São posições que ainda vigoram e com as quais a gente tem que tomar muito cuidado, porque são fruto de uma ideologia que começa na modernidade, mas fica muito mais forte com a ideologia maternalista.
BBC News Brasil - De que forma o maternalismo "captura" as mulheres?
Iaconelli - Mães continuam sendo responsabilizadas, mas, além disso, elas continuam achando que a responsabilidade é delas. Elas continuam tirando da conta os homens — ou porque eles não estavam à altura mesmo, ou porque elas acham que cabe a elas, capturadas por essa mentalidade.
Um dos problemas que a gente enfrenta na clínica é como as mulheres que reclamam desse moedor de carne que se tornou a maternidade, do burnout materno, muitas vezes sofrem não só os milhões de ataques externos, mas também se identificam com esse lugar materno. Nas poucas vezes em que têm a oportunidade de delegar, de dividir tarefas, elas declinam.
Um exemplo. Alguns anos atrás, a guarda compartilhada era um escândalo: "Como eu vou deixar meu filho ficar com o pai metade do tempo, como vai ser isso?"
Poder aceitar a guarda compartilhada como uma divisão igualitária foi fundamental. Não se conseguiu isso por graça e encanto dos homens, mas porque eles não queriam dar pensão. A guarda compartilhada pode ser aproveitada pra entender que você não é tudo na vida do seu filho.
O que a gente esquece de pensar é que mesmo quando as mulheres conseguem dividir as tarefas igualmente, elas continuam com a carga mental, porque elas estão no trabalho, mas ficam pensando se a criança foi com o casaquinho para a casa do pai, se ele vai alimentá-la direito.
Ou quando se está casada, se o pai lembrou de botar na lancheira tal coisa, se a criança chegou com o presentinho pro colega na escola, como é que está a carteira de vacinação... As mulheres continuam tendo toda a logística na cabeça delas, mesmo quando elas dividem as atividades igualmente com os companheiros.
Tem toda uma mudança de mentalidade que pode melhorar. Pode melhorar inclusive um efeito que a gente tem no nascimento dos filhos, que é o fim dos casamentos — eles vinham bem, mas aí não aguentam o ressentimento que se estabelece entre o casal por causa da desigualdade na divisão de tarefas.
Não só as mulheres, mas também os homens, e, com certeza, a sociedade como um todo, têm muito a ganhar saindo da mentalidade maternalista.
BBC News Brasil - Que políticas públicas podem ser pensadas para que as mães brasileiras tenham a possibilidade de exercer outros tipos de maternidade que não apenas o maternalismo?
Iaconelli - Temos muitas leis que precisam ser observadas, como creches em empresas, que não devem ser pensadas só para as mães, mas também para os pais; a licença maternidade e a licença paternidade, que são coisas que a gente não precisa inventar e que os países já fizeram.
A gente tem que fomentar, permitir que as pessoas tenham mais recursos, não sejam demitidas ao voltarem para o trabalho. Elas fazem um serviço à sociedade com os filhos que elas produzem. O Estado precisa que nasçam pessoas, não vamos ser ingênuos achando que esta é uma questão de foro privado.
O Estado tem que entrar, as empresas devem entrar não ajudando a mulher a fazer aquilo que é responsabilidade dela, mas se responsabilizando também pela nova geração.
Para as mulheres ou homens trans que, além de gestarem e parir e quiserem aleitar — a Organização Mundial da Saúde coloca como uma coisa fundamental —, dar condições para a amamentação em todos os lugares públicos possíveis.
A gente tem usado muito uma expressão que foi ficando batida, "a criança precisa de uma aldeia pra ser cuidada", mas uma aldeia precisa de uma criança pra continuar.
A mudança de mentalidade é começar a olhar para o pai como se fosse uma mãe e para a mãe como se ela fosse um pai. O que você ofereceria para cada um ali? Você vai ver que as soluções ficam bem diferentes.
BBC News Brasil - Na sua visão, a centralidade das mães no ideal de criação dos filhos que você descreve no livro impacta a discussão sobre o aborto no Brasil?
Iaconelli - O aborto é um assunto muito sensível, muitas vezes mascarado pelas questões religiosas - lembrando que vivemos num país de Estado laico, ou seja, onde a religião não deveria pautar as escolhas dos cidadãos, que têm diferentes religiões ou valores diferentes. O aborto é o direito à escolha. Mas colocar do lado da mulher o direito à escolha - e eu não estou me esquecendo dos homens trans não, mas eu estou falando da categoria mulher, que é colocada acima de tudo como aquela que deve ser feliz por engravidar -, dar à mulher essa autonomia vai na contramão do maternalismo, que é submeter a mulher à economia de cuidados, uma mulher reprodutiva.
É uma sociedade que não quer colocar na mão da mulher o direito à escolha sobre as questões reprodutivas. Isso tem um enorme custo econômico, social, para a saúde da mulher e para a saúde pública, mas é uma discussão muito permeada por valores maternalistas misturados com religiosidade e machismo, que fazem com que muitas mulheres morram hoje no Brasil porque a gente não consegue encarar essa questão.
BBC News Brasil - Como o discurso maternalista afeta a diversidade dos arranjos afetivos possíveis para a criação dos filhos?
Iaconelli - Embora a gente veja na prática — hoje e historicamente — que a família papai-mamãe-filhinhos é a mais comum, mas não a única, desde sempre existiram avós que cuidaram dos netos em vez dos pais, mães sozinhas, pais sozinhos, casais lésbicos, casais gays. O que acontece é que hoje isso se tornou mais visível e legalizado.
A pergunta que fica é se isso prejudica psiquicamente as crianças. Se a gente está falando de psicanálise, a gente está falando de tentar entender do que uma criança precisa pra se constituir como sujeito e para se desenvolver. A gente sabe, pela clínica, que o essencial pra uma criança é a qualidade de cuidados, que pode ser oferecida por diferentes arranjos: um homem e uma mulher, dois homens, duas mulheres, um trisal.
Crianças também são criadas em lares de acolhimento, abrigos. A gente tem muitas possibilidades.
Desses grupos todos você vai ter fracassos e sucessos, e a clínica psicanalítica é cheia de casais heterossexuais cisgêneros que levam seus filhos pra análise. É claro que os outros arranjos também vão ter seus problemas, também vão trazer seus filhos para a clínica.
Os problemas maiores que essas outras famílias encontram são de estigma, de sofrerem violência. Batalhar contra o maternalismo é também legitimar formas já existentes de cuidado com a infância e com as crianças, mas que precisam ser positivadas.
BBC News Brasil - A criação dos filhos parece ser hoje orientada pelo ideal de "vou dar tudo para que não falte nada". É uma espécie de antídoto para o sofrimento?
Iaconelli - Mais recentemente, já dentro da cultura capitalista, temos, a partir dos anos 70, uma mudança de mentalidade importante que é neoliberalismo, que aumenta a ideia de que o consumo cura. "O novo iPhone vai trazer felicidade pra mim e vai dar tudo certo".
A medicação resolve: "Não está feliz, toma um remédio".
Toda essa ideia nos empurra para um ideal no qual na vida a gente alcançaria um platô de felicidade e o sofrimento seria contingencial. Isso vai totalmente na contramão da descoberta psicanalítica, o sofrimento não é contingencial. Ele faz parte, é intrínseco à nossa existência, nós somos seres que sabemos que vamos morrer, somos seres que estamos sempre perdendo coisas. Perdemos a infância, os avós, a juventude e, no final, perdemos a vida.
A relação que o ser humano tem com a sua existência é diferente dos outros mamíferos, que simplesmente existem. Talvez eles sejam felizes. Nós temos momentos de felicidade, de prazer, de satisfação, de alegria, mas não tem platô.
Então, essa criação dos filhos na atualidade vai caminhando para a ideia de que a gente deveria oferecer para eles a felicidade e arranjar meios de não fazê-los sofrer.
Isso é um engodo terrível, que tem aumentado os casos de depressão, suicídio, ansiedade, automutilação. São quadros que a gente vê nas crianças hoje, de muita hesitação em relação à vida adulta. Porque se você não assume o sofrimento, não tem como assumir a vida adulta — que é uma vida de altos e baixos, como toda vida interessante deveria ser.
Como diria o Contardo Calligaris, quero ter uma vida não feliz, mas interessante, cheia de acontecimentos, bons e ruins.
A falta subjetiva é o que move o desejo, então os pais deveriam oferecer menos para as crianças e permitir que elas aceitem que o sofrimento é parte essencial da existência.