2 de Julho de 2018
NINGUÉM NOS EUA consegue parar de falar sobre Alexandria Ocasio-Cortez, a ex-garçonete de 28 anos que venceu nas primárias do Partido Democrata o congressista Joe Crowley, em exercício há dez mandatos, e tomou seu lugar como representante do partido na 14º Zona Eleitoral de Nova York, na terça-feira.
Mas seria bom que algumas pessoas parassem.
Como já escrevi antes, cada disputa eleitoral de agora até 2020 vai ser cuidadosamente avaliada por seu valor preditivo, analisada em pormenores em busca de ideias para derrotar Trump. Algumas percepções dos analistas que ignoraram a campanha de Ocasio-Cortez até sua vitória, no entanto, talvez não sejam exatamente perceptivas.
Uma infinidade de narradores dessa corrida estavam determinados a afastar a ideologia de Ocasio-Cortez de qualquer análise sobre as causas de sua vitória, sem nenhum outro motivo a não ser preservar por mais um ciclo eleitoral as estratégias fracassadas do partido e os estrategistas pagos para colocá-las em prática. Outros diminuem a natureza radical de sua plataforma política e incorporam ao centro sua posição de esquerda, fingindo que a escolha de se identificar como socialista democrática é uma distinção irrelevante.
Para que ninguém confunda o entusiasmo por Ocasio-Cortez, que é uma participante bastante ativa dos Socialistas Democráticos da América, com o entusiasmo pelo socialismo democrático, Benjamin Wallace-Wells, da revista New Yorker, se apressou em distanciá-la do senador Bernie Sanders (sem partido, do estado de Vermont), o político que teve maior influência na popularização do socialismo democrático nos últimos anos.
Eu topo
“Embora Ocasio-Cortez tenha usado parte do discurso e das propostas políticas de Sanders”, ele escreveu, “ela também representou um conflito mais diversificado com o poder”. Como? Segundo Wallace-Wells, se “o movimento em torno de Sanders algumas vezes pareceu tão pedante e obstinado quanto seu herói, vidrado na influência dos bilionários”, Ocasio-Cortez se distingue porque “deu entrevistas aos veículos The Cut e Vogue”, viajou para uma das instalações provisórias no Texas onde crianças migrantes estão sendo detidas, e, “vestida de branco”, denunciou as violações de direitos humanos que acontecem ali.
Se o argumento de Wallace-Wells é que Ocasio-Cortez lida melhor com a interseccionalidade do que Sanders, faz sentido: ela é mais articulada no tema da identidade do que qualquer outro político que já ouvi. A relevância política de sua entrevista à Vogue ou de suas escolhas de vestuário, porém, não ficou clara para esta jornalista.
Enquanto isso, na New York Magazine, Frank Rich disse explicitamente que os resultados de terça-feira “não devem ser interpretados como um prenúncio do que poderá acontecer em âmbito nacional em novembro”. Para Rich, “embora Ocasio-Cortez adote o rótulo de socialista, não há nada de radical na plataforma com a qual ela concorreu”. Ele argumenta que ensino superior custeado pelo governo, Medicare [sistema de saúde] para todos e extinção do Serviço de Imigração e Controle Aduaneiro [ICE, Immigration and Customs Enforcement] são “posições sólidas do Partido Democrata”. Isso é novidade para qualquer pessoa que se lembre da estratégia de Hillary Clinton nas primárias em 2016, de caracterizar essas iniciativas à moda de Bernie como políticas que “nunca, jamais seriam aprovadas”, ou da recente defesa que a senadora pela Califórnia Kamala Harris fez do ICE: “Sim, o ICE tem um propósito, o ICE tem um papel, o ICE deveria existir”, ela disse numa entrevista em março. (Desde então, ela mudou de opinião.)
O equívoco de Rich, que vejo ser repetido em um artigo de opinião atrás do outro sobre essa corrida eleitoral, é enxergar as escolhas de campanha de Ocasio-Cortez de forma apartada em relação a um foco “obstinado” na disparidade extrema e essencialmente antiética de renda que existe nos Estados Unidos.
A plataforma de Ocasio-Cortez não ganhou força apenas por sua precisão retórica, por ser franca onde os outros tergiversam. Ela consegue ser franca porque sua ideologia tem coerência interna e não é afetada pela influência do dinheiro, da mesma forma que os outros se valem de eufemismos quando a verdade seria incômoda para os seus financiadores.
A mensagem socialista de Ocasio-Cortez não é uma parte acidental de uma questão demográfica mais ampla.
Sua popularidade também não pode ser resumida à sua identidade racial e à composição demográfica de perfil racial semelhante no seu distrito eleitoral – embora tenham surgido várias tentativas nesse sentido. Wallace-Wells, por exemplo, observa no começo de seu artigo que, entre os eleitores do 14º distrito, metade é de origem hispânica e só um quinto são brancos. “Crowley perdeu em razão das mudanças na composição demográfica em seu distrito”, escreveu Dana Milbank no The Washington Post. Essa conclusão está tão disseminada que Ocasio-Cortez sentiu a necessidade de dar uma resposta pelo Twitter: “Algumas pessoas estão dizendo que eu venci por razões ‘demográficas’. Em 1º lugar, isso é falso. Vencemos c/ eleitores de todos os tipos.”
E ela está certa. A parte sul do distrito (que corresponde à região nordeste do bairro de Queens) foi onde Ocasio-Cortez teve o melhor desempenho, escolhida por 60 a 100% dos eleitores em detrimento de Crowley, embora essa região tenha apenas 15 a 40% de hispânicos.
A mensagem socialista de Ocasio-Cortez não é uma parte acidental de uma questão demográfica mais ampla. Seu socialismo não deveria ser tratado como um vírus oportunista que se aproveita de sua origem latina como vetor. O socialismo é inseparável do sucesso de Ocasio-Cortez porque é o segredo por trás de sua capacidade de fazer o que há muito tempo o Partido Democrata não tem conseguido – articular uma visão progressista holística dos Estados Unidos.
O SOCIALISMO É UMA estrutura que dá suporte à ideia de que um país onde todos possam viver com dignidade não é uma questão de fantasias ou “pôneis”, nem é um sonho egoísta de uma população privilegiada que quer ganhar alguma coisa a troco de nada. É uma concepção socialista do mundo que dá a Ocasio-Cortez a coragem de declarar, em um conhecido programa de auditório, que “em uma sociedade moderna, moral e rica, ninguém nos EUA deveria ser tão pobre que não consiga viver”.
O socialismo revela que o capitalismo – um sistema onde os privilégios prevalecem sobre a comunidade – não é uma verdade natural, mas uma escolha política para a qual existem alternativas. Ele mostra que a riqueza de Jeff Bezos não pode ser dissociada das condições dos trabalhadores da Amazon, e sim, que é uma consequência de seu sofrimento. Ele revela que o reconhecimento do mérito de um homem se dá às custas da remuneração de uma mulher, e desafia a sociedade a valorizar os seres humanos para além da capacidade laborativa. É ele que permite a Ocasio-Cortez tratar a dignidade humana como inegociável. Onde Nancy Pelosi graceja que “somos capitalistas, é assim que funciona”, o socialismo diz que isso não é bom o bastante.
Wallace-Wells se equivoca ao dizer que o “principal insight” da campanha presidencial de Sanders foi que “a estrutura do partido Democrata é tão fraca quanto a do partido Republicano” durante o governo Obama. O principal insight da campanha de Sanders e da vitória de Ocasio-Cortez é que o socialismo é uma ideologia forte.
Na mencionada entrevista para a Vogue, conduzida pela repórter socialista Bridget Read, Ocasio-Cortez faz uma crítica ao sistema atual que é tão inédita na mídia de massa que soa como heresia: “Quando falamos sobre o socialismo mundial, o que isso realmente significa é apenas uma participação democrática em nossa dignidade econômica, e a nossa dignidade econômica, social e racial (…) depende de que haja representação direta e de que o povo efetivamente tenha poder e interesse sobre seu bem-estar social e econômico, no fim das contas. Para mim, o que o socialismo significa é a garantia de um nível básico de dignidade.”
Como Ocasio-Cortez afirmou na noite da eleição: “Não há nada de radical na transparência moral em 2018.” Exceto pela radicalidade de adotar essa plataforma de campanha.
O que deveria assustar os centristas em ambos os partidos é o quanto essa simples afirmativa moral é difícil de derrubar. Como Ocasio-Cortez afirmou na noite da eleição: “Não há nada de radical na transparência moral em 2018.” Exceto pela radicalidade de adotar essa plataforma de campanha.
Se algo distingue Ocasio-Cortez da maioria – e se há uma lição a ser aprendida pelos democratas que pretendem reproduzir sua mágica nas eleições de meio de mandato em 2020 – deveria ser isso.
Nancy Pelosi, no entanto, a quem Ocasio-Cortez negou apoio na disputa pela liderança da casa, vê a situação de outra forma. “Fizeram uma escolha em um distrito”, declarou em uma coletiva de imprensa na quarta-feira. “Então não vamos nos deixar levar por especialistas em questões demográficas, nem por nada disso (…) temos uma série de gêneros, gerações e geografias, existem opiniões em nossa convenção, e temos orgulho disso. O fato de que um distrito muito progressista de Nova York se tornou ainda mais progressista que Joe Crowley – que é progressista, mas ela está ainda mais à esquerda que Joe Crowley – diz respeito apenas àquele distrito.”
Se tudo correr bem, surgirá uma liderança mais perceptiva que compreenderá que, embora as questões demográficas sejam relevantes, a identidade deve ser politizada apenas na medida em que atenda a uma ideologia inclusiva, progressista e humanista.
Ocasio-Cortez disse melhor: “No fim das contas, sou uma candidata que não recebe dinheiro de empresas, que defende acesso universal ao Medicare, uma garantia federal de empregos, a extinção do ICE, e um novo New Deal ‘verde’ [com preocupações ambientais]. No entanto, eu olho para essas questões pelas lentes da comunidade onde vivo. E isso não é tão fácil de dizer quanto ‘política identitária’.”
- Socialistas Democráticos da América é uma organização política multi-tendência de orientação democrática, socialista, social democrata e trabalhista nos Estados Unidos.
- Briahna Gray é a editora sênior de política no "The Intercept". Ela também é uma colunista de opinião com foco em política progressista, bem como questões relacionadas à identidade e cultura. Seu trabalho apareceu no The Guardian, na New York Magazine, na Rolling Stone, na Current Affairs e na The Week, entre outros. Suas idéias sobre o empoderamento da identidade na esfera política contemporânea podem ser encontradas no documentário “Trumpland: Kill All Normies” da Fusion, bem como em vários podcasts e programas online, incluindo NPR, TYT e The Real News. Antes de ingressar na The Intercept, ela atuou como advogada em uma empresa especializada em litígios em Nova York e foi uma das editoras da Current Affairs Magazine. Ela também é coapresentadora do podcast “SWOTI (Someone's Wrong na Internet)”, no qual ela aplica uma lente esquerdista a assuntos relacionados à política e à cultura pop.
Ela recebeu um Juris Doctorate pela Harvard Law School em 2011 e um Bacharel em Artes pelo Harvard College em 2007. Ela divide seu tempo entre Nova York e Washington, D.C.
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