Por Jerônimo Teixeira 29 ago 2017 na "Veja"
Charlottesville arranhou a identidade grupal da "nova direita" brasileira. Vem daí a bizarrice de afirmar que o nazismo é de esquerda.
, 13h05 - Publicado em 25 ago 2017, 21h25more_horiz
Charlottesville arranhou a identidade grupal da "nova direita" brasileira. Vem daí a bizarrice de afirmar que o nazismo é de esquerda.
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Os manifestantes que gritavam "sangue e terra": depois de extensa pesquisa no Twitter, o MBL concluiu que são todos socialistas (Alejandro Alvarez/News2Share/Reuters)
Os frequentadores da única sinagoga de Charlottesville foram aconselhados a sair pelos fundos depois dos rituais do Shabat. Foi assim porque a congregação de Beth Israel localiza-se em frente à praça que abriga a tão decantada e detratada estátua do general confederado Robert E. Lee, e naquele sábado, 12 de agosto – o mesmo dia em que um terrorista da direita racista atropelou e matou uma ativista dos direitos civis, Heather Heyer -, o local estava tomado de neonazis e supremacistas brancos que gritavam provocações antissemitas. Daniella Greenbaum, articulista da revista Commentary, observou que a recomendação de buscar a saída mais discreta da sinagoga seria banal na Europa dos séculos XIX e XX – mas o mesmo conselho, nos Estados Unidos do século XXI, é chocante.
Resumem-se a isso os eventos de Charlotesville: o retorno de aberrações históricas que ingenuamente imaginávamos superadas. A marcha dos brucutus que, portando ridículas tochas tiki, berravam “sangue e terra” e “judeus não vão tomar nosso lugar” deveria receber o repúdio universal de todas as vozes razoáveis do debate político, à direita e à esquerda. Sem prejuízo do repúdio (o firme e obrigatório repúdio que o presidente dos Estados Unidos não foi capaz de expressar com firmeza, como bem observou Eduardo Wolf em ensaio no ótimo portal Estado da Arte), caberia, claro, analisar o fenômeno: entender quem são esses homens brancos furiosos, o que os motiva, e que circunstâncias propiciaram que essa excrecência extremista saísse das margens da sociedade americana para ganhar o centro do noticiário internacional.
A conversa média da chamada “nova direita” brasileira, porém, não foi nem para a denúncia moral, nem para a análise política. A discussão concentrou-se em uma espécie de grenal (fla-flu, diriam os brasileiros) ideológico: o nazismo é de direita ou de esquerda? Há uma resposta historicamente consagrada para a questão, contra a qual os cruzados da blogosfera libertário-conservadora esperneiam. Os arautos da nova direita trombeteiam que o nazismo instaurou um Estado forte, e que isso é coisa de esquerda. Também lembram que o agrupamento político de Hitler se chamava Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães – repetindo: Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Se era socialista, e ainda por cima dos Trabalhadores, então só pode ser de esquerda, certo?
São argumentos que podem ser expressos em um meme, o que diz muito sobre a profundidade do pensamento neodireitista capiau.
Essa avaliação esquemática da natureza do nacional-socialismo omite que comunistas e nazistas foram violentos adversários na República de Weimar. Na guerra, houve uma trégua estratégica, com os dois grandes totalitarismos do século XX irmanados sob o Pacto Molotov-Ribbentrop – mas esse acordo entre desiguais, como se sabe, não durou muito. Haverá, por óbvio, numerosos pontos em comum entre os dois regimes opressores. Todo totalitarismo é monstruoso, mas nazismo e comunismo são monstros distintos. Houve episódios de antissemitismo na União Soviética, mas a perseguição aos judeus e a ideia de uma raça superior não faziam parte do credo comunista. A Alemanha nazista desapropriou empresas – judaicas, sobretudo – e colocou toda a economia a serviço do Estado, mas não prometia uma sociedade sem classes nem tinha no burguês seu inimigo fundamental (diretores das indústrias Krupp, que forneceram armamento para o esforço bélico nazista, foram julgados por crimes de guerra em Nuremberg). Duda Teixeira, do blog Dúvidas Universais, definiu tudo de forma muito sintética: “A extrema esquerda fala em classe. A extrema direita, em nação”. Simples assim.
Li vários artigos da direita americana (a direita respeitável, não a fuleira alt-right) sobre Charlottesville, entre eles, o texto da Commentary citado lá no primeiro parágrafo. Encontrei um vivo e inteligente debate sobre o que fazer com os monumentos confederados (talvez escreva sobre isso adiante). Alguns autores faziam, sem relativizar a crítica ao supremacismo branco, a necessária condenação à violência do Antifa, movimento de esquerda que se opõe aos supremacistas. Li ainda críticas bem candentes à atitude de Trump (em artigo no Federalist, um membro do Tea Party pede nada menos que a renúncia do presidente). Não vi ninguém afirmar que os manifestantes de Charlottesville eram, na verdade, de esquerda. A tradição conservadora americana tem essa serena tranquilidade: entende que também a direita conhece suas versões totalitárias.
(No Brasil, o MBL foi se informar no Twitter de uma organização nazista americana. Descobriu que os nazis se definem como socialistas e achou que isso fechava a questão de uma vez por todas. Acusou a imprensa brasileira de “ocultar propositalmente” esse fato. Se seguir pesquisando nessas ricas fontes de informação histórica e teoria política, a rapaziada aguerrida do MBL um dia nos premiará com outro fato escandaloso que os jornais bolcheviques escondem propositalmente: o Holocausto é uma farsa.)
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As vetustas noções de esquerda e direita, herdadas da Assembleia Nacional Francesa, são um tanto elásticas e imprecisas, mas há consensos bem estabelecidos sobre seus pontos extremos: comunismo à esquerda, nazi-fascismo à direita. Certos consensos devem ser chacoalhados de tempos em tempos, sim. Mas o que se ganha conceitualmente redefinindo o nazismo como movimento de esquerda? Entenderemos melhor o horror da II Guerra Mundial e do Holocausto se considerarmos que Hitler era esquerdista? Por que esse problema se tornou tão crucial para certa porção da direita brasileira?
As respostas para as duas primeiras perguntas são bem fáceis: “nada” e “não”.
A terceira pergunta exigirá que este blogueiro recaia em sua incorrigível prolixidade. Antes de voltar aos memes do baixo direitismo brasileiro, vou fazer uma desvio pela esquerda latino-americana.
O escritor mexicano Carlos Fuentes, em foto de 2004: se é de esquerda, só pode ser bom, e se é ruim, não é de esquerda (Tiziana Fabi/AFP)
Em 2006, entrevistei Carlos Fuentes, por telefone, a propósito de Este É meu Credo, obra do escritor mexicano que a Rocco estava lançando no Brasil. No livro, Fuentes reafirmava suas convicções esquerdistas. Pedi a ele um balanço da esquerda latino-americana, e eis o que ele disse sobre o tiranete do momento: “Há várias esquerdas hoje, e vários líderes de esquerda. Exceto Hugo Chávez. Ele é um fascista que se disfarça de esquerdista”. Ninguém pensaria em contestar que o “Socialismo do Século XXI” advogado por Chávez (e por seu sucessor, Nicolás Maduro) é de esquerda. Se é verdade, como reza o lugar-comum marxista, que a história primeiro acontece como tragédia e depois se repete como farsa, o comunismo soviético será a tragédia, e o bolivarianismo, sua repetição como telenovela da Televisa. Fuentes, porém, negava que Chávez fosse de esquerda. O ditador venezuelano seria na verdade um fascista disfarçado, e muito bem disfarçado, pois enganava a todos, menos ao autor de Gringo Velho.
A esquerda brasileira ainda hoje apoia vergonhosamente o governo Maduro, mesmo depois do recente e violento recrudescimento autoritário (até onde vi, o único político de esquerda que condenou inequivocamente o regime venezuelano foi, para surpresa de muitos, o deputado Jean Wyllys; seu companheiro de partido Chico Alencar até ensaiou umas críticas a Maduro em entrevista à Época,mas a sua conversa me pareceu muito mole e muito morna). Conceda-se a Carlos Fuentes, portanto, o mérito de não escamotear a natureza autoritária do chavismo. Mas foi exatamente por perceber o desastre representado por Chávez que Fuentes precisou expurgá-lo da esquerda. A lógica é simples – aliás, simplória: se é ruim, não pode ser do meu time.
Tal reivindicação de um monopólio da virtude, que costumava ser quase exclusiva do progressismo, vem se tornando comum na direita brasileira mais rastaquera de uns anos para cá. Ocorre que, depois de décadas de domínio cultural esquerdista quase absoluto – mesmo durante a ditadura militar, como o marxista Roberto Schwarz observou em um ensaio da época -, uma nova geração tem descoberto ou redescoberto ideias liberais e conservadoras. O melhor do pensamento brasileiro sobre cultura e política está nessa nova onda. Pena que, com ela, venha o rebotalho: uma galeria lombrosiana de blogueiros estridentes e toscos, propensos a ver conspiratas do Foro de São Paulo até em logotipo da Olimpíada. É uma gentinha desqualificada, que entra na guerra cultural com muita agressividade e nenhum discernimento. Tornou-se ponto de honra, para esses divulgadores baratos do liberalismo, proclamarem-se “de direita”, e eles o fazem sempre com ostensiva imodéstia – pois ninguém mais tem a coragem de se opor às variadas ditaduras que comandam a mídia brasileira (a ditadura do politicamente correto, da ideologia de gênero, do gayzismo, e por aí vai). É fácil vislumbrar, entre os paladinos do neodireitismo, uma angustiada mas coesa identidade tribal. Admitir que um dos pesadelos históricos do século XX está na conta da direita seria abrir uma insuportável fissura nessa identidade monolítica.
O Indivíduo, com maiúscula, é um clichê e um fetiche na conversa cotidiana da direitinha fuleira, mas o fato é que os orgulhosos habitantes desse subúrbio intelectual criaram sua própria e torta versão das políticas identitárias da esquerda. Ao repetir, em uníssono, que só o Indivíduo tem valor, eles confirmam o desencantado aforismo de Adorno em Minima Moralia: “Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem ‘Eu'”.
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Citei um filósofo marxista, o que deve bastar para que algum gentil leitor me chame de “comuna” nos comentários. Já aconteceu antes, por bem menos, e provavelmente aconteceria mesmo sem a frase de Adorno. Como oferta conciliatória ao direitista mais inflamado, termino com uma reflexão ligeira de Roger Scruton, filósofo de impecáveis credenciais conservadoras. Em um debate com o crítico marxista Terry Eagleton, Scruton se recusou a ser qualificado como um homem “de direita”: “As pessoas da direita não se identificam como tal, não como parte de um grupo. Nós apenas nos agarramos às coisas que amamos”.
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