Texto de Werner Jaeger em "Paidéia” (Ed. Martins Fontes), tradução de Artur M. Parreira – Trechos das pgs. 201 a 204. Os comentários ao final são deste "moçoilo".
A ideia de Sólon é esta: a dike [1] não depende dos decretos da justiça terrena e humana nem resulta da simples intervenção externa de um decreto da justiça divina, como sucedia na antiga religião de Hesíodo. É imanente ao próprio acontecer, no qual se realiza para cada caso a compensação das desigualdades. Portanto, a sua inexorabilidade é o “castigo de Zeus”, a “paga dos deuses”. Anaximandro vai muito além. Esta compensação eterna não se realiza só na vida humana, mas também no mundo inteiro, na totalidade dos seres. A evidência deste processo e a sua imanência na esfera humana levam-no a pensar que as coisas da natureza, com todas as suas forças e oposições, também se encontram submetidas a uma ordem de justiça imanente e que a sua ascensão e sua decadência se realizam de acordo com essa ordem [2].
Nesta forma – se a encararmos do ponto de vista moderno – parece esboçar-se a ideia prodigiosa de uma legalidade universal da natureza. Mas não se trata de uma simples uniformidade do fluxo causal, no sentido abstrato de nossa ciência atual. O que Anaximandro formula com as suas palavras é mais uma norma universal do que uma lei da natureza no sentido moderno. O conhecimento desta norma do acontecer da natureza tem um sentido religioso imediato [3]. Não é uma simples descrição de fatos, mas uma justificação da natureza do mundo. O mundo revela-se como um cosmos, isto é, como uma comunidade jurídica das coisas. Elas afirmam o seu sentido na incessante e inexorável geração e corrupção, quer dizer, naquilo que a existência tem de mais incompreensível e insuportável para as aspirações da vida do homem ingênuo. Não sabemos se o próprio Anaximandro empregou nesse sentido a palavra cosmos. No seu sucessor Anaxímenes já a encontramos, se é autêntico o fragmento que se atribui a ele.
esta ruptura representa a aparição de uma nova concepção da divindade do serMas, em princípio, a ideia de cosmos encontra-se – embora sem o sentido rigoroso que teve mais tarde – na concepção de um acontecer natural governado pela dike eterna, de Anaximandro. Temos, portanto, o direito de caracterizar a concepção do mundo de Anaximandro como a íntima descoberta do cosmos. Esta descoberta não se podia fazer senão no fundo da alma humana. Nada se teria podido fazer com telescópios, observatórios ou qualquer outro tipo de investigação empírica. Foi da mesma faculdade intuitiva que brotou a ideia de infinidade dos mundos, atribuída a Anaximandro pela tradição [4]. Sem dúvida alguma, a ideia filosófica do cosmos representou uma ruptura com as representações religiosas habituais. Mas esta ruptura representa a aparição de uma nova concepção da divindade do ser, no meio do horror da fugacidade e da destruição, que tanto impressionou as novas gerações, como mostram os poetas.
É neste estado de espírito que reside a semente de incontáveis desenvolvimentos filosóficos. O conceito de cosmos constituiu até os nossos dias umas das categorias essenciais de toda concepção do mundo, embora nas modernas interpretações científicas tenha gradualmente perdido o sentido metafísico original [5]. A ideia do cosmos mostra, com simbólica evidência, a importância da primitiva filosofia natural para a formação do homem grego. Assim como em Sólon o conceito ético-jurídico da responsabilidade deriva de teodicéia para a epopeia, também em Anaximandro a justiça do mundo recorda que o conceito grego de causa, fundamental para o novo pensamento, coincidia originalmente com o conceito de culpa e foi transferido da imputação jurídica à causalidade física. Esta transposição espiritual está ligada a transposição análoga dos conceitos de cosmos, dike e tisis, originários da vida jurídica, para o acontecer natural [6].
O fragmento de Anaximandro permite-nos obter uma visão profunda do desenvolvimento do problema da causalidade a partir do problema teológico. A sua Dike é o princípio do processo de projeção da polis no universo. É certo que nos pensadores jônicos não encontramos uma transposição expressa da ordenação do mundo e da vida do Homem para o ser das coisas não humanas. Não podia acontecer isso, porque as suas investigações prescindiam totalmente das coisas humanas e visavam exclusivamente a determinação do fundamento eterno das coisas. Mas, dado que se serviram da ordem da existência humana para tirar conclusões a propósito da physis e sua interpretação, a sua concepção continha em germe, desde o início, uma futura e nova harmonia entre o ser eterno e o mundo da vida humana com os seus valores.
Pitágoras de Samos foi também um pensador jônico, embora a sua ação se tenha desenrolado na Itália meridional. É difícil determinar o seu tipo espiritual e a sua personalidade histórica. A sua figura tradicional mudou com a evolução da cultura grega. Assim, ele nos foi apresentado como descobridor científico, político, educador, fundador de uma ordem ou de uma religião e como taumaturgo [...] Comparada com a grandiosa plenitude espiritual de Anaximandro, a união em Pitágoras de elementos tão heterogêneos, seja qual for a ideia que nós formemos desta mistura, é, efetivamente, coisa singular e acidental. A recente maneira de apresentá-lo como um curandeiro já não pode aspirar a nenhuma consideração séria. Da imputação de polimathia pode concluir-se que procedem de Pitágoras aqueles que mais tarde Aristóteles referiu como “os chamados pitagóricos”, considerando-os fundadores de um novo tipo de ciência que eles, diversamente da “meteorologia” dos Jônicos, denominaram apenas Mathemata, isto é, “os estudos”.
Na continuação, Pitágoras e a transmigração de almas...
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[1] Dike era o termo grego que trazia os conceitos de ordem moral e julgamento justo baseados no espírito da sociedade Grega, a Paidéia. Sólon, além de legislador, era poeta.
[2] Mais a oeste, tal doutrina seria chamada de karma.
[3] É preciso lembrar que na Grécia antiga um sábio era ao mesmo tempo poeta, filósofo, cientista e espiritualista. Se é possível, talvez, debochar do politeísmo do cidadão grego comum, já não é possível fazer o mesmo com os grandes pensadores, que subordinavam todos os deuses a Zeus – um Deus dos deuses – ou ao próprio Cosmos – a Natureza da natureza.
[4] Há mais de 2 mil anos, os sábios gregos já antecipavam, ainda que apenas pela intuição, muito do que viria a ser comprovado pela ciência moderna. Além da “infinidade de mundos”, Anaximandro também previu a teoria da evolução, ainda que de forma rudimentar: para ele, os animais nasceram do lodo marinho, e o homem teria se formado, no princípio, dentro de peixes, onde se desenvolveu e donde foi expulso logo que se tornou de tamanho suficiente para bastar-se a si próprio.
[5] Em sua grandiosa série de TV (Cosmos), Carl Sagan afirma que o Cosmos é tudo o que é, o que foi e o que será. Embora certamente a visão científica moderna não enxergue a natureza como um “sistema jurídico”, Sagan foi buscar inspiração nos gregos antigos para muito do que foi exposto em sua série; onde há sim muita espiritualidade, na pura essência do termo.
[6] Isso quer dizer, se é que não estarei aqui resumindo demasiadamente um pensamento tão complexo, que os gregos passaram a compreender a “lei de causa e efeito”, ou karma, não como uma “paga dos deuses”, mas antes como uma lei natural, que nada tem a ver com o antigo conceito de culpa – ou, para se entender melhor, de pecado perante os deuses.
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Crédito da foto: Paul Almasy/Corbis (Delfos, Grécia).
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