TERAPEUTAS... são imperfeitos.

 

“Médicos são tão f*didos quanto nós”: como Shrinking quer descomplicar a terapia

Nova série da Apple TV+ acompanha psicólogo que decide abandonar as “boas práticas” e se mostrar mais humano para seus pacientes

Omelete
5 min de leitura
26.01.2023, ÀS 06H00
ATUALIZADA EM 31.08.2023, ÀS 12H12

No conforto — ou seria desconforto? — da terapia, é rápido presumir que o psicólogo do outro lado da sala tem sua vida em ordem. Esta é, afinal de contas, uma relação unilateral: um revira os dramas e dilemas do passado, do presente e do futuro, enquanto o outro ouve, pergunta e toma notas. Não há propriamente uma troca — ao menos não no sentido isométrico da expressão. Porém, essa visão, corroborada por vezes pela cultura pop, não corresponde à realidade, como analisou, entre risos, o produtor, roteirista e diretor Bill Lawrence (Ted Lasso), em entrevista ao Omelete“Nos Estados Unidos, quando se faz uma série sobre médicos ou terapeutas, geralmente eles não são pessoas falhas ou bobas. Seja para Scrubs ou para essa série, pude conhecer muitos doutores, e eles são tão f*didos quanto nós!”.

Foi partindo deste lugar que nasceu sua mais nova série no Apple TV+Shrinking (assista ao teaser no topo da página). Ao lado de Brett Goldstein (Ted Lasso) e Jason Segel (How I Met Your Mother), ele criou a história de Jimmy, um psicólogo que está sofrendo para se reerguer desde a morte repentina da sua esposa. Tentando seguir em frente e retomar o relacionamento com sua filha, que presenciou seu abuso de álcool e drogas por meses, ele tem uma epifania quando chega ao limite com um dos seus pacientes: e se ele só fosse brutalmente honesto— ou, no bom português, mandasse a real — com seus clientes? Deixando as “boas práticas” de lado para se revelar mais humano, ele e seus pacientes tentam levar um dia de cada vez, rindo apesar das dores.

“Acho [a terapia] um lugar fascinante para drama e comédia, porque o relacionamento entre um psicólogo e seu paciente é tão único. É incrivelmente íntimo e pode durar anos, mas existem limites”, justificou Goldstein. “Essa pessoa não é da sua família ou seu parceiro. É alguém que você paga para encontrar. É uma área tão estranha e interessante para explorar”.

Contudo, a ideia para o seriado não surgiu de uma mera hipótese curiosa. Na realidade, há um lastro muito real nessa premissa. Afinal, Shrinking é inspirada no psiquiatra Phil Stutz, autor do famoso livro O Método e tema do novo documentário de Jonah HillStutz. E, como você pode notar pelo trailer do longa da Netflix (assista abaixo), o médico não é adepto da ideia de não-interferência na vida dos pacientes, e isso por si só abre um mundo de possibilidades cômicas para a série.

É evidente que, se tratando de uma produção focada em saúde mental, é necessário que o humor esteja ancorado em fatos e em um senso de responsabilidade. Até porque muitos dos pacientes de Jimmy vivem dramas reais, quando não diagnósticos mesmo, como estresse pós-traumático e TOC. Por isso, Lawrence repetiu o que fez em Scrubs e consultou especialistas. “Se essa série não fosse autêntica, teríamos problemas. Então entrevistamos muitos terapeutas. Praticamente todas as histórias que usamos são reais ou derivadas de histórias reais que obtivemos na nossa pesquisa. E onde tomamos a licença poética foi no fato de que todo psicólogo que conhecemos, fora do ambiente da terapia, não poderia ser mais engraçado, caloroso e falho”.

Para Goldstein, encontrar o tom certo foi um desafio. “Você não quer que seja tão triste que os espectadores nunca mais vão rir de novo”, brincou. “Mas também não quer que seja tão bobo que eles não levem nada a sério. Então é sempre uma questão de equilíbrio”. E, como a premissa deixa claro, há uma carga dramática em Shrinking, mas que definitivamente não ofusca seu humor.

A razão para isso está, entre outras coisas, em uma preferência pessoal do também roteirista. “A regra geral é: eu não gosto de coisas niilistas. Não gosto quando a mensagem no final é ‘não há esperança, não há por quê. Estamos f*didos’, sabe? Porque não me ajuda, já sei disso. Prefiro que, por mais sombria e difícil que seja a história, ela também me mostre alguma luz. Porque eu realmente acredito que isso é realista. A vida é assim”. Ponto de vista este compartilhado com Segel, embora ele seja mais econômico nas palavras e piadista: “acho engraçado ver adultos chorando”; e com Lawrence. “Tirar o estigma [da terapia] de forma cômica é o que realmente me interessa”, defendeu.

A atriz Jessica Williams, que interpreta a colega do protagonista Gabby, acredita que está aí justamente a força de produções como Shrinking“Realmente gosto dessa ideia de dar para as pessoas vegetais, e elas pensarem que é sobremesa. Esse é o poder da arte e, particularmente, da comédia. A narrativa pode ser engraçada, como é o caso da série, e também ter uma mensagem sutil no plano de fundo de que os terapeutas também estão tentando. [...] Shrinking é uma série sobre pessoas tentando descobrir como viver com o luto e ser feliz ao mesmo tempo”.

Por isso, a mensagem que Williams tirou da série é simples, e nem por isso menos profunda: “está tudo bem se não estiver tudo bem”“Espero que, enquanto borramos os limites e deixamos vocês verem as vidas pessoais deles, [a terapia] fique menos intimidadora e pretensiosa, e mais acessível”.

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 Uma nova produção latino-americana está chegando ao Cartoon Network e HBO Max nesta sexta-feira (10), trata-se da minissérie animada A Vida Secreta de Sua Mente. A animação é uma parceria do Cartoon com a Pictoline, um popular site de tirinhas.


A série é baseada no livro de mesmo nome escrito pelo neurocientista Mariano Sigman e terá um total de 5 episódios com 10 minutos de duração cada. A trama mostrará Ceri, que se propõe a responder as perguntas comuns que o ser-humano costuma fazer sobre o funcionamento do cerébro sob as lentes de um desenho animado.
A Vida Secreta de Sua Mente estreia nesta sexta-feira (10) ás 21h no Cartoon Network. A programação pode sofrer alteração sem aviso prévio.







 


Mães são acusadas de narcisismo quando fazem o que qualquer pai comum faria... e o que é o "Manifesto Antimaternalista"?

Mães são acusadas de narcisismo quando fazem o que um pai comum faria, diz psicanalista Vera Iaconelli.


Quando nos referimos aos cuidadores de uma criança, usamos o termo "pais". Mas, nas reuniões escolares, são as mães que são esperadas. Procura-se primeiro descobrir quem é a mãe, e não o pai. Quando se trata do cuidado da criança, é a figura materna que é tida como a que sempre deve estar presente.

É assim que se abastece o "maternalismo", identificado pela psicanalista Vera Iaconelli, doutora em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) como o “discurso através do qual a sociedade justifica e reitera o lugar das mulheres — reduzidas à função de mães e trabalhadoras domésticas não remuneradas".

Exemplos da aplicação do discurso maternalista são apresentados por Iaconelli em Manifesto antimaternalista: Psicanálise e Políticas da Reprodução, seu terceiro livro, que ela acaba de publicar pela editora Zahar.

Um desses exemplos é a expectativa de devoção de uma mãe como condição para se criar filhos saudáveis e felizes. Como consequência, argumenta, a mãe se torna uma espécie de entidade desumanizada, como se não tivesse sua subjetividade e suas particularidades.

No livro, Iaconelli analisa o imaginário social da maternidade unindo a crítica cultural à sua experiência tanto no consultório quanto no instituto que fundou, o Instituto Gerar de Psicanálise.

O resultado é um livro em que faz não só um diagnóstico como propõe mudanças.

"Não só as mulheres, mas também os homens, e, com certeza, a sociedade como um todo, têm muito a ganhar saindo da mentalidade maternalista", ela explica à BBC News Brasil.

Na entrevista, a psicanalista debate o que vê como reflexo do que chama de maternalismo no trabalho, na diversidade dos arranjos familiares e no burnout materno. Confira os principais trechos.

BBC News Brasil - Você vê na cultura brasileira algo que estimule o que você descreve como discurso maternalista?

Vera Iaconelli - O Brasil, com seu passado escravagista, tem como uma de suas heranças a figura da babá, que já foi a figura da mulher escravizada atendendo às necessidades dos filhos da família branca.

A babá é uma categoria de profissionais cuidadoras que ganham pra fazer esse trabalho, muitas vezes deixando os próprios filhos aos cuidados de outros. Ou, às vezes, as crianças cuidam umas das outras. Quando a família brasileira sai do país, percebe que lá fora não existe esta mão de obra, porque ela é fruto da desigualdade social.

Quando a pessoa consegue trabalhar e ter acesso a uma formação maior, ela opta, quando pode, por não fazer trabalhos domésticos ou fazer outro tipo de trabalho — às vezes até ganhando a mesma coisa — por conta da dificuldade que é essa relação subjetiva de cuidar do filho de alguém, deixando o próprio filho sabe-se Deus com quem, e estabelecendo uma relação afetiva com uma criança que está sendo criada para inclusive desprezar a babá no futuro, porque a gente sabe que tem a questão racial no Brasil e a subalternidade das classes menos favorecidas.

Temos também uma cultura extremamente machista. Em países com esta cultura, você vê a mulher indiferenciada no lugar de mãe e o homem achando que cuidar dos filhos e da casa é uma questão feminina. Embora a gente também tenha, por exemplo, no Japão, que é considerado um país superdesenvolvido, um machismo que tem levado as mulheres a não querer ter mais filhos.

A questão do não nascimento de crianças para substituir os mais velhos é muito grave, e o país não consegue reverter isso porque lá as mulheres são uma parte importante da força de trabalho e fazem toda a atividade doméstica sozinhas. Então, elas estão se recusando a ser mães.

O discurso maternalista é muito forte no Brasil, e ele veio justamente para tentar proteger as mulheres que trabalhavam nas fábricas e lavouras em condições insalubres. Elas trabalhavam nas cidades para sustentar a prole e não conseguiram cuidar das crianças, obviamente, porque não dá pra estar em dois lugares ao mesmo tempo. Tanto que muitas crianças ficavam nas fábricas, inclusive.

O maternalismo veio para fazer com que o Estado, a sociedade, comparecesse para ajudar as mulheres. Essa mentalidade de ajudar — ou seja, de não estar inteiramente responsabilizado, mas só como alguém que ajuda quem é o responsável — é muito marcada no Brasil até hoje.

BBC News Brasil - Sair de casa para trabalhar tem efeitos importantes para as mulheres, especialmente no reconhecimento de suas existências para além da maternidade. Porém, hoje, não é incomum que as jornadas de trabalho ultrapassem 60 horas semanais nas atividades profissionais, sem contar as horas dedicadas aos afazeres domésticos. O que essa exigência de produtividade por parte das mulheres diz sobre o maternalismo?

Iaconelli - As mulheres sempre trabalharam. O que acontece é que só a partir dos anos 1960, com a revolução sexual, esse trabalho, que era considerado uma espécie de mal necessário — porque o marido não ganhava o suficiente, porque ela era mãe solteira, ou porque ela era viúva —, passa a ser positivado e considerado um valor.

Então as mulheres dizem: “Nós queremos ter carreiras, queremos poder ocupar todos os postos que os homens ocupam”. Elas entram no mercado de trabalho com tudo, mas sem a contrapartida, ou seja, sem que o homem entre com a economia de cuidados, que são os cuidados domésticos e com a prole. Nenhuma mulher faz filho sozinha, sempre tem esse outro faltante.

Com o neoliberalismo a gente vai entrando num momento em que todas as pessoas trabalham com uma carga horária absurda, que não deixa tempo não só para os filhos, mas para a vida pessoal.

A diferença é que as mulheres têm na maternidade um valor cultural muito importante, e de fato ela tem que ser valorizada — as mães ficaram para cuidar da próxima geração —, mas, infelizmente, elas ficaram sozinhas, tendo que estar em dois lugares ao mesmo tempo e sendo penalizadas nessas tarefas.

Se a mulher engravida, ela perde o emprego na hora que volta, ou nem consegue um cargo quando está numa idade em que há mais chances de ter filhos; os salários já são menores e muita gente os justifica pela questão da licença-maternidade. Então você tem um show de horror, um círculo vicioso que faz com que a maternidade se torne cada vez mais insustentável.

BBC News Brasil - Estão cada vez mais comuns depoimentos e alertas sobre supostas "mães narcisistas", retratadas como egoístas e insensíveis às necessidades dos filhos. Faz sentido a existência de uma espécie de diagnóstico de saúde mental com ênfase nas mães? Não é comum a menção a "pais narcisistas"...

Iaconelli - Não faz nenhum sentido a ideia de "mãe narcisista" a não ser que a gente entenda que o próprio termo "mãe narcisista" é um sintoma da nossa sociedade. Ou seja, é claro que existem pais, mães, avós e pessoas que só pensam nelas mesmas, passam por cima de todo mundo, não estão nem aí com os outros.

Mas a ideia de mãe narcisista que aparece agora tem muita relação com essa penalização da mulher que quer uma vida para além dos filhos. Em geral, a mãe narcisista não faz nada muito além do que um pai comum faria, que é cuidar da vida dele e deixar os filhos sob a responsabilidade da mãe. Essa categoria é muito ruim porque junta a palavra "mãe".

Pessoas narcisistas existem, mas "mãe narcisista" é um termo que surgiu muito antes do pai narcisista que, de fato, eu nunca ouvi falar. É um termo que vem dizer que uma mãe tem que ser acima de tudo uma mãe doadora, uma pessoa magnânima, generosa. Mães são todas as pessoas no mundo que tiveram filhos e aí você pode pôr qualquer sujeito.

A categoria mãe narcisista é preocupante porque é, mais uma vez, um julgamento moral das mães, como se existisse a "mãe", e não várias pessoas, com diferentes backgrounds [em inglês, algo como "trajetórias de vida"].

BBC News Brasil - Devoção e sacrifício seguem sendo palavras associadas à criação dos filhos, especialmente para as mães. Este é um ideal que segue firme?

Iaconelli - Na nossa sociedade, há discursos heterogêneos que convivem. Tem uma série de cobranças que ainda vigoram, embora não seja mais motivo de se tornar pária social o fato de que uma mulher não queira ter filhos, não queira se casar ou queira morar sozinha. Isso já foi muito mais terrível, mas essas expectativas convivem com os avanços.

A ideia de que a mãe se sacrifica, as mulheres se identificam muito com essa ideia. Ao reclamar, elas chegam a exibir um pouco como elas estão devotadas, como se esforçam pelos filhos — assim como os homens podem dizer isso do trabalho, para se exibir e mostrar como eles trabalham para levar dinheiro pra casa.

São posições que ainda vigoram e com as quais a gente tem que tomar muito cuidado, porque são fruto de uma ideologia que começa na modernidade, mas fica muito mais forte com a ideologia maternalista.

BBC News Brasil - De que forma o maternalismo "captura" as mulheres?

Iaconelli - Mães continuam sendo responsabilizadas, mas, além disso, elas continuam achando que a responsabilidade é delas. Elas continuam tirando da conta os homens — ou porque eles não estavam à altura mesmo, ou porque elas acham que cabe a elas, capturadas por essa mentalidade.

Um dos problemas que a gente enfrenta na clínica é como as mulheres que reclamam desse moedor de carne que se tornou a maternidade, do burnout materno, muitas vezes sofrem não só os milhões de ataques externos, mas também se identificam com esse lugar materno. Nas poucas vezes em que têm a oportunidade de delegar, de dividir tarefas, elas declinam.

Um exemplo. Alguns anos atrás, a guarda compartilhada era um escândalo: "Como eu vou deixar meu filho ficar com o pai metade do tempo, como vai ser isso?"

Poder aceitar a guarda compartilhada como uma divisão igualitária foi fundamental. Não se conseguiu isso por graça e encanto dos homens, mas porque eles não queriam dar pensão. A guarda compartilhada pode ser aproveitada pra entender que você não é tudo na vida do seu filho.

O que a gente esquece de pensar é que mesmo quando as mulheres conseguem dividir as tarefas igualmente, elas continuam com a carga mental, porque elas estão no trabalho, mas ficam pensando se a criança foi com o casaquinho para a casa do pai, se ele vai alimentá-la direito.

Ou quando se está casada, se o pai lembrou de botar na lancheira tal coisa, se a criança chegou com o presentinho pro colega na escola, como é que está a carteira de vacinação... As mulheres continuam tendo toda a logística na cabeça delas, mesmo quando elas dividem as atividades igualmente com os companheiros.

Tem toda uma mudança de mentalidade que pode melhorar. Pode melhorar inclusive um efeito que a gente tem no nascimento dos filhos, que é o fim dos casamentos — eles vinham bem, mas aí não aguentam o ressentimento que se estabelece entre o casal por causa da desigualdade na divisão de tarefas.

Não só as mulheres, mas também os homens, e, com certeza, a sociedade como um todo, têm muito a ganhar saindo da mentalidade maternalista.

BBC News Brasil - Que políticas públicas podem ser pensadas para que as mães brasileiras tenham a possibilidade de exercer outros tipos de maternidade que não apenas o maternalismo?

Iaconelli - Temos muitas leis que precisam ser observadas, como creches em empresas, que não devem ser pensadas só para as mães, mas também para os pais; a licença maternidade e a licença paternidade, que são coisas que a gente não precisa inventar e que os países já fizeram.

A gente tem que fomentar, permitir que as pessoas tenham mais recursos, não sejam demitidas ao voltarem para o trabalho. Elas fazem um serviço à sociedade com os filhos que elas produzem. O Estado precisa que nasçam pessoas, não vamos ser ingênuos achando que esta é uma questão de foro privado.

O Estado tem que entrar, as empresas devem entrar não ajudando a mulher a fazer aquilo que é responsabilidade dela, mas se responsabilizando também pela nova geração.

Para as mulheres ou homens trans que, além de gestarem e parir e quiserem aleitar — a Organização Mundial da Saúde coloca como uma coisa fundamental —, dar condições para a amamentação em todos os lugares públicos possíveis.

A gente tem usado muito uma expressão que foi ficando batida, "a criança precisa de uma aldeia pra ser cuidada", mas uma aldeia precisa de uma criança pra continuar.

A mudança de mentalidade é começar a olhar para o pai como se fosse uma mãe e para a mãe como se ela fosse um pai. O que você ofereceria para cada um ali? Você vai ver que as soluções ficam bem diferentes.

BBC News Brasil - Na sua visão, a centralidade das mães no ideal de criação dos filhos que você descreve no livro impacta a discussão sobre o aborto no Brasil?

Iaconelli - O aborto é um assunto muito sensível, muitas vezes mascarado pelas questões religiosas - lembrando que vivemos num país de Estado laico, ou seja, onde a religião não deveria pautar as escolhas dos cidadãos, que têm diferentes religiões ou valores diferentes. O aborto é o direito à escolha. Mas colocar do lado da mulher o direito à escolha - e eu não estou me esquecendo dos homens trans não, mas eu estou falando da categoria mulher, que é colocada acima de tudo como aquela que deve ser feliz por engravidar -, dar à mulher essa autonomia vai na contramão do maternalismo, que é submeter a mulher à economia de cuidados, uma mulher reprodutiva.

É uma sociedade que não quer colocar na mão da mulher o direito à escolha sobre as questões reprodutivas. Isso tem um enorme custo econômico, social, para a saúde da mulher e para a saúde pública, mas é uma discussão muito permeada por valores maternalistas misturados com religiosidade e machismo, que fazem com que muitas mulheres morram hoje no Brasil porque a gente não consegue encarar essa questão.

BBC News Brasil - Como o discurso maternalista afeta a diversidade dos arranjos afetivos possíveis para a criação dos filhos?

Iaconelli - Embora a gente veja na prática — hoje e historicamente — que a família papai-mamãe-filhinhos é a mais comum, mas não a única, desde sempre existiram avós que cuidaram dos netos em vez dos pais, mães sozinhas, pais sozinhos, casais lésbicos, casais gays. O que acontece é que hoje isso se tornou mais visível e legalizado.

A pergunta que fica é se isso prejudica psiquicamente as crianças. Se a gente está falando de psicanálise, a gente está falando de tentar entender do que uma criança precisa pra se constituir como sujeito e para se desenvolver. A gente sabe, pela clínica, que o essencial pra uma criança é a qualidade de cuidados, que pode ser oferecida por diferentes arranjos: um homem e uma mulher, dois homens, duas mulheres, um trisal.

Crianças também são criadas em lares de acolhimento, abrigos. A gente tem muitas possibilidades.

Desses grupos todos você vai ter fracassos e sucessos, e a clínica psicanalítica é cheia de casais heterossexuais cisgêneros que levam seus filhos pra análise. É claro que os outros arranjos também vão ter seus problemas, também vão trazer seus filhos para a clínica.

Os problemas maiores que essas outras famílias encontram são de estigma, de sofrerem violência. Batalhar contra o maternalismo é também legitimar formas já existentes de cuidado com a infância e com as crianças, mas que precisam ser positivadas.

BBC News Brasil - A criação dos filhos parece ser hoje orientada pelo ideal de "vou dar tudo para que não falte nada". É uma espécie de antídoto para o sofrimento?

Iaconelli - Mais recentemente, já dentro da cultura capitalista, temos, a partir dos anos 70, uma mudança de mentalidade importante que é neoliberalismo, que aumenta a ideia de que o consumo cura. "O novo iPhone vai trazer felicidade pra mim e vai dar tudo certo".

A medicação resolve: "Não está feliz, toma um remédio".

Toda essa ideia nos empurra para um ideal no qual na vida a gente alcançaria um platô de felicidade e o sofrimento seria contingencial. Isso vai totalmente na contramão da descoberta psicanalítica, o sofrimento não é contingencial. Ele faz parte, é intrínseco à nossa existência, nós somos seres que sabemos que vamos morrer, somos seres que estamos sempre perdendo coisas. Perdemos a infância, os avós, a juventude e, no final, perdemos a vida.

A relação que o ser humano tem com a sua existência é diferente dos outros mamíferos, que simplesmente existem. Talvez eles sejam felizes. Nós temos momentos de felicidade, de prazer, de satisfação, de alegria, mas não tem platô.

Então, essa criação dos filhos na atualidade vai caminhando para a ideia de que a gente deveria oferecer para eles a felicidade e arranjar meios de não fazê-los sofrer.

Isso é um engodo terrível, que tem aumentado os casos de depressão, suicídio, ansiedade, automutilação. São quadros que a gente vê nas crianças hoje, de muita hesitação em relação à vida adulta. Porque se você não assume o sofrimento, não tem como assumir a vida adulta — que é uma vida de altos e baixos, como toda vida interessante deveria ser.

Como diria o Contardo Calligaris, quero ter uma vida não feliz, mas interessante, cheia de acontecimentos, bons e ruins.

A falta subjetiva é o que move o desejo, então os pais deveriam oferecer menos para as crianças e permitir que elas aceitem que o sofrimento é parte essencial da existência.

A curiosa diminuição da atividade sexual entre os jovens"

 Quais são as razões da diminuição da atividade sexual entre os jovens?



AO CONTRÁRIO DO QUE O SENSO COMUM E A NEUROSE DESINFORMATIVA POSTULA, os jovens estão MENOS estimulados a vida sexual, a sua prática e executando uma busca por experiências menos "sexuais" e mais IDEALIZADAS, ou romantizadas!

A atual juventude é menos promíscua e menos fértil que a de seus pais e de seus avós.

Psicólogos, sexólogos, sociólogos e educadores estão tentando entender as razões da inatividade sexual dos mais jovens. Algumas explicações já foram fornecidas por diversos estudos, como o aumento do consumo de pornografia on-line (cyberpornô), o tempo dispendido em games e a maior interatividade com as redes sociais. Porém, há pelo menos duas outras especulações sobre o declínio da atividade sexual da geração Z, que são muito importantes para a nossa reflexão.





Uma das possíveis causas é o retardamento psicoemocional que os adolescentes de hoje estão experimentando. A geração Z está se desenvolvendo mais lentamente – física e emocionalmente – que as gerações passadas. Os centennials são caracterizados, entre outras coisas, por crescimento vagaroso, ou seja, de modo ímpar, eles estão assumindo menos responsabilidades na vida, o que os afeta de muitas maneiras; do desempenho escolar aos relacionamentos afetivos. Conforme observou o psiquiatra inglês Theodore Dalrymple em seu ensaio “Podres de Mimados” (texto que trata de forma ácida, os efeitos colaterais do romantismo no comportamento contemporâneo no Reino Unido), a atual geração de jovens é a mais infantilizada de todos os tempos. É comum, por exemplo, encontrarmos meninos e meninas de 15 anos que manifestam o desejo de mudar o mundo em suas redes sociais, porém não sabem organizar a própria agenda ou manter o mínimo de disciplina nos estudos. Esse fenômeno de retardamento social dos centennials é chamado de overparinting (excesso de cuidado e intervencionismo dos pais na vida dos filhos). Segundo os estudos de Julie Lythcott-Haims, ex-reitora da Universidade de Stanford, a atitude superprotetora dos pais em relação aos filhos está gerando adolescentes imaturos e medrosos.

Dessa forma, à medida que a geração Z continua atrasando marcos importantes da vida adulta, como emancipação financeira, morar sozinho, casamento e parto, ela também demonstra menos pressa em fazer sexo. A pesquisa do Instituto Karolinska (mencionada acima) endossa essa teoria ao revelar que rapazes solteiros, de baixa renda, desempregados ou empregados em meio período, tinham maior probabilidade de não ter feito sexo no último ano do que aqueles que eram casados, tinham renda mais alta ou tinham empregos.

Outra tentativa de explicar a diminuição do sexo entre os centennials é associá-la ao aumento do sexo oral e da masturbação. Em seu livro “Garotas e Sexo”, Peggy Orenstein constatou um aumento da prática de sexo oral por parte das meninas entrevistadas para seu livro e também observou que a maioria delas descreviam a oralidade sexual como uma prática banal. Orenstein coletou muitos depoimentos de meninas que afirmavam praticar o sexo oral como uma alternativa segura para o ato sexual. Rachel, uma das meninas entrevistas por Orentein, comentando sobre o porquê de fazer sexo oral nos meninos, disse: “Você não perde a virgindade, não pode engravidar nem pegar uma DST. Então é mais seguro”.

Pela ótica de Nikita D. Coulombe e Philip Zimbardo (professor emérito da Universidade de Stanford), o consumo da pornografia e a prática excessiva da masturbação são as causas da diminuição do sexo entre os adolescentes nos EUA. No livro “Man, Interrupted” [Homem, interrompido], Zimbardo descreve o fenômeno da “procrasturbação” – quando os rapazes procrastinam as responsabilidades da vida, sublimando-as por meio da masturbação – como uma das principais causas da diminuição do sexo entre eles. Para Zimbardo os rapazes estão cada vez mais com medo de interações reais com as garotas, o que os leva à masturbação e à experimentação dos fracassos, acadêmico e social.

Seguindo as tendências de menos sexo dos centennials, podemos prospectar alguns cenários possíveis a afetarem o tecido social. Por exemplo, o conceito de família tradicional se desintegrará pouco a pouco (o que já tem acontecido), dando lugar para novas modalidades de arranjos familiares. Haverá também um processo de diminuição da população ativa no Brasil, o que comprometerá a previdência social, com menos gente trabalhando para sustentar os idosos aposentados. Em última instância, como fruto desta mudança comportamental dos adolescentes, o processo de analfabetismo emocional, que já experimentam, se adensará, produzindo aquilo que Zygmunt Bauman vaticinara há décadas atrás: uma grande liquidez geracional.

-iGen é um livro de não ficção de 2017 de Jean Twenge que estuda os estilos de vida, hábitos e valores dos americanos nascidos entre 1995 e 2012, a primeira geração a atingir a adolescência depois que os smartphones se espalharam. Twenge refere-se a esta geração como a "iGeneration".

Em “IGen” – extensa pesquisa com a nova geração – a psicóloga Jean W. Twenge escreveu: “A verdade, porém, é que os centennials são menos propensos a fazer sexo na adolescência e na vida adulta”. Refletindo os resultados de sua ampla pesquisa, Twenge afirma que os adolescentes hoje, durante o ensino médio, mantém menos interação sexual que os millennials e que seus próprios avós, quando tinham a mesma idade. Segundo o levantamento da psicóloga, os membros da geração X, nascidos nos 70, (pais da maioria dos centennials), relataram uma média de 10,05 parceiros sexuais ao longo da vida, ao passo que os membros da geração Z afirmaram ter feito sexo com 5,29 parceiros. Revelando as mesmas mudanças, um estudo realizado em 2020 com 9.500 pessoas, pelo Instituto Karolinska na Suécia em parceria com a Universidade de Indiana, concluiu que 30,9 % dos rapazes entre 18 a 24 anos não fizeram sexo nos últimos doze meses, antes da entrevista. Isso significa que um em cada 3 não praticaram sexo em um período de um ano. Em 2002, num estudo conduzido pelo mesmo instituto de pesquisa, a abstinência sexual entre os rapazes era de 18,9%. Entre as meninas, a abstinência saltou de 15,1% em 2002 para 19,15% em 2018.

Em minha pesquisa de campo, realizada entre os anos de 2018 a 2020, com trezentos alunos de ensino médio da Rede Pública de Educação no interior de São Paulo, 67% (n=112) dos rapazes entrevistados disseram não ter se relacionado sexualmente nos últimos doze meses e 73% (n=94) das meninas também afirmaram o mesmo. O que me chamou a atenção nos depoimentos dos estudantes foi a substituição que muitos fizeram do sexo pela prática do sexting. Quando perguntei a Douglas, 17, a razão dele não ter feito sexo nos últimos doze meses, ele me respondeu: “Quando bate àquela vontade transar, eu já chamo alguma novinha no contatinho e daí a vontade passa”. Deyse, 15, me respondeu que não fazia sexo, “por uma questão de segurança”. Segundo a jovem, “por que me expor fazendo sexo, quando posso me divertir virtualmente?”.

A diminuição do sexo entre os membros da geração Z – ou o “apagão sexual” como dizem alguns psicólogos – é bem ilustrada na queda da gravidez na adolescência no Brasil. Segundo levantamento publicado em 2017, realizado pelo Sistema de Informação Sobre Nascidos Vivos (Sinasc), de 2004 a 2015 houve uma queda de 17% na taxa de natalidade de mães entre 10 e 19 anos. Como consequência da redução da atividade sexual, algumas Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) também estão diminuindo entre a nova geração.. 

COLETÂNEA PARA APRESENTAR JUNG