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Paulo Freire e os rinocerontes de cabeça pra baixo

A sensação de que o Brasil virou de cabeça para baixo vem acompanhando boa parte do país há algum tempo, mas fica sempre a dúvida se isso é fruto da inépcia ou se é método do governo. Acredito numa combinação forte das duas coisas, e um estudo curioso sobre rinocerontes talvez sirva de analogia para pensarmos sobre essa metodologia do caos.


A pesquisa, feita pela Universidade de Cornell, dos Estados Unidos, mostrou que é mais seguro transportar rinocerontes voando de cabeça para baixo do que em macas, porque assim basta içá-los, o que torna a operação mais ágil e reduz a dose necessária de anestésico. Ou seja, é mais barato e mais seguro.


O estudo é tão inusitado que ganhou o prêmio Ig Nobel, criado pela Universidade de Harvard como uma espécie de paródia ao Nobel, e tem um objetivo nobre, voltado à preservação dos rinocerontes na Namíbia, mas gera reflexões em outras direções quando fazemos um paralelo com a nossa realidade.



A cegueira de uma parcela da população que continua idolatrando o presidente parece uma combinação dessas estratégias de içamento e sedação. Estão semi adormecidos e de cabeça para baixo, mas aqui a motivação dos que os transportam não é a preservação da vida dos sedados. O objetivo é que sirvam apenas de eco e trampolim para os pulos mal dados de um governo “manco, xoxo, fraco e inconsistente”.


Neste domingo em que Paulo Freire completaria 100 anos, vale lembrar algumas reflexões de seu livro “Pedagogia do Oprimido”, que tem tudo a ver com isso.


Quando ele pontua as estratégias dos opressores para a perpetuação da opressão, aponta como métodos a postura antidiálogo e a ação de dividir para conquistar. Destaca ainda o esforço em “matar nos homens a sua condição de ‘admiradores’ do mundo”. Como os opressores não conseguem fazer isso de forma completa, acabam por mitificar tudo à sua volta, levando as massas conquistadas e oprimidas à admiração de um falso mundo: “Um mundo de engodos que, alienando-as mais ainda, as mantenha passivas em face dele”.


A obra é mais pertinente do que nunca e alguns trechos parecem ter sido escritos para os dias de hoje. Um deles, que fala sobre essa “ação divisória”, soa como uma análise direta da forma de agir do governo brasileiro: “encontramos nela uma certa conotação messiânica, através da qual os dominadores pretendem aparecer como salvadores dos homens a quem desumanizam. No fundo, porém, o messianismo contido na sua ação não pode esconder o seu intento. O que eles querem é salvar-se a si mesmos. É salvar sua riqueza, seu poder, seu estilo de vida, com que esmagam aos demais”.


Quando lembramos dos casos de nepotismo, rachadinha, envolvimento com milícias, crueldade diante da pandemia etc, fica claro que não há nada mais atual.


Há ainda outro paralelo com os rinocerontes que também afeta essa realidade. Eles têm o hábito de marcar seus territórios com grandes quantidades de excrementos, formando pilhas que podem chegar a um metro de altura à sua volta. Quando se olha para as consequências do caos criado pelo governo atual, percebe-se que não apenas estão sedando e virando de cabeça para baixo uma parte do país, como ainda estão marcando o território brasileiro da mesma forma que os rinocerontes.


Como resolver isso?


É aí que vale trazer Paulo Freire de volta à mesa. E, para quem já cansou de ouvir o presidente falando que é contra o “viés ideológico” na educação, talvez uma das principais propostas de Freire vá deixar os bolsonaristas com um nó na cabeça: “É necessário desideologizar”, diz o grande intelectual no livro.


Para isso, ele prega o diálogo como um caminho fundamental para a libertação. O objetivo maior, segundo Paulo Freire, “não é ‘desaderir’ os oprimidos de uma realidade mitificada em que se acham divididos para ‘aderi-los’ a outra”, mas sim proporcionar aos oprimidos maneiras de reconhecer o porquê e o como de sua adesão a esses mitos, para que se libertem dessa ilusão e se unam em busca de uma transformação verdadeira da realidade injusta.


A jornada até lá é tortuosa, longa e cheia de rinocerontes voadores no caminho, mas a última frase do livro de Paulo Freire talvez seja um dos maiores anseios dos brasileiros hoje: “que permaneça nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar”.


* Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro

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