Existem dois Noam Chomsky, (Filadélfia, 7 de dezembro de 1928) no mínimo: o linguista e o filósofo político e ambos são geniais, para dizer pouco. E por gênio, não me entendam mal, quero dizer alguém que adquiriu um grande conhecimento sobre uma ou mais áreas no decorrer da vida.
Sobre o Chomsky linguista eu sempre caminho em casca de ovos: sua teoria consegue ser tão ou mais complexa e fantástica quanto a de Wittgenstein ou Frege. O modo como Chomsky estruturou sua tese sobre o aprendizado da linguagem ou sobre a sua estrutura comum é realmente elegante ao mesmo tempo que complexo. De qualquer forma, deixo como indicação para quem se interessar Logical Structure of Linguistic Theory de 1955, para quem quiser se interessar.
Quero falar hoje do Chomsky filósofo político, que não é menos brilhante, porém enganadoramente mais simples. Enganadoramente porque de uns tempos pra cá acredita-se que qualquer um que tenha assistido alguns vídeos no Youtube pode se dizer grandes entendedores da mesma. O que me faz refletir sobre a seguinte questão: se filosofia política é assim tão fácil de ser compreendida, se todo adolescente tem respostas prontas para os incríveis desafios de nossa sociedade, porque ainda estamos tão longe de uma sociedade minimamente justa enquanto há conhecimento disponível para nos permitir colonizar Marte?
Porque filosofia política é difícil, bem mais que engenharia espacial, e mesmo problemas antigos persistem. Conta a História que entre 169 a.C. e 133 a.C Tibério Graco, um tribuno da plebe romana afirmou quando discursava para uma multidão na Rostra que “As bestas selvagens que vagam pela Itália tem seus covis, todas contam com um local de repouso e refúgio. Mas os homens que lutam e morrem pela Itália não gozam de nada além do ar e da luz; sem casa ou lar, vagam com suas esposas e filhos”.
Dois mil anos se passaram e algo mudou? Embora exista um exército de pessoas que se colocam contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é nela que consta como item obrigatório que todo ser humano tenha direito a propriedade, e mesmo assim nem todo mundo tem sua casa. Aliás, convém que se você seja contra os Direitos Humanos, comece por se colocar contra a propriedade privada.
De qualquer modo, nossas penúrias existem desde sempre. Em Requiem for the American Dream, filme documentário disponível no Netflix, produzido a partir de quatro anos de entrevistas com Chomsky, ele aponta algumas dessas penúrias, bem como a solução encontrada pela elite financeira – chamada em tom jocoso no filme de Mestres da Humanidade. E é importante dizer que essas soluções não são boas para o resto de nós.
Comecemos por relembrar a máxima vil de Adam Smith em A riqueza das nações de 1776. Em sua época Smith tinha, textualmente declarado que os arquitetos da sociedade eram os comerciantes e fabricantes e que estes agiam de modo a garantir seus interesses, mesmo que agindo assim outras camadas da sociedade sofressem. Hoje comerciantes e fabricantes se tornaram as instituições financeiras e as corporações multinacionais, diz Chomsky, e continuam agindo de acordo com a mesma máxima: apenas venha a nós, e o Vosso Reino que se foda.
Para garantir que seus interesses continuem sendo satisfeitos os agentes a trabalho dessas instituições e corporações espalham sua rede de poder e influência que acaba por fragilizar ainda mais a democracia ao mesmo tempo que destrói o famoso Sonho Americano, que para quem não sabe, tem como fundamento a mobilidade social. É a ideia de que você pode nascer pobre, mas caso se esforce, terá condições sociais e políticas para viver melhor. É um Sonho, eu sei, você sabe e o Chomsky também. Mas durante os anos 50 e 60, nos EUA, ele foi mais ou menos viabilizado. Houve uma grande expansão social amparada por bons serviços públicos e um movimento popular atuante.
Até durante a primeira metade do século XX os EUA tinham uma boa educação pública por exemplo, fosse educação básica ou programas universitários. E os movimentos negro, feminista, trabalhista, social, ambiental entre outros, estavam na vanguarda pedindo uma maior participação social para seus membros e ampliando as vias de acesso entre a população e os oficiais governamentais, que se viam na incômoda situação de ter que agir no sentido de tornar legítima as pautas reivindicadas através da inclusão dessas pautas na norma reguladora do Estado. Traduzindo: quando a população negra protesta pedindo o fim da segregação racial, o governo acaba cedendo a contragosto e derruba a lei que legalizava a segregação.
Essa onda de fortalecimento democrático capaz de ampliar e projetar a voz do povo até as esferas governamentais torna-se uma ameaça as instituições financeiras. E isto não é apontado por Chomsky, mas por gente como James Madison, pai da Constituição Americana, que via nos pobres uma clara ameaça a sociedade como um todo. De acordo com Madison – um Senador Americano em uma época onde os políticos eram escolhidos entre a elite financeira – o Sistema Constitucional formal foi feito para garantir que o poder fique sempre nas mãos daqueles mais ricos, pois eles seriam mais responsáveis. Nos debates da Convenção Constitucional vê-se Madisonafirmar que “a maior preocupação da Sociedade tem que ser proteger a minoria rica contra a maioria [pobre]” Porque? Madison responde: “Suponha que todos votem livremente: a maioria, os pobres, se reuniriam, se organizariam e tirariam as propriedades dos ricos. Isso obviamente seria injusto, então não é possível.”
Isto quer dizer que o Sistema Constitucional norte americano – e sabemos, não apenas o deles – foi pensado para minimizar a democracia de modo que os pobres continuem sem voz. Porque quando os pobres falam, quando o povo grita, não há quem não escute e os mais ricos sofrem. E quem diz isto, não se esqueçam, era um político rico.
É por isso que empresas podem doar dinheiro para campanhas eleitorais. No Brasil há um debate horrível sobre isso e mesmo com a proibição das doações, as empresas arrumam formas de driblar a lei e continuarem doando. E isto acaba em um círculo vicioso: a corporação distribui dinheiro para o político que quando eleito irá legislar ou fiscalizar a empresa. É razoável supor que alguma empresa dará dinheiro a um candidato que não prometa algum tipo de benefício durante o mandato? Esse benefício pode ser desde leis mais brandas – como por exemplo a suspensão de algum tipo de lei trabalhista que onere a corporação – até a suspensão ou diminuição da fiscalização da corporação. E é por isso que olho com maus olhos para essas “doações” – com todas as aspas do mundo – que a prefeitura de São Paulo vinha recebendo. Porque não tenho provas, mas tenho a convicção, de que há caroço nesse angu.
O que Chomsky está nos mostrando é que há uma engrenagem muito bem montada para impedir que a democracia se radicalize, que o povo realmente tenha acesso aos meios de influenciar na política de sua cidade e de seu país. Um estudo conduzido pelo professor de Política da Universidade de Princeton, Martin Gilens, aponta que 70% da população de um país não tem meios suficientes ou necessários para influenciar a política. E o povo tem consciência disso. Ao mesmo tempo, Chomsky nos alerta, isto não é por acaso. Nem que você não tenha como influenciar na política, nem que você tenha condição para isso. E sejamos francos, precisa de pesquisa pra você sentir que não tem como mudar a política de seu país? Mas continuemos.
Veja, por exemplo, a declaração de Alan Greespan, ex presidente do FED – o equivalente ao nosso Banco Central – em depoimento ao Congresso Nacional norte americano, quando este declara a razão do seu sucesso frente a economia foi ter causado uma “maior insegurança ao trabalhador”. Greespan alega que isto manterá o trabalhador sob controle, pois quem está constantemente com medo de perder sua fonte de renda não se sindicaliza, não faz greve, não protesta por melhores salários, por mais direitos, por melhores condições no trabalho. Até que por fim, o trabalhador sequer consegue compreender como existe quem o faça repetindo como um mantra: “se não está satisfeito com seu emprego, arrume um que o satisfaça”. O que o trabalhador esquece de pensar é que não existe emprego verdadeiramente satisfatório, exceto os cargos da elite financeira. Em qualquer ocupação disponível no mercado de trabalho, o trabalhador terá que se ver equilibrado entre salários baixos, condições insalubres, sindicato corrupto, direitos trabalhistas que não o asseguram, etc.
E o trabalhador pensa assim porque há um trabalho sendo feito desde o fim do século XIX, diz Chomsky, no sentido de moldar a ideologia entre os trabalhadores. O acervo disponível nos mostra que os operários do século XIX tinham plena consciência de que o trabalho assalariado era algo próximo da escravidão, porém com outros grilhões. Essa poderosa consciência de classe foi lentamente sendo substituída por algo mais inócuo.
O ponto final desta equação nos é dado por Thorstein Bunde Veblen, economista e sociólogo norte americano que nos mostra que nossa sociedade tem por finalidade produzir consumidores, pois consumidores são pessoas mais facilmente controláveis, com atitudes padronizadas e previsíveis. O consumidor é aquele que está de tal modo anestesiado e dominado pelo marketing que abre mão de participar da vida pública de sua cidade, para conseguir crédito suficiente para viajar para Miami e comprar porcarias. Ou então viajar para Orlando e tirar foto com o Pateta. E dessa forma alimentar a roda, deslocando seu capital entre a empresa que o emprega e a empresa de quem compra.
Temos por fim um modelo social e comportamental onde um adolescente típico de 19 anos terá como desejo genuíno de lazer ir ao Shopping de sua cidade fazer quatro horas de nada, comprar um sorvete, uma nova calça, tênis, celular, quando não tudo isso junto. O pai do adolescente desejará uma piscina para sua casa, ou uma casa maior, um carro mais novo, e tudo o que seu filho também quer.
E é por isso que Marielle precisa morrer de novo. E então, após os assassinos armados, agem os assassinos sem rosto que estão a difamando: porque Mariellerepresenta o aumento democrático ao se posicionar contra essa máquina. Porque a existência de uma veradora mulher, mãe, lésbica, negra, vinda da favela que não se corrompeu e ainda se dispôs a lutar contra o interesse dos corruptos e das empresas que se alimentam disto representa um perigo apenas por existir. Ela não pode ser tão boa assim porque desta forma o povo, a imensa maioria do povo brasileiro que é tão bom quanto Marielle irá perceber que se ela pode, eu também posso.
Então não basta matá-la, sua voz tem que se perder e se tornar suja. Sua vida precisa sumir e o povo precisa aceitar que 70% de nós não pode mudar a vida pública, que é normal viver em uma cidade ou em um país onde apenas 66% dos domicílios tem sistema de esgoto ou onde morrem 60 mil pessoas assassinadas por ano. Não há outra saída além de aceitar o que temos e nossa única fonte de felicidade se torna discutir BBB, assistir ao futebol de quarta, beber cerveja barata às sextas, comer churrasco aos domingos.
O que Chomsky nos mostra é que nossa situação política, seja nos EUA, seja aqui, não é fruto do acaso, e ele mostra os culpados: os legisladores e a elite financeira que trabalha para instituições financeiras e corporações multinacionais. Não é do interesse desta classe dominante – dominante porque eles possuem os dispositivos para dar ordens em quase toda esfera social – que a classe dominada – dominada porque a nós, resta obedecer, e quando muito reclamar pra mãe – tenha algum tipo de representante capaz de nos mobilizar e apontar uma direção. E Mariellemobilizou. Milhares foram as ruas, no Parlamento Europeu ela foi lembrada, Katy Perry a homenageou em seu show, a ONU estuda seu caso.
Sua reputação precisa ser destruída e sua voz, silenciada, para que a democracia morra enquanto tenta nascer em um país, cujo ranço da ditadura está mais vivo do que nunca. Para que nenhuma voz contrária fale e o medo e o desespero vença. Mas pela primeira vez em muito tempo, estou otimista.
Tudo leva crer que Marielle está mais viva do que nunca.
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