Escrito por Giovani Belintani * no Centro Riopretense de Estudos Psicanalíticos de São José do Rio Preto
RESUMO
O presente artigo tem como propósito oferecer algumas reflexões sobre o tema Histeria a partir de diferentes enfoques: as concepções tanto históricas quanto atuais da histeria; a histeria e sua relação com a psicanálise, enfatizando a importância que as "histéricas" tiveram para Sigmund Freud na descoberta do inconsciente e na elaboração da teoria e da técnica psicanalítica, e num terceiro momento, o autor apresenta um caso clínico exemplificando a evolução de um tratamento de uma paciente cujas manifestações são de ordem histérica.
Palavras-chave: Histeria, Psicanálise
Introdução
A histeria vem sendo objeto de estudo desde os primórdios da medicina, na Grécia Antiga com Hipócrates. O diagnóstico para a pessoa histérica era conhecido como neurose histérica ou histeria de conversão. Hoje o diagnóstico é nomeado como transtorno dissociativo ou conversivo. As pessoas que manifestavam tais sintomas e comportamentos, expostos no decorrer do presente artigo, foram alvo de estudo não somente de médicos, mas de neurologistas, psiquiatras e até de padres e bispos da época. Foi por meio dos atendimentos às histéricas, que Sigmund Freud, no final do século XIX, descobriu o inconsciente, elaborando um método de tratamento, a Psicanálise. E desde a época de Freud que esse tratamento vem sendo utilizado em pacientes com o referido diagnóstico.
Objetivo - CONCEPÇÕES HISTÓRICAS DA HISTERIA
O termo histeria é derivado da palavra grega hystera e significa matriz. De acordo com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, matriz é o "lugar onde algo se gera ou cria; órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; útero" (1988, p. 422).
Hipócrates, médico renomado da Grécia Antiga (460-377 a.C) entendia a histeria como sendo uma doença orgânica de origem uterina e, portanto, especificamente feminina que afetava todo o corpo por sufocações da matriz. Ele supunha que a histeria se desenvolvia pela privação de relações sexuais, dessecando o útero, que perderia peso e se deslocaria pelo corpo em busca da umidade necessária. A paciente teria sua respiração afetada, desenvolvendo convulsões se o útero subisse até o hipocôndrio e estacionasse nesse órgão. Caso o útero prosseguisse sua subida e atingisse o coração, a paciente emitiria sinais de ansiedade, opressão e vômitos.
Na Idade Média, "período histórico compreendido entre o começo do séc. V e meados do séc. XV" (Ferreira, 1988, p. 348-349), a histeria deixou de ser abordada pela medicina e, sob a influência das idéias religiosas mais especificamente as concepções agostinianas, passou a ser objeto da Teologia. De acordo com as concepções religiosas da época: "O homem, dotado de uma alma imortal, seria sujeito a tentação pelo não cumprimento de seus deveres religiosos ou por não conduzir a sua vida dentro do espírito cristão" (Ramadam, 1985, p. 55).
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon afirmam que "as convulsões e as famosas sufocações da matriz eram consideradas a expressão de um prazer sexual e, por conseguinte, de um pecado" (1998, p. 338). A mulher era vista como sendo possuída por um demônio, que a fazia agir involuntariamente, simulando doenças.
A Igreja Católica Romana, por meio da Inquisição1, investigava e reconhecia os casos de bruxaria e mandava para a fogueira todos aqueles que se comportavam histericamente. Durante mais de dois séculos, a caça às bruxas fez muitas vítimas, mesmo a opinião médica se opondo contra essa concepção demoníaca da possessão.
Ramadam considera que no período clássico (século XVII até parte do século XVIII), a histeria era entendida como desenvolvida pelo efeito de "um calor interno que propagaria através de todo o corpo uma efervescência, uma ebulição, manifestando-se sem cessar em convulsões e espasmos" (1985, p. 56). Esse calor seria representante da paixão, entusiasmo ou ardor amoroso. Sob essa perspectiva, a histeria é associada a moças que procuram namorados, jovens viúvas ou separadas.
Em meados do século XVIII com as colaborações de Franz Anton Mesmer, as concepções demoníacas da histeria cederam às concepções científicas da mesma. A histeria deixa de ser objeto de investigação da Igreja para ser uma doença dos nervos, cabendo à medicina estudá-la e tratá-la.
Mesmer sustentou que as doenças nervosas tinham como origem um desequilíbrio na destribuição de um fluído universal. Assim, bastava que o médico, transformado em magnetizador, provocasse crises nos pacientes, em geral mulheres, para curá-los mediante o restabelecimento do equilíbrio do fluído. (Roudinesco & Plon, 1998, p. 338)
Em 1843, na Inglaterra, o médico escocês James Braid substituiu a teoria do fluído da histeria pela idéia de estimulação físico-químico-psicológica da histeria, mostrando a inutilidade das intervenções do tipo magnética. Braid evidencia a palavra hipnotismo2 nos seus estudos científicos. Ainda na segunda metade do século XVIII, com os estudos e pesquisas do neurologista francês Jean-Martin Charcot, a histeria é tratada como uma neurose. A moderna noção de uma neurose histérica subentendia uma causa traumática de ordem genital tornando-se uma doença funcional, de origem hereditária, afetando tanto os homens quanto as mulheres. Charcot utilizava a hipnose3 para demonstrar o fundamento de suas hipóteses. Ele hipnotizava as loucas do hospital parisiense Salpêtrière, fabricando sintomas histéricos para suprimi-los de imediato, comprovando o caráter neurótico da doença.
Sigmund Freud, médico austríaco, entre 1888 a 1893, usufruindo dos achados de Charcot sobre os aspectos traumáticos da histeria, afirma com sua Teoria da Sedução que o trauma vivido pelo paciente histérico era de origem sexual, sublinhando que a histeria era fruto de um abuso sexual realmente vivido pelo sujeito na infância (sedução real). Num segundo momento, apresentando a noção de fantasia4, renuncia à teoria da sedução, introduzindo as idéias de um trauma, não de ordem física, mas sim de ordem psíquica. Na Comunicação Preliminar dos Estudos sobre a histeria, Freud nos alerta para o fato de que a conexão entre o acontecimento precipitante e o desenvolvimento da histeria freqüentemente é bem clara. E completa que "em outros casos, a conexão causal não é tão simples. Consiste somente no que poderia ser denominado uma relação simbólica entre a causa precipitante e o fenômeno patológico - uma relação tal como as pessoas saudáveis forma os sonhos" (Freud, 1895/1974, p. 45).
Roudinesco e Plon (1998, p. 340) escrevem que foi nos Estudos sobre a histeria, que Freud propôs "os grandes conceitos de uma nova apreensão do inconsciente: o recalcamento, a ab-reação, a defesa, a resistência e, por fim, a conversão". Citam também que com a publicação, em 1900, de A Interpretação dos Sonhos, "o conflito psíquico inconsciente é que foi reconhecido por Freud como a principal causa da histeria" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 340). E continuam enfatizando os achados de Freud, que "ao lado da realidade material, existia uma realidade psíquica do sujeito", que era de igual importância na história do seu desenvolvimento. E afirmam que "em seguida, a teorização da sexualidade infantil permitiu a Freud identificar o conflito nuclear da neurose histérica, desenvolvendo os conceitos de Complexo de Édipo e Angústia de Castração" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 340).
As epidemias histéricas do fim do século XIX contribuíram de tal maneira para o nascimento e difusão do freudismo que a própria noção de histeria desapareceu do campo da clínica. A partir de 1914, ninguém mais ousou falar em histeria, a tal ponto que a palavra foi identificada com a própria psicanálise.
O debate sobre histeria ressurge com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando as discussões geravam em torno de uma nova forma de etiologia traumática e da neurose de guerra. Por fim, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com o desenvolvimento dos trabalhos da medicina psicossomática de inspiração psicanalítica, o termo histeria de conversão teve uma atenção especial.
A partir da década de 1960, com os debates norte-americanos e ingleses sobre a Self Psychology e os borderlines, a idéia de personalidade múltipla, termo utilizado para caracterizar a personalidade do indivíduo histérico, é alvo de estudos de médicos, psiquiatras e psicanalistas.
O ROMANCE DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Do amor e outros demônios, obra do escritor colombiano Gabriel García Márquez, conta a história da adolescente Sierva Maria de Todos los Ángeles. Seu pai, Ygnacio, é um crioulo rico. Sua mãe, Bernarda Cabrera, foi uma plebéia pobre até conhecer Ygnacio. Ángeles foi fruto de um plano da mãe para casar com Ygnacio por causa dos seus bens materiais. Rejeitada pelos pais, ela foi criada junto com os escravos do próprio pai. Ela recebia da escrava Dominga de Adviento todo carinho e cuidado materno, necessário para a sua criação. Ángeles cresceu aprendendo a cultura africana, suas línguas e danças. Nasceu quase morta com o cordão umbilical enrolado no pescoço. A parteira acreditava que ela não iria sobreviver. Foi então que Dominga de Adviento prometeu a seus santos que se lhe fosse concedida a graça de viver não se cortaria o cabelo da menina até a noite de seu casamento. Mal acabava de fazer a promessa, a criança começou a chorar, mais viva do que nunca. Quando tinha 9 anos, Adviento faleceu, e Ángeles vai morar com seus pais pela primeira vez, mas por pouco tempo. Sua mãe a expulsa de casa quando encontra uma de suas bonecas flutuando dentro de uma tina5 e, acreditando que aquilo fosse um feitiço africano contra ela, alega que não haveria lugar para as duas na casa. Assim, Ángeles volta a morar com os escravos. Aos 11 anos foi mordida por um cachorro no tornozelo esquerdo numa ocasião que estava com a mulata Caridad del Cobre. Elas faziam compras para a festa de aniversário de 12 anos da menina. Márquez escreve que "era assunto de todo dia os cães sem dono morderem alguém quando andavam perseguindo gatos ou brigando com os urubus por alguma carniça de rua..." (1994, p. 15). Dois dias após a festa, Caridad del Cobre, por descuido, comenta com Bernarda Cabrera sobre a mordida do cachorro em sua filha. Bernarda decide examiná-la numa noite enquanto a menina dormia, temendo que a filha pudesse ter sido mordida por um cachorro raivoso. Cabrera decide não dar importância para o fato uma vez que o critério da época era o de não se pensar em raiva, enquanto não se manifestavam os primeiros sintomas. Critério este que não foi aceito pelo pai, que, imediatamente, procura o mais notável e discutido médico da cidade Abrenuncio de Sá Pereira Cão, para que ele examinasse sua filha. Ygnacio assume os cuidados da filha e a administração da casa. Assim, Ángeles volta a morar com seus pais. Márquez, se referindo ao pai, escreve: "A primeira coisa que fez foi devolver à menina o quarto de dormir de sua avó marquesa, de onde fora tirada para dormir com os escravos" (1994, p. 38-39). Ángeles, não contente nesse novo ambiente, foge logo na primeira noite e volta para o aconchego dos escravos, no seu mundo africano. A criada Caridad del Cobre, em obediência à ordem de Ygnacio, fica responsável pelos cuidados da menina. Abrenuncio de Sá Pereira Cão, na sua consulta com Ángeles, diz que o prognóstico não era alarmante. "A ferida estava longe da área de maior risco, e ninguém lembrava que tivesse sangrado. O mais provável era que Sierva Maria não contraísse raiva", e sugere para a menina a receita da felicidade. "...toquem música, encham a casa de flores, façam cantar os passarinhos, levem-na para ver o pôr-do-sol no mar, dêem-lhe tudo o que possa fazê-la feliz" (Márquez, 1994, p. 51). Mas nada disso podia evitar que Ángeles tivesse sua primeira crise e, durante as duas semanas seguintes, teve vertigens, convulsões, espasmos, delírios, solturas de ventre e de bexiga, retorcia-se no chão uivando de dor e de fúria. Submeteu-se ao tratamento dos escravos sendo trancada nua na dispensa de cebolas. Passou pelas mãos de outros três médicos, de curandeiros e de mestres em feitiçaria. Com a índia Sagunta, Ángeles foi vítima da receita de Santo Humberto. A índia esfregava seu corpo lambuzado com ungüentos6 de índios contra o corpo nu da menina que era submetida à força. Com Sagunta, o pai desiste de procurar ajuda de médicos e passa a buscar apoio divino. O bispo do lugar, Dom Toríbio de Cáceres y Virtudes, em conversa com o pai, questiona-o a respeito das manifestações da filha e sugere que ela estaria sendo possuída pelo demônio. O pai, aceitando as orientações do bispo, leva a filha para o convento de Santa Clara para ser exorcizada. Ángeles é presa no pavilhão solitário, que serviu de cárcere da Inquisição, e amarrada à cama pelas mãos e pés, depois de três meses após ter sido mordida pelo cachorro e não apresentando nenhum sintoma de raiva. Certo dia no refeitório do convento, durante o almoço, Ángeles fora rodeada por noviças que admiravam seu colares. Uma delas tentou arrancá-los, deixando-a muito irritada.
Sierva Maria se encabritou. Com um repelão, tirou de cima as guardiãs que tentavam subjugá-la. Subiu na mesa, correu de uma ponta a outra gritando como uma possessa de verdade que não se deixa dominar. Quebrou tudo quanto encontrou no caminho, pulou pela janela e desfez os caramanchões do pátio, alvoroçou as colméias e derrubou as cercas dos estábulos e dos currais. As abelhas se dispersaram e os animais em disparada se precipitaram uivando de pânico até os dormitórios da clausura. (Márquez, 1994, p. 104)
Daí por diante, todos os acontecimentos eram atribuídos ao malefício de Ángeles. Noviças declararam que ela voava com umas asas transparentes que emitiam um zumbido fantástico. Boatos se espalharam pelo convento de que os porcos estavam envenenados, de que as águas provocavam visões premonitórias, de que uma das galinhas espantadas saiu voando por cima dos telhados até desaparecer no horizonte do mar. Assim, a cela de Ángeles se transformou no centro da curiosidade de todos e ela passou a receber visitas constantes das freiras. Elas queriam que a menina levasse até o demônio seus pedidos mais impossíveis. Ángeles, aproveitando da situação, se divertia imitando vozes de degolados, de mortos, de monstros satânicos, etc. Uma noite sua cela é assaltada por um grupo de freiras que roubaram seus colares. Durante a fuga, a comandante do assalto tropeça nas escadas e fratura o crânio. Márquez escreve que "suas companheiras não tiveram um instante de paz enquanto não devolveram à dona os colares roubados. Ninguém mais tornou a perturbar as noites da cela" (1994, p. 106).
Cayetano Alcino del Espírito Santo Delaura y Escudero, padre espanhol com 36 anos de idade, é indicado pelo bispo para ser o exorcista de Ángeles. Desde os primeiros encontros, Delaura sabia que não se tratava de um caso de possessão demoníaca e supunha que a moça estava somente assustada. Ele vai ao encontro de Ygnacio para colher informações a respeito de sua ferida no tornozelo, e, na conversa com o médico Pereira Cão, ele pôde aprender bastante sobre a raiva e que essa doença era facilmente confundida com possessões demoníacas.
O médico fez uma exposição erudita e inteligente sobre a raiva desde a origem da humanidade, sobre seus estragos impunes e a incapacidade milenar da ciência médica para impedi-los. Deu exemplos lamentáveis de como sempre fora confundida com a possessão demoníaca, assim como certas formas de loucura e outras perturbações do espírito. Quanto a Sierva María, depois de quase cento e cinqüenta dias, não parecia provável que a contraísse. O único perigo, concluiu Abrenuncio, era que morresse, como tantos outros, em conseqüência da crueldade dos exorcismos. (Márquez, 1994, p. 172)
Mas, todo o esforço de Delaura foi em vão, pois o bispo não considera suas conclusões e ordena que prossiga os preparativos para as sessões de exorcismos. Delaura se apaixona por Ángeles e recitações de versos de amor tomam lugar das supostas rezas do exorcismo. Assim, eles puderam ficar juntos durante as noites em que Delaura dormia com ela em sua cela, até o momento que seu desejo foi afetado pelo seu arrependimento moral, permitindo que os dois jovens apaixonados permanecessem virgens. Delaura é destituído de seu cargo e encaminhado para ser enfermeiro de pacientes leprosos em um hospital. O próprio bispo é quem assume as sessões de exorcismo.
No dia 27 de abril, a cela de Ángeles foi invadida. Vieram buscá-la pois as sessões de exorcismos teriam início.
Arrastaram-na para o tanque, lavaram-na a baldes de água, despojaram-na aos puxões de seus colares e puseram-lhe o camisolão brutal dos hereges. Uma irmã jardineira cortou-lhe a cabeleira até a altura da nuca com quatro mordidas de uma tesoura de podar e atirou-a numa fogueira acesa no pátio. A irmã cabeleireira acabou de tosar-lhe os cabelos até o tamanho de meia polegada, como usavam as clarissas debaixo da mantilha, e foi lançando-os ao fogo à medida que cortava. Sierva María viu a deflagração dourada, ouviu o crepitar da lenha virgem e sentiu a exalação acre de chifre queimado sem que se movesse um músculo de seu rosto impenetrável. Por fim lhe puseram uma camisa-de-força, a cobriram com um trapo fúnebre, e dois escravos a levaram à capela numa padiola de soldados. (Márquez, 1994, p.193-194)
De acordo com Araújo, as duas naturezas pelas quais a Inquisição julgava os crimes eram: "De um lado, estavam aqueles contra a fé, que eram considerados os mais graves e tinham as penas mais severas; de outro, os contra o moral e os costumes, que comportavam toda uma gama de modalidades, tais como bigamia7, sodomia8, feitiçaria etc., e que, inclusive, se misturavam com o campo religioso". O caso de Ángeles ajusta-se no segundo tipo de crime. Conseqüentemente, como punição, ela tem sua cabeça raspada, deve vestir o sambentino, ser presa e ficar amarrada. Como assinala Araújo, "seu único motivo para a condenação foi a materialização do demônio nos imaginados sinais de raiva" (2000, p. 12).
Ángeles sente muita a ausência de Delaura e fica sem saber os motivos pelos quais ele não ia mais vê-la durante as noites. No dia 29 de maio, quando deveria ser levada para sua última sessão de exorcismo, a guardiã encontra-a morta na cama.
Dessa forma ficam ilustradas na obra de Gabriel García Márquez vidas como a de Ángeles, que foram vítimas de uma crença religiosa e objetos de investigação da Inquisição da Igreja Católica Romana.
Os repórteres Alexandre Mansur e Luciana Vicária escrevem:
Até o século XIX, crises histéricas ou casos de dupla personalidade eram interpretados por padres católicos como possessões demoníacas. Com o avanço da ciência, varreu-se o obscurantismo. Na década de 60, o Concílio Vaticano II decretou que apenas alguns sacerdotes, nomeados pela Igreja, poderiam expulsar demônios. Para regulamentar os rituais quase clandestinos, o papa lançou em 2000 um manual oficial do exorcismo. Fez questão de destacar que casos suspeitos devem ser encaminhados primeiro a um psiquiatra. (2003, p. 72)
CONCEPÇÕES ATUAIS DA HISTERIA
No atual Manual de Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, a histeria é citada na categoria dos transtornos neuróticos, relacionados ao estresse e somatoformes, mais especificamente na subcategoria transtornos dissociativos (ou conversivos). Esse transtorno é caracterizado por uma perda parcial ou completa da integração normal entre as memórias do passado, consciência de identidade e sensações imediata, e controle dos movimentos corporais. "Nos transtornos dissociativos presume-se que essa capacidade de exercer um controle consciente e seletivo está comprometida em um grau que pode variar de dia para dia ou mesmo hora para hora". (CID-10, 1993, p. 149)
Esses transtornos foram anteriormente classificados como tipos diversos de histeria de conversão, mas agora parece melhor evitar o termo histeria tanto quanto possível, em virtude de seus muitos e variados significados.
Para que o diagnóstico desse transtorno seja preciso e verdadeiro, é necessário que estejam presentes os seguintes critérios:
a) os aspectos clínicos, que não são citados aqui para os transtornos pertencentes a essa categoria: amnésia dissociativa, fuga dissociativa, estupor dissociativo, transtorno de transe e possessão, transtornos motores dissociativos, convulsões dissociativas, anestesia e perda sensorial dissociativas, transtornos dissociativos (ou conversivos) mistos, outros transtornos dissociativos (ou conversivos) e transtorno dissociativo (ou conversivo) não especificado;
b) nenhuma evidência de um transtorno físico que pudesse explicar os sintomas;
c) evidência de causação psicológica na forma de clara associação no tempo a acontecimentos e problemas estressantes ou relacionamentos perturbados (ainda que negados pelo indivíduo).
No Compêndio de psiquiatria de Kaplan, Sadock e Grebb (1997), o termo histeria é citados nos transtornos somatoformes, especificamente nos transtornos de somatização e nos transtornos dissociativos.
De acordo com Kaplan et al. (1997, p. 584): "O transtorno de somatização é caracterizado por múltiplos sintomas somáticos que não podem ser adequadamente explicados com base em exames físicos e laboratoriais." E continuam: "o nome anterior para este transtorno era histeria" (Kaplan et al., 1997, p.584). Os autores citam os processos psicológicos que contribuem para a formação dos sintomas como sendo "inconscientes, culturais e desenvolvimentais" e que a motivação para a produção dos sintomas são os "fatores psicológicos inconscientes" (Kaplan et al.,1997, p. 585).
Os transtornos dissociativos são caracterizados pela perda que o indivíduo tem de ser único, de ter uma única personalidade. Nesse caso, o indivíduo sente a falta dessa identidade ou uma confusão envolvendo sua identidade, ou tem múltiplas identidades. Estudos revelam que uma das causas para que se desenvolva o transtorno dissociativo são os eventos traumáticos ocorridos na vida do indivíduo, especialmente abuso físico e sexual na infância.
Na maioria dos estados dissociativos, representações contraditórias do próprio indivíduo são mantidas em compartimentos mentais separados, porque estão em conflito umas com as outras. Na forma extrema de transtorno dissociativo de identidade (personalidade múltipla), essas representações separadas do self assumem uma existência metafórica de personalidades distintas, conhecidas como personalidades alternativas. (Kaplan et al., 1997, p. 603)
O Manual de diagnóstico e estatística de transtornos mentais (DSM-IV) é citado por Kaplan et al. (1997, p. 603) para mostrar que existem critérios diagnósticos específicos para quatro transtornos dissociativos. Esses transtornos, anteriormente eram conhecidos como neurose histérica do tipo dissociativa: a amnésia dissociativa caracteriza-se pela "incapacidade para recordar informações, geralmente relacionadas com um evento estressante ou traumático, ingestão de substâncias ou uma condição médica geral". A fuga dissociativa caracteriza-se por "viagens súbitas e inesperadas para longe de casa ou do trabalho, associada com uma incapacidade para recordar o próprio passado e confusão acerca da própria identidade pessoal ou adoção de uma nova identidade" (Kaplan et al., 1997, p. 603). O transtorno dissociativo de identidade é caracterizado pela "presença de duas ou mais personalidades distintas dentro de uma única pessoa" e o transtorno de despersonalização, caracterizado por "sensações recorrentes ou persistentes de distanciamento do próprio corpo ou mente". Os autores continuam citando o DSM-IV como também possuidor de uma categoria diagnóstica de transtorno dissociativo sem outra especificação para transtornos dissociativos que "não satisfaçam os critérios diagnósticos dos demais transtornos dissociativos".
ESTUDOS SOBRE A HISTERIA (Freud, 1895)
Freud, em 1895, publica seus Estudos sobre a histeria em que apresenta seus achados e conclusões a respeito da histeria. Essa obra é composta pelo relato de cinco casos clínicos, sendo que quatro deles foram atendidos pelo próprio Freud. As pacientes de Freud foram Frau Emmy von N., Miss Lucy R., Katharina e Fraülein Elisabeth von R. O caso Anna O. é o primeiro caso clínico citado na obra. Ela foi atendida por Josef Breuer, médico austríaco, que teve com Freud uma relação bastante significativa, tanto afetiva quanto profissional.
Freud (1895/1974), nessa obra enfatiza a importância que suas pacientes tiveram para a construção da teoria e técnica psicanalítica. As histéricas ensinaram a Freud alguns dos principais rudimentos da Psicanálise. Emmy von N., por exemplo, se aborrecia quando Freud a questionava de onde veio isto ou aquilo e pedia para ele que a deixasse falar o que ela tinha a dizer. Assim, ouvir para Freud, "tornou-se mais do que uma arte, tornou-se um método, uma via privilegiada para o conhecimento, à qual os pacientes lhe davam acesso" (Gay, 1989, p. 80). A escuta do terapeuta e a fala do paciente foram ganhando reconhecimento de tal forma que a hipnose, como técnica terapêutica, foi perdendo seu valor, sua importância. Com a ajuda de Emmy von N., reconhece a hipnose como sendo um procedimento inútil e sem sentido. Ao abandonar gradualmente a hipnose, Freud adota um novo modelo de tratamento: a técnica da associação livre9.
Elisabeth von R. mostrou-lhe a resistência, quando se negava a responder o que estava se passando pela sua mente nos momentos em que ele a interrogava. Ela foi a paciente responsável pela descoberta da necessidade de se elaborar os traumas recalcados com a ajuda da interpretação de Freud.
Os sintomas de Elisabeth von R. começaram entrar na conversa, também: desencadeavam-se no momento em que ela falava da erupção deles, e amainavam quando terminava de contar toda a sua história. Mas Freud também precisava aprender a lição mais difícil de que a cura não era uma explosão melodramática de percepções. Apenas o relato raramente bastava; os traumas tinham de ser elaborados. O ingrediente final na recuperação de Elisabeth von R. foi a interpretação dos indícios que Freud lhe apresentou e à qual ela resistiu veementemente por algum tempo: ela amava seu cunhado, e havia reprimido desejos perversos pela morte de sua irmã. O fato de aceitar esse desejo imoral pôs termo a seus sofrimentos. "Na primavera de 1894", contou Freud, "soube que ela ia a um baile exclusivo, ao qual tratei de conseguir acesso, e não deixei escapar a oportunidade de ver minha ex-paciente a voar numa dança ligeira" (Gay, 1989, p. 81-82).
Enfim, Freud deve muito, não somente a Elisabeth von R. e a Emmy von N., mas também a Miss Lucy R. e a Katharina por elas terem contribuído tão ativamente na elaboração da técnica e teoria psicanalítica: observação atenta, passividade alerta o que Freud chamaria de atenção flutuante10, interpretação hábil, associação livre sem o recurso da hipnose e elaboração. Rothged, em referência aos Estudos sobre a histeria, afirma que "Freud originou os desenvolvimentos técnicos, juntamente com os conceitos teóricos primordiais de resistência, defesa e recalcamento provenientes daqueles" (2001, p. 119). Em seu artigo E o verbo se fez carne, Maria José Ceranto Garcia enfatiza que "o esclarecimento da etiologia da histeria se dá paralelo ao desenvolvimento da psicanálise" (2000, p. 30).
O CASO ANNA O.
Josef Breuer atendeu por um ano e meio, com início em dezembro de 1880, Anna O. (pseudônimo de Bertha Pappenheim). Caso este que seria reconhecido como o "caso fundador da psicanálise" (Gay, 1989, p. 74).
Anna O., durante o seu tratamento, foi dando importantes contribuições para a formação da teoria psicanalítica. Ela realizou sozinha grande parte do trabalho de imaginação, ensinando Freud sobre a importância da escuta do analista.
Anna O. adoeceu quando tinha 21 anos. Apresentava uma tendência para ficar em um devaneio sistemático, seu teatro particular como ela mesma definia. Tinha uma vida bastante monótona, totalmente restrita à família e, como relembrou Freud sobre o julgamento de Breuer a ela, "assombrosamente pouco desenvolvida em termos sexuais" (Gay, 1989, p. 75). A doença fatal do pai é entendida como sendo o acontecimento que precipitou sua histeria. Ela desenvolveu sintomas crescentes de incapacidade, durante os meses que cuidou do pai: fraqueza por não ter apetite, uma série de tosse nervosa e, após seis meses, foi atingida por um estrabismo convergente. Também apresentava dores de cabeça, acessos de agitação, perturbações da vista, paralisias parciais e perda de sensibilidade. Sua sintomatologia foi se modificando com o tempo, chegando a representar lapsos mentais, longos intervalos de sonolência, rápidas alterações de ânimo, alucinações com cobras cegas, caveiras e esqueletos, crescentes dificuldades de fala. Desenvolveu duas personalidades contrastantes, uma delas bastante rebelde. Ela era visitada por Breuer todos os dias. Durante suas consultas ela contava muitas histórias a ele, descobrindo juntos que seus sintomas se amenizavam devido essa liberdade para falar. Procedimento este que ficou conhecido como a cura pela fala, como função o processo de catarse11. Anna O. teve seu momento de cura pela fala quando, passando por um período de hidrofobia12, ela se recorda que havia visto sua dama de companhia inglesa de quem não gostava, deixar que um cãozinho bebesse de um copo. Quando o nojo reprimido veio a tona, a hidrofobia desapareceu. Dessa forma, todos os sintomas, as contrações paralisantes, as várias alucinações, etc., foram expulsos pela fala. Seus sintomas revelaram ser resíduos de sentimentos e impulsos que ela se sentira obrigada a reprimir. Anna O. se tornou uma pioneira ativista social, líder de causas feministas e de organizações de mulheres judias. Mas Breuer omitiu a verdadeira causa que o fez interromper o tratamento com Anna O. Ele terminou a exposição do caso, apresentando a paciente como liberta de seus sintomas e afirmando que o término do tratamento ocorreu devido ao desejo de Anna O. de encerrá-lo por motivos de mudança. Não é o que afirma Luiz Alfredo Garcia-Rosa quando escreve que "o que motivou o término do tratamento foi um fenômeno que, apesar de ser hoje em dia bastante conhecido, impossibilitou Breuer de continuar a relação terapêutica com Anna O.: o fenômeno da transferência13e da contratransferência14" (1999, p. 39).
Para Breuer, o fato de ele falar de sua paciente com uma freqüência acima do comum, não lhe parecia indício de nenhum envolvimento emocional. A mulher do médico se tornou triste e ciumenta por escutá-lo e percebê-lo empolgado com sua paciente. Breuer, porém, percebendo o que estava se passando, perturbou-se e resolveu encerrar o tratamento. Anna O., sabendo de sua decisão, desenvolve uma de suas piores crises. A paciente apresentava contrações abdominais de uma crise de parto histérica. Breuer foi chamado para consultá-la e quando ela o viu disse que seu filho estava chegando. Breuer atendeu Anna O. e a hipnotizou livrando-a da crise. No outro dia, Breuer viaja com sua esposa de férias para Veneza.
Dessa forma, Freud conclui que a excitação emocional que se encontrava por trás dos sintomas neuróticos era de natureza sexual e conflitiva. No decorrer de suas pesquisas, Freud vai dando uma importância cada vez maior a sexualidade, tanto para a compreensão da neurose como para a compreensão do indivíduo normal. Ele escreve, em seu trabalho Um caso de histeria:
Se é verdade que as causas das perturbações histéricas devem ser encontradas nas intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que os sintomas histéricos são a expressão de seus desejos mais secretos e reprimidos, então a elucidação completa de um caso de histeria implica certamente a revelação dessas intimidades e a divulgação desses segredos. (Freud, 1972, pp. 5-6)
CASO CLÍNICO
O terceiro e último momento deste artigo é composto por um caso clínico citado por Carlos Estevam (1995), em seu livro Freud.
Arlete, de 34 anos, sofria de crises nervosas, manifestando sensações de sufocamento, contração do corpo, paralisia dos membros e perda dos sentidos.
O tratamento pelo método psicanalítico, basicamente, consiste na investigação da história do paciente com o objetivo de descobrir as causas do conflito psicológico que foi resolvido por ele de forma incompleta por manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão15, operação esta conhecida como recalque16. Assim, Arlete desenvolve sintomas que estão ligados a algum processo psíquico inconsciente que recalcou alguma experiência afetiva dolorosa ocorrida na sua vida. Afirma Estevam (1995, p. 114) que "o histérico não sabe qual é a causa do seu mal porque o que ele vê são apenas os sintomas: a causa está recalcada no inconsciente".
Utilizando as técnicas da psicanálise, tais como a livre associação de idéias e a interpretação de sonhos, é possível ajudar o paciente a reviver experiências emocionais dolorosas e, com o analista, elaborá-las.
Arlete, com seu analista, pôde relembrar de fatos que para ela foram traumatizantes emocionalmente. Quando tinha 7 anos de idade, Arlete costumava ficar brincando numa praia pouco freqüentada que havia perto de sua casa. Um dia, ela estava sozinha se distraindo com suas brincadeiras de criança quando se aproximou dela um homem completamente despido. Ele estava tomando banho de mar sem roupa e quando saiu da água, dirigiu-se até ela. Arlete assustou-se, não conseguindo sair de onde estava. Ficou paralisada por medo. O homem aprisionou a menina em seus braços, segurando-a pelos punhos e obrigou-a a se deitar na areia. Deitou-se sobre ela para possuí-la. Ela não podia fazer nada para se esquivar, pois o homem, muito mais forte do que ela, mantinha-a imobilizada segurando-a com as duas mãos em volta do pescoço. Durante todo o tempo que durou a cena, a sensação mais profunda que Arlete experimentava era a de que estava sendo estrangulada. A impressão que a dominava era a idéia de que havia perdido o corpo e a única coisa que lhe restava era apenas a cabeça.
Sua família jamais suspeitou de tal fato. Quando interrogados a respeito, a única lembrança era de que, quando Arlete tinha 7 anos foi atingida por uma febre muito forte, acompanhada de delírio. Os médicos não descobriram a causa.
Outros sonhos e associações de idéias, em que a cabeça do pai aparecia misturada com a cabeça do homem que violentou a menina, acabaram revelando ao psicanalista que Arlete se recordava de um traumatismo ainda mais antigo do que o que sofrera na praia. Quando tinha 5 anos, ela estava brincando com seu pai numa cama e num momento foi tomada de pavor. Começou a se debater e a dizer nervosamente que havia segurado nos cabelos. De fato, durante a brincadeira, seus dedos tinham tocado nos pêlos do púbis do pai. Isso a assustara, e como não sabia o que era, chamava de cabelos. A palavra cabelos se associava à dolorosa experiência que vivera na praia, razão pela qual a cabeça de seu pai aparecida em seus sonhos misturada com a cabeça do homem que a violentara.
Todos esses fatos reunidos explicam perfeitamente a histeria de Arlete. Compreende-se por que razão suas crises de histeria apresentavam aqueles sintomas: paralisia do corpo, exceto da cabeça, sensação de sufocamento, etc. Vê-se que os sintomas estavam ligados aos conflitos psíquicos intensos que, desde a infância, não a abandonaram até a idade de 34 anos. Depois de se submeter ao tratamento. Quando sua saúde começou a melhorar, Arlete pôde finalmente dizer: "Sem a psicanálise, eu não teria conhecido, em toda minha vida, um só momento de felicidade" (Estevam, 1995, p. 117).
Conclusão
Este artigo nos trouxe informações a respeito de um, entre muitos outros, transtorno mental e de comportamento, o transtorno dissociativo (ou conversivo), a antiga neurose histérica ou histeria de conversão.
Hoje, quando tenho um paciente com tais manifestações em tratamento psicoterapêutico, penso na responsabilidade que me cabe como profissional e ser humano para com aquela pessoa: tentar ajudá-la na elaboração dos seus traumas, não somente físicos, mas também de ordem psíquica.
Com os avanços da medicina e com os da psicologia, mais especificamente os da psicanálise, podemos oferecer aos nossos pacientes, além de um tratamento mais adequado e aprimorado, compreensão, acolhimento e respeito.
Curar, do latim curare significa cuidar, tratar. Assim, acredito que, cuidando dos nossos pacientes por meio de experiências afetivas e emocionais, portanto, terapêuticas, desenvolvemos, com eles, a possibilidade de cura ou os recursos para se ter uma melhor qualidade de vida.
Este deve ser o nosso objetivo e a razão pelo qual praticamos a nossa profissão de psicólogos.
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