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Ignorância e a xícara cheia

De acordo com o Satyasiddhi Sastra de Harivarman, Capítulo 127: A respeito da Ignorância, sofremos de dois tipos de ignorância.



O primeiro é a simples falta de informação e é o mais fácil dos dois de ser solucionado.

Mas o segundo é terrível e é causa de muito sofrimento. É o “falso saber”, em que a pessoa acredita que sabe algo, acredita que o seu saber está correto, mas na realidade está errado e a referida pessoa está cultivando uma delusão.

Durante séculos acreditava-se que a Terra era plana. Afinal, parecia óbvio! Qualquer um podia ver! Os primeiros navegadores morriam de medo de cair num abismo na hora de chegar ao limite do oceano deste mundo plano. Falso saber.

Quando chegamos à prática budista, frequentemente estamos cheios de ideias preconcebidas. Isto é especialmente verdadeiro se temos uma tendência intelectual e obtemos grande prazer de leituras e pesquisas. Frequentemente, como alunos, estes tipos são os piores e os mais difíceis de treinar. Lembramos que Ananda, extremamente inteligente, com memória perfeita, não conseguiu alcançar a iluminação enquanto o Buda ainda estava vivo, apesar de sua proximidade do grande mestre e sua total dedicação! Cheio de “falso saber”, nem o próprio Buda conseguiu ensiná-lo. Durante muito tempo, Ananda ficou mais ou menos como um papagaio, capaz de repetir palavra por palavra todos os ensinamentos do Buda, mas incapaz de compreendê-los ou, mais importante, realizá-los.

Temos também uma história sobre um mestre zen que recebeu a visita de um professor universitário, que falava e falava – e falava – de seus conhecimentos. Ao servir-lhe chá, o mestre encheu sua xícara até transbordar e ainda continuava adicionando mais chá até que o professor, estranhando esta atitude, o questionou. Nesta hora, o mestre explicou que o professor estava sendo como a xícara cheia onde não cabia mais nada para ser acrescentado. Se quisesse aprender mais alguma coisa, teria que “esvaziar sua xícara”. Teria que aprender a deixar as suas próprias ideias de lado e verdadeiramente ouvir as palavras do mestre.

Mas, como podemos “esvaziar a nossa xícara” sem cair no erro de aceitarmos qualquer coisa, até comportamentos antiéticos por parte de um professor ou líder? Como podemos “esvaziar a nossa xícara” sem abrir mão de nossa própria dignidade?

Ouvir – Refletir – Realizar. Podemos deixar as nossas opiniões de lado (o que é diferente de simplesmente abrir mão delas) para ouvir e refletir? Podemos fazer um pouco do papel de “advogado do diabo” conosco mesmos, procurando o fundamento naquilo que ouvimos, dando menos importância às nossas crenças durante este período de investigação? Ao pensar “o meu professor não me entende” será que podemos refletir sobre a possibilidade dele estar nos entendendo até mais que nós mesmos, enxergando alguma coisa que da nossa posição não é possível, devido ao ponto cego em que nos encontramos?

Será que podemos abrir mão de nossa arrogância para procurarmos dialogar (de preferência em dokusan, a entrevista formal zen) com este professor, em lugar de simplesmente resolver que ele não serve para nós?


    
O Tattvasiddhi-strāstraA respeito da Ignorância  é um texto budista indiano do Abidarma (Abhidhamma Pitaka ~ o terceito conjunto de escritos do cânone do Budismo Theravada datam aproximadamente de 400 AC). Nele existiam descrições de Diálogos filosóficos entre professores Budistas e seus alunos.

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