Individualidade, Fenômeno e Zen! Minhas especulações.

 

Pra o Zen Budismo as “coisas” são uma espécie de ilusão.


Mesmo o “eu” é mais ou menos como o “eixo” de um redemoinho em um rio. Uma “onda” em um mar… 


Há movimento, você vê o centro do redemoinho e diz: há um “eixo”. 


“Parece” que há um eixo” Vemos ele alí girando e se fazendo “perceber”. 


Na verdade, há um, enquanto existe o redemoinho, cessou o redemoinho, cadê o eixo? Para o Zen Budismo “Nós” somos redemoinhos na existência, movimentos e fluxos de pensamentos, paixões, e etc.


Nosso “eu” é o eixo, mas na verdade, nós não somos redemoinhos. Nós somos o céu azul. Somos um Mar! Quem sente que é o céu azul, resolveu nascimento e morte. Isso é o Budismo. Nem almas, nem espíritos, nem ninguém lá fora pra nos ajudar. Nem ninguém pra nos premiar, nem ninguém para nos castigar. 


Tudo é ação e conseqüência. Você caminha sobre os resultados dos seus atos no mar de escolhas e relações. Os seus atos provocam resultados. Os resultados, são tudo que você tem. Nós somos o “movimento” no universo. Fenômenos, como os redemoinhos.

Fenomenologia transcendental e a psicologia fenomenológica de Edmund Husserl

 Por  Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia); Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná); Ileno Izidio da Costa (Universidade de Brasília).


RESUMO

Este artigo procura resgatar o sentido e a proposição original, em Edmund Husserl, da Psicologia Fenomenológica como uma Psicologia que trata efetivamente da subjetividade e do psiquismo humano a partir do fenômeno essencial que caracteriza o ser humano: a consciência intencional. Desta feita, intenta buscar, com a precisão husserliana, resgatar as bases filosóficas de uma ciência rigorosa do psíquico – a Psicologia Fenomenológica –, que não se confunde com os fundamentos filosóficos da Fenomenologia Transcendental, mas que deveria caminhar, "enquanto ciência de rigor do psicológico" ao lado desta, objetivando superar a crise da psicologia positivista e cientificista e lançando bases para uma efetiva psicologia do ser humano.

Palavras-chave: Psicologia científica, Subjetividade, psíquico.


INTRODUÇÃO: Psicologia e Fenomenologia

"As ciências são criações do
espírito que perseguem certo fim e
devem ser julgadas, portanto, de acordo com esse fim."
Edmund Husserl

É corrente afirmar que a Psicologia, na história das ciências modernas, foi inaugurada oficialmente como ciência natural apenas no final do século XIX, mesmo que argumentos distintos apontem para o início do século. A separação da Psicologia, em relação à Filosofia – passando pela Fisiologia – se deu oficialmente com a fundação dos "Laboratórios de Psicologia Experimental", que se concretizaram pela incorporação e a prática do modelo científico-natural às investigações em psicologia. No entanto, é indispensável destacar que a institucionalização das disciplinas de Psicologia, promovida pela reforma educacional de 1824 na Alemanha, e o progressivo interesse na Psicologia em diversas áreas, não coincide com a institucionalização da psicologia experimental e a consequente proliferação dos laboratórios; fato que promoveu essa definitiva emancipação da filosofia (Araújo, 2013).

No entanto, no processo de emancipação da Psicologia como ciência natural, é possível afirmar que ela não desenvolveu uma metodologia própria. Ou seja, se por um lado não delimitou claramente seu objeto, por outro, não elaborou uma teoria e um método únicos, próprios para suas investigações (específicos ou únicos enquanto paradigma, conforme postula Kuhn, 1991). Ao contrário, passou a se alicerçar – predominantemente – a partir da incorporação direta dos modelos normativos de ciência natural, tais como a observação, a experimentação e a quantificação, a partir da imposição ideológica do Positivismo reinante. Assim, foi a partir da ciência positiva e natural que a Psicologia se apresentou como uma "verdadeira" ciência da consciência, do psiquismo e, posteriormente do comportamento e da cognição.

Cabe lembrar que Auguste Comte (1830-1842/1975), em seu Curso de Filosofia Positiva, anunciou que a validade da observação do humano, e consequentemente a possibilidade de uma Psicologia científica, estaria limitada à observação externa, sendo – portanto – tarefa da Biologia, ou, em última análise, da sociologia (enquanto um conhecimento como história moral). "Assim, ou bem a psicologia se atém à especificidade de seu objeto e, uma vez que ele escapa à observação externa, abre mão imediatamente de sua inscrição na ciência, confundindo-se ora com a metafísica, ora com a literatura; ou bem se submete ao método positivista e, nesse caso, passa a ser ciência da natureza, perdendo de vista seu objeto: o sujeito" (Silveira, 2018, 15-16).

Como é comum a todos, a psicologia científica teve início na tradição filosófica alemã, porém, diferentemente do que indicam os manuais de psicologia, a emancipação da psicologia científica não se deu especificamente com a fundação do Laboratório de Psicologia Experimental de Wilhelm Wundt, na Universidade de Leipzig. Diferentemente, a conquista científica da Psicologia decorreu de uma mudança conceitual e epistemológica no interior de seu estatuto teórico, desde o século XVIII, deixando de ser a reflexão e cuidado da alma para ser a ciência natural da consciência ou dos fenômenos psíquicos, o consequentemente levou a ser uma ciência psíquica de ordem naturalista. Cabe ainda destacar que, em meados do século XX, a Psicologia não se referia mais exclusivamente só aos fenômenos psíquicos – devidos aos problemas epistemológicos do estudo da subjetividade – mas preferencialmente ao comportamento, constituindo em seguida, uma ciência do comportamento. Comenta Heidbreder (1981) que a "Psicologia científica nada mais é do que um prolongamento do método científico a uma região onde a observação desinteressada tem sido particularmente difícil" (p.72).

No entanto, a motivação originária da Psicologia, desde sua elaboração na antiguidade greco-romana, foi a de refletir sobre a alma, de explorar a interioridade humana (ou a subjetividade) e de toda a natureza não material, definindo, assim, historicamente, objetos como: a alma (ou o anímico), o psiquismo, a interioridade da pessoa, o ato mental, o espírito e, por fim, a consciência. Ao se tornar ciência natural, então, a psicologia passou a fazer uso exclusivo de métodos objetivos em suas análises, causando uma confusão interna na explanação de seus pressupostos, além de criar um claro "problema de legitimação" (Canguilhem, 1956/2012).

Sobre esse processo, destaca-se a posição do filósofo e fundador da Fenomenologia, Edmund Husserl (1959-1938) que foi um dos principais críticos à psicologia científica (experimental) da sua época, denunciando os sérios problemas epistemológicos na constituição dessa ciência ao estabelecer-se como psicologia fundamental. Ainda, esteve entre os principais filósofos que elaboraram o "Manifesto contra os psicólogos experimentais", publicado primeiramente na Revista Logos em meados de 1913 e depois em alguns periódicos e jornais alemães. É importante evidenciar, conforme comenta Araújo (2013), que o "Manifesto" tinha como intuito principal, reivindicar a criação de cadeiras de psicologia experimental nos cursos das universidades alemãs, uma vez que os psicólogos experimentais estavam ocupando quase vinte por cento das cadeiras de filosofia.

Deve-se entender que a crítica que Husserl faz à psicologia científica não se resumiu apenas a um ato político, tal como o manifesto, mas – como analisa Merleau-Ponty (1973) – foi a evidente existência de um sério "conflito – filosófico, e portanto, epistemológico – entre as exigências de interioridade racional pura, e as exigências de uma psicologia considerada como ciência da determinação exterior das condutas do homem" (p. 30). Para Husserl, essa confusão está situada na subordinação da vida do espírito à vida natural, postulando, assim, o espírito como um elemento derivado da natureza física. Sobre isso, comenta o filósofo: "Com toda a seriedade, sou da seguinte opinião: não existiu nunca, nem existirá jamais, uma ciência objetiva do espírito, uma doutrina objetiva da alma, objetiva no sentido se atribuir às almas, às comunidades pessoais, inexistência ["existência em"] nas formas da espaço-temporalidade". (Husserl, 1954/2012, p.273).

Nesse sentido, ao adotar o modelo físico-matemático das ciências naturais, a psicologia científica assumiu a realidade do objetivismo natural nos dois mundos – o físico e o psíquico – naturalizando o psiquismo (consciência). E, ao se assumir como uma ciência empírica, natural e probabilística, edificando-se com os métodos das ciências objetivas, perdeu de vista o verdadeiro sentido de uma psicologia como a que aqui tentar-se-á caracterizar. A psicologia científica, como declara Husserl (1954/2012), "(...) fracassou, porque já na sua fundação originária como psicologia de uma nova espécie, ao lado da ciência da natureza moderna, negligenciou questionar o único sentido genuíno da tarefa que lhe é essencial como ciência universal do ser psíquico" (p. 165). Alcançar a abrangência dos resquícios de uma visão positivista de se fazer psicologia é perceber que focar ou privilegiar somente os aspectos objetivos significa, em verdade, a naturalização do saber, do sujeito, da consciência e da vida psíquica. Assim, preconizou Husserl (1954/2012) que "(...) na urgência de nossa vida – ouvimos – esta ciência nada nos tem a dizer. Ela exclui de um modo principal justamente as questões que, para os homens do nosso tempo desafortunado (...) são questões prementes: as questões acerca do sentido ou ausência de sentido de toda existência humana" (p. 3).

A Psicologia que tem o encargo de estudar a vida psíquica per si e a tarefa de acessar a essência da subjetividade na realidade, de modo científico, natural, não o faz. Ao contrário, acabou desviando-se dessa tarefa pela simples incapacidade do Positivismo em captar o autêntico fundamento da subjetividade. Para Husserl (1954/2012), os problemas enfrentados na Psicologia são reflexos daquilo que denominou "crise das ciências", pelos cientistas não compreenderem que, ao contrário do que postulam, a natureza objetiva é possuidora de uma autonomia relativa e não absoluta. Husserl buscou mostrar que é só o "(...) espírito e, exclusivamente o espírito que existe em si mesmo e para si; só o espírito é autônomo e pode ser tratado com essa autonomia, de forma verdadeiramente racional e de modo radical" (Gómez-Heras, 1989, p.57).

Dessa maneira, é do objetivismo adotado com veemência, que deriva o fracasso da psicologia moderna, porque ao tornar-se uma ciência autônoma não alcançou a peculiar essência da consciência e não compreendeu o contrassenso da interpretação psicofísica da subjetividade e da existência humana. Dessa forma, para Husserl, é necessário instaurar na psicologia científica a crítica da predominância da natureza objetiva sobre o psiquismo, ou como pensa o filósofo, sobre o espírito, porque, "como a física, a ciência da natureza no sentido habitual é uma ciência empírica dos fatos materiais, da mesma forma a psicologia é a ciência empírica (ciência da natureza) dos fatos espirituais" (Husserl, 1975, p. 279).

A vida tem dimensões diferentes, ou seja, a vida não possui um sentido apenas fisiológico-natural, mas é uma "vida ativa em vista de fins, realizadora de formações espirituais – no sentido mais lato, na vida criadora de cultura na unidade de uma historicidade" (Husserl, 1954/2012, p. 249). E, nesse sentido, parece um contrassenso subordinar a vida do espírito à natureza, se a própria vida espiritual é produtora do sentido da ciência e da natureza. Husserl, ao expor e analisar o impasse da psicologia científica (praticamente em quase toda sua obra), afirmou que somente com a Fenomenologia Transcendental a psicologia será capaz de restabelecer um método e um fundamento que retome autenticamente a motivação das ciências do espírito (ciências humanas e sociais), tornando-se assim uma autêntica Psicologia, ou seja, uma Psicologia Fenomenológica.

A relação da Fenomenologia com a Psicologia está presente desde as Investigações Lógicas de 1900/1901; porém, as suas distinções e as colaborações entre ambas foram definidas previamente no texto, "Filosofia como ciência de rigor", publicado em 1910 na Revista Logos. Nesse texto, Husserl (1910/1965) afirma, entre outras coisas, que "(...) é de esperar de antemão que a Fenomenologia e a Psicologia devem estar próximas uma da outra, referindo-se ambas à consciência, embora de modos diversos e em ‘orientação' diversa, podendo dizer-se que à Psicologia interessa a ‘consciência empírica', (...) algo existente na continuidade da natureza, ao passo que à Fenomenologia interessa a ‘consciência pura'" (p.19). Em relação à Fenomenologia, é importante salientar que consiste em uma filosofia cujo projeto radical está no retorno à subjetividade transcendental e ao mundo-da-vida, buscando recuperar metodologicamente a origem de todas as vivências, ou seja, a própria automanifestação da subjetividade transcendental. É uma filosofia e um método que consiste, em termos gerais, em um estudo rigoroso e descritivo dos fenômenos, ou seja, constitui-se como uma "ciência dos fenômenos". Para Husserl (1929/2013) não são das filosofias e da ciência que se deve partir o impulso da investigação, mas sim, dos problemas e das próprias coisas.

No entanto, o que entendeu Husserl por fenômenos, ou seja, "as próprias coisas"? Husserl entendeu por fenômenos o modo de manifestação de todas as coisas. A palavra "fenômeno" (φαινόμενον, phainomenon) é entendida por Husserl como tudo aquilo que aparece, ou seja, todas as coisas (Sachen) que se mostram a alguém. Aqui convém observar que "coisa", nesse contexto, não deve ser entendida apenas como coisa física (Ding), como por exemplo, um livro, uma casa, etc., presentes em "carne e osso". As coisas (Sachen, sache) que se mostram às pessoas, devem ser tratadas como fenômenos, porque em suas aparições é possível, de imediato, compreender os seus sentidos e não apenas o sentido físico. Isso acontece porque existe no ser humano uma necessidade de significar tudo aquilo que se mostra em sua experiência. Husserl, então, identifica essa busca de sentido das coisas (Sachen) como o problema fundamental da Filosofia.

É possível perceber isso na própria história do pensamento ocidental, porque muitas foram as filosofias que descreveram o sentido das coisas. Contudo, como analisa Husserl (1954/2012), as filosofias e a própria psicologia (que também tem como objeto de estudo a consciência e seus conteúdos) só alcançaram partes das coisas (ou dos fenômenos), ou seja, ora coisa como física ora como ideia; ou coisa como orgânica, coisa como psíquica, etc. Assim, quando se diz que algo se mostra ou aparece, tem-se já subentendido que aquilo que se mostra, mostra-se a alguém, a nós, seres humanos. Esse é um ponto importante da fenomenologia: a ideia de que os fenômenos e a consciência humana estão sempre correlacionados, em constante movimento (Fernandes, 2011; Goto, 2015).

Também é possível afirmar que o objetivo fundamental de Husserl era encontrar o fundamento de todas as ciências, a fim de garantir que o ato de pensar tenha uma segurança inabalável e, assim, devolver ao estatuto do saber a credibilidade da racionalidade humana. Para isso, no entendimento de Husserl, a fenomenologia tem que constituir-se como fundamento e método – uma atitude filosófica – e não como uma doutrina filosófica, porque sua motivação está em encontrar e discutir a questão do conhecimento e que seja suficiente para restabelecer o estatuto do conhecimento e das relações do ser humano com mundo, seguindo um critério rigoroso (Goto, 2015). Husserl, então, concebe a fenomenologia como uma:

[...] fenomenologia pura, cujo caminho aqui queremos encontrar, cuja posição única em relação a todas as demais ciências queremos caracterizar e cuja condição de ciência fundamental da filosofia queremos comprovar, é uma ciência essencialmente nova, distante do pensar natural em virtude de sua peculiaridade de princípio e que, por isso, só nossos dias passou a exigir desenvolvimento. Ela se denomina uma ciência de "fenômenos". [...] Por diferente que seja o sentido da palavra fenômeno em todos esses discursos, e que significações outras ainda possa ter, é certo que também a fenomenologia se refere a todos esses "fenômenos", e em conformidade com todas essas significações, mas numa atitude inteiramente outra, pela qual se modifica, de determinada maneira, o sentido de fenômeno que encontramos nas ciências já nossas velhas conhecidas. (Husserl, 1913/2006, p.25).

Tomado por esse empreendimento filosófico, Husserl chega ao elemento fundamental da fenomenologia filosófica: o "a priori da correlação universal" entre o objeto da experiência e seus modos pelos quais se dão. Isso significa que originariamente cada consciência ou modo de consciência é correlato com o mundo e tem seus objetos e, ainda, que o mundo e cada objeto têm seus modos peculiares de ser dados à consciência. Nos seus últimos escritos, publicados postumamente em 1954, sob o título de "A Crise das ciências europeias e a Fenomenologia Transcendental", Husserl comenta que o

(...) irromper inicial deste a priori universal da correlação do objeto da experiência e das maneiras de dação (cerca do ano de 1889, durante a elaboração das minhas "Investigações Lógicas"), perturbou-me tão profundamente que o trabalho inteiro da minha vida foi desde então dominado por esta tarefa de uma elaboração sistemática deste a priori da correlação (Husserl, 1954/2012, p.136).

Foi com a descoberta do "a priori da correlação universal" que Husserl modificou significativamente o conceito de "intencionalidade" desenvolvido por Franz Brentano (1838- 1917), mestre e amigo de Husserl, que postulava que toda consciência é sempre "consciência de algo", ou seja, que todo pensar é sempre "pensar em algo", todo sentir é "sentir algo", e assim por diante. É notório que Husserl manteve a ideia geral de intencionalidade e a considerou como um grande avanço filosófico desde Descartes; porém, diferentemente de Brentano, revisitou esse conceito, mostrando que a consciência intencional, em verdade, não é única e exclusivamente psicológica, mas é constituída por uma multiplicidade de atos intencionais, ou seja, que cada modo de consciência tem seus objetos (fenômenos) e vice-versa, indo para além da atribuição psicologista de Brentano (Goto, 2012). Ainda, a intencionalidade não é apenas uma ligação ou conexão com o objetivo, mas é um ato que visa possuir o objeto que acontece por muitos atos. Nas "Investigações", Husserl (1900-1901/2007) descreve a consciência em vários sentidos, indo além do significado psicologista-empírico dado na época, sendo a consciência entendida como unidade de vivências (fluxo de vivências), como percepção interna das vivências (o ser-consciente) e, por fim, como vivência intencional.

A vivência intencional, como analisa Husserl (1900-1901/2007), é tudo aquilo que se vive, ou seja, tudo aquilo de que se tem consciência e que por ela se registra algo. Contudo, é importante destacar que essa ideia não deve ser confundida com o sentido popular de "vivência". Husserl (1900-1901/2007) escreve que "(...) o nosso conceito de vivência [fenomenológico] não está em consonância com o popular", no sentido de um "complexo de acontecimentos externos, e o viver de percepções, ajuizamentos e outros atos, nos quais esses acontecimentos se tornam uma aparição objetiva e, frequentemente, objetos de certo ato de posição referido ao eu empírico" (p.383). Essa ideia se refere à experiência (Erfahrung). Ao contrário, o sentido fenomenológico de vivência não significa viver no sentido da experiência, mas sim, em "darmos conta" daquilo que se vive, ou seja, "o que se vive", referindo-se "aos atos característicos da interioridade do ser humano que vão desde a percepção até a recordação, a imaginação, o pensamento e assim por diante, entendidos como elementos estruturais e constitutivos da consciência" (Bello, 1998, p. 26). Ainda, a vivência de algo é, por assim dizer, a vivência de um sujeito que vive no mundo, que: "a) sempre encontra o mundo como algo pré-dado e pré-existente e que, b) encontrase a si mesmo nesse mundo. No entanto, a vivência, onde o homem encontra o mundo e a si mesmo, é a vivência de um sujeito que possui vivências das coisas como experiência mais originária da consciência" (Gómez-Heras, 1989, p. 211).

Para Husserl (1954/2012), é somente com essa nova filosofia que se poderá acessar à subjetividade enquanto tal e que poder-se-á transcender a concepção positivista, objetivista, da realidade subjetiva e retomar o sentido da humanidade na sua motivação originária. Para isso, Husserl propõe outro método à Psicologia que tenha acesso à subjetividade, evitando a ruptura entre o objeto e o sujeito e suas confusões de limites, ou seja, o método fenomenológico. O método fenomenológico tem como princípio fundamental o de reconduzir a atenção às "coisas mesmas" (Zu den Sachen selbst). Isso significa que se deve dirigir a atenção diretamente ao fenômeno, ou seja, a tudo aquilo que aparece imediatamente à consciência intencional.

Ainda, o "voltar às coisas mesmas" consiste na retomada ao mundo prévio às teorizações, a um mundo que é vivo, originário e de onde parte toda posterior idealização científica. Isso porque, segundo Husserl (1954/2012), o método fenomenológico proporciona a recuperação do mundo das experiências originárias, pré-científicas e constituí-lo em argumento de uma ciência universal fundamental, porque só no mundo-da-vida é que é dado o "reino das evidências originárias". No texto "O mundo-da-vida – explicitações do mundo pré-dado e sua constituição" - textos que datam de 1916 a 1937 - Husserl afirma que o "mundo nos é pré-dado. Se dirigirmos nosso olhar direta e ativamente até algo qualquer, este já estava aí, afetou-me, motivou-me para ‘voltar-se para' e assim, pode agora ser diretamente captado por mim" (Husserl, 2008, p.26).

Entretanto, para o acesso imediato aos fenômenos é preciso dar um primeiro passo metódico, pois para que se possa reconduzir-se ao fenômeno, é fundamental que se deixe de lado, ou "fora de circulação", as teorias ou conceitos teóricos. Ainda, deve-se "deixar de lado", principalmente a maneira natural pela qual se aceita as coisas do mundo e o mundo mesmo, ou seja, todas as crenças estabelecidas e o mundo efetivo. A essa maneira ou orientação natural que se tem das coisas e do mundo, Husserl denominou de "atitude natural". Descreve Husserl:

Pelo ver, tocar, ouvir, etc., nos diferentes modos da percepção sensível, as coisas corpóreas se encontram simplesmente aí para mim, numa distribuição espacial qualquer, estão, no sentido literal ou figurado, "à disposição", quer eu esteja, quer não, particularmente atento a elas e delas me ocupe, observando, pensando, sentindo querendo. Também seres animais, por exemplo, homens, estão imediatamente aí (Husserl, 1913/2006, p.73).

Para isso Husserl concebe como um primeiro passo, a epoché universal que, em síntese, consiste em "tirar de circulação" ou "por entre parênteses" a orientação natural. Significa colocar "fora de ação a tese geral inerente à essência da orientação natural", colocando "(...) entre parênteses tudo o que é por ela abrangido no aspecto ôntico: isto é, todo este mundo natural que está constantemente ‘para nós aí', ‘a nosso dispor' e que continuará sempre aí como ‘efetividade' para a consciência, mesmo quando nos aprouver colocá-la entre parênteses" (Husserl, 1913/2006, p.81). Edith Stein (2003) reforça a importância do método fenomenológico dizendo que a epoché, na prática, consiste em "(...) deixar de lado o quanto for possível o que ouvimos e lemos ou o que nós mesmos produzimos a fim de se achar a melhor solução para a situação. Isso para, por assim dizer, acercarmos-nos das coisas com um olhar livre de preconceitos e poder absorver-nos da intuição imediata" (p. 33). Dessa maneira, o método fenomenológico promove uma passagem da atitude natural à atitude fenomenológica, ou seja, uma nova atitude que deixa de lado todas as posições já aceitas pelo cotidiano e pela ciência, para poder começar uma mais radical e abrangente análise. Contudo, deve-se advertir que essa "colocação entre parênteses" ou a suspensão da tese do mundo natural, não deve de nenhuma maneira ser confundida por aquilo que os positivistas ou os realistas ingênuos entenderam por neutralidade, ou seja, uma ciência "livre de teoria" ou mesmo de metafísica.

A atitude fenomenológica possibilita ao fenomenólogo (psicólogo) tomar distância das intencionalidades da atitude natural e o recoloca frente às intencionalidades mesmas, ou seja, em uma contemplação das mesmas. Ainda, consoante San Martín (1986), a atitude fenomenológica permite encontrar presente pelo menos três níveis ou aspectos do fenômeno: 1) os atos próprios do sujeito (perceber, amar, odiar, desejar, julgar, etc.); 2) aquilo que é dado nos tais atos e, por fim 3) a realidade em si. Para o filósofo, somente com a epoché universal será possível captar o essencial, as irrealidades, ou seja, tudo aquilo que está para além do mundo efetivo, fático, real. Uma vez que a percepção/intuição permitiu a imediaticidade do fenômeno por ele mesmo, ou seja, em sua "autopresentificação originária", é dado então, a captação daquilo que ele é em sua essência, presente nos vários modos de se presentificar. Comenta Stein (1932/2003) que "a intuição não é somente a percepção sensível de uma coisa determinada e particular, tal como é aqui e agora. Existe uma intuição do que a coisa é por essência e isto tem um duplo significado: o que a coisa é pelo seu ser próprio e o que é por sua essência universal" (p. 23).

Husserl (1913/2006) designa por "essência" (Eidos) aquilo que se encontra no ser próprio de um indivíduo como o que ele é, mas que cada um desses ‘o quê' ele é, seja ‘posto em ideia'. Por isso, logo no primeiro livro das "Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica", publicada em 1913, o filósofo distinguirá os fatos das essências, porque "cada objeto individual tem uma composição eidética como sua essência, assim como, inversamente, a cada essência correspondem indivíduos possíveis que seriam suas singularizações fáticas" (p.42). Esse processo metódico de captar o essencial, garantindo a evidência daquilo que se analisa, Husserl denominou de método eidético. Pode-se dizer que a fenomenologia eidética é uma ciência eidética, porque se caracteriza em ser uma "visão" direta às próprias coisas, recolhendo delas a "composição eidética", via intuição/percepção, cujo propósito consiste em começar por aquilo que é originariamente (Originär) dado como fundamento de todo o conhecimento. Só assim teremos a garantia daquilo que se mostra, conduzindo-nos ao caminho das evidências (Urevidenz).

É com uma proposta de método radical que se poderá acessar original e genuinamente a subjetividade, e assim, ultrapassar a crise das ciências e retomar o sentido da humanidade na sua motivação originária. É com a Fenomenologia Transcendental e, consequentemente com a Psicologia Fenomenológica, que se terá a possibilidade de retomar um novo sistema de relações entre a subjetividade e a objetividade, evitando a ruptura entre objeto/objeto e mundo vivido e mundo teórico.

 

A CONSTITUIÇÃO DA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DE EDMUND HUSSERL

Com a fundação da Fenomenologia Transcendental e as críticas de Husserl à psicologia científica – e ao Psicologismo (Husserl, 1910/1965; 1954/2012) – tem-se, consequentemente, a proposta de reformulação da psicologia moderna/científica para que se constitua uma Psicologia Fenomenológica. Convém lembrar que as aproximações de Husserl com a Psicologia eram recorrentes, desde seus contatos com Brentano; mas, enquanto estabelecia paralelos, nunca foi sua proposta estabelecer uma identidade entre as duas disciplinas, nem a alienação de uma sobre a outra, mas a intenção de constituir uma Psicologia Eidética, sobre a qual se alicerçaria a Psicologia Empírica (Farber, 1956; Rafaelli, 2004; Peres, 2016; Reis, Holanda & Goto, 2016; Goto, Holanda & Costa, 2018).

No entanto, convém dizer também que todo o desenvolvimento da Psicologia Fenomenologia passou por diversos momentos, evidenciando como essa Psicologia mantem sua relação com a própria Fenomenologia. É possível destacar aqui pelo menos três momentos dessa relação: 1. o momento "pré-transcendental", caracterizado pela crítica ao psicologismo e a psicologia científica, cujo intuito estava na diferenciação entre a Fenomenologia e a Psicologia, presente nas obras Investigações Lógicas (1900-1901), Filosofia como ciência de rigor (1911), Problemas Fundamentais da Fenomenologia (1910- 1911); 2. o momento "transcendental", caracterizado pela concepção de "Psicologia Fenomenológica", ou seja, uma disciplina que Husserl vai estabelecer definitivamente como paralela e complementar a Fenomenologia Transcendental, presente nas obras Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia fenomenológica (1913), Psicologia Fenomenológica (1925), texto da Enciclopédia Britânica (1927); e, por fim, o momento "póstranscendental", que aparecerá na obra A crise das ciências europeias e a Fenomenologia Transcendental (1935-1937), caracterizado pela descoberta que Husserl chamará de surpreendente, ou seja, a identificação da Psicologia Fenomenológica à Fenomenologia Transcendental, postulando assim a Psicologia como Transcendental, tal como comenta Husserl: "O resultado surpreendente da noda investigação pode também, como parece, ser assim expresso: não existe uma psicologia pura como ciência positiva [...]. Só existe uma psicologia transcendental, que é idêntica à filosofia transcendental" (Husserl, 1954/2012, p. 208). Esse momento pode ser entendido como a transformação radical da ciência psicológica em uma "Psicologia Transcendental", que entenderá a vida psíquica humana não mais reduzida a um organismo fisiológico, mas sim fundamentada na subjetividade transcendental.

Cabe dizer que esses "momentos" não são excludentes, mas evidenciam a gênese e o desenvolvimento da Psicologia Fenomenológica. Nesse artigo buscou-se evidenciar apenas o momento "transcendental", por entender que esse momento está mais próximo do psicólogo contemporâneo seja em suas pesquisas empíricas ou nas possíveis 49 reflexões que venha a fazer de sua prática, justamente porque busca conhecer as peculiaridades das vivências psíquicas intencionais, habitualidades psicológicas, ou seja, "a configuração total de uma vida psíquica em geral" (Husserl, 1927/1991). Frente a isso, questiona Husserl (1924-25/2001) que se antes de colocar os objetos psicológicos em experimentos, como faz a psicologia científica experimental, não seria mais importante e fundamental saber primeiro o que eles são ou como são constituídos? Claro que com esses questionamentos, Husserl (1954/2012) não nega nenhum tipo de contribuição que a psicologia científica venha a dar, pois concorda para o fato que existe sim uma psicologia como ciência sobre o solo do mundo pré-dado, ou seja, dos homens e animais simplesmente no mundo. Contudo, para o filósofo, a pesquisa científica é relativa e limitada, tal como a ciência positiva, porque não questiona aquilo que é essencial do psíquico ou da própria consciência. Por isso postulou a Psicologia Fenomenológica que tem, então, como diz, um afã reformador, no sentido de resgatar, a partir do método fenomenológico, a "essência" da vida psíquica. Explica Husserl, na introdução do texto da Enciclopédia Britânica, publicado em 1927:

[...] Ao mesmo tempo em que a fenomenologia filosófica, mas sem se distinguir a princípio dela, surgiu uma nova disciplina psicológica paralela a ela, quanto ao método e ao conteúdo: a psicologia apriorística pura ou "psicologia/fenomenológica", na qual, com um afã reformador, pretende ser o fundamento metódico sobre a qual pode, por princípio, erguer-se uma psicologia empírica cientificamente rigorosa. A demarcação desta fenomenologia psicológica rodeada do pensamento natural seja talvez conveniente como introdução propedêutica para elevarmos a compreensão da fenomenologia filosófica. (Husserl, 1927/1990, p.59)

Foi com as análises fenomenológicas da consciência transcendental que Husserl chegou a uma concepção de uma Psicologia Fenomenológica (via psicológica), pautada na necessidade de primeiro esclarecer a natureza da vida psíquica, as estruturas vividas concretamente e a totalidade dos modos de consciência psíquica. Ainda, deve-se entendê-la não como uma psicologia empírica em suas relações com o físico (como se orienta a psicologia científica), mas como uma psicologia pura, ou seja, uma psicologia que investiga as vivências psíquicas per si e que transcende a relação psicofísica. "A pura psicologia não conhece justamente senão o subjetivo, e admitir aí como existente algo de objetivo é já dela ter aberto mão" (Husserl, 1954/2012, p.209). 50

A delimitação desse "novo" lugar para a Psicologia pode ser muito bem esclarecido naquilo que Husserl (2011), nas lições de 1925-1928, define como seus pontos de partida: tomemos o §5, no qual delimita a psicologia fenomenológica, a partir das distinções com as demais ciências do espírito e da natureza; afirmando – em seu §6 – a "necessidade de um retorno ao mundo da experiência pré-científica e à experiência na qual ela é dada (concordância da experiência)" (p. 56). A Psicologia Fenomenológica aparece, então, como uma psicologia radical em relação às outras psicologias (empíricas e experimentais), porque somente esta está dirigida genuinamente à vida psíquica em si mesma e as suas estruturas, conduzindo seu "olhar" verdadeira e genuinamente para a interioridade psíquica. Diante dessa concepção, a Psicologia Fenomenológica pode ser resumida, como descreve Husserl (1924-25/2001), como possuidora de características básicas, a saber: constitui-se uma ciência a priori; como uma ciência descritiva e eidética, possuindo um caráter intuitivo.

A Psicologia como ciência descritiva – já delimitada nas Investigações Lógicas – refere-se ao caráter propedêutico a uma psicologia naturalista, ou seja, serviria de "fundo", de solo de enraizamento para esta: "Por um lado, ela serve à preparação da Psicologia enquanto ciência empírica. Ela analisa e descreve (especialmente enquanto fenomenologia do pensar e do conhecer) as vivências representativas, judicativas e cognitivas, que devem encontrar na Psicologia a sua explicação genética e a sua investigação segundo as conexões empírico-legais" (Husserl, 1900-1901/2007, p. 4).

A psicologia como uma ciência a priori e eidética significa que a psicologia, em sentido pleno, deve ser fundada como uma ciência das universalidades (necessidades essenciais) das vivências psíquicas, ou seja, como uma ciência das essências universais do psiquismo, sem as quais seriam inconcebíveis os seres psicológicos. A Psicologia Fenomenológica como ciência eidética deve então se fixar na descrição da essência (pureza) da estrutura psicológica tal como aparece à intuição e à reflexão; isso significa apreender o essencial da "vida anímica". Assim, o psicólogo, como estabelece Husserl (1954/2012), que busca uma ciência rigorosa da vida interna e intencional, deve adotar o método da redução fenomenológico-psicológica (redução eidética), porque só assim poderá se desvencilhar da orientação natural-científica, como também da atitude natural na qual vive todos, inclusive o psicólogo. Recomenda Husserl que:

Ao psicólogo, no meio desta vida, mas na sua atitude de ‘observador desinteressado', é tematicamente acessível a cada vida intencional, conforme a vive a cada sujeito, ele mesmo e cada comunidade particular de sujeitos que são tematicamente acessíveis às efetivações dos atos, o agir perceptivo e de 51 qualquer outro modo experienciador, os intuitos cambiantes do ser, da vontade, etc. (Husserl, 1954/2012, p. 194).

A redução, exercida pela epoché psicológica, proporcionará ao psicólogo a suspensão de sua postura ingênua, da atitude natural e o reconduzirá ao seu objeto mais próprio: a vida anímica, psíquica pura. Conforme Husserl, o "psicólogo tem como tema mais próximo e fundamental a vida pura dos atos intencionais das pessoas, assim, pois, em primeiro lugar, a vida da consciência em sentido estrito" (Husserl, 1954/2012, p.251). No Apêndice XXI (ao §37), das lições de 1925-1928, Husserl (2011) acrescenta: "Na atitude psicologicamente pura, coloco tematicamente fora de circuito minha humanidade, operando a redução ao puramente psíquico, (...) de tal sorte que tenho a apercepção da pura subjetividade, (...) de modo que não atribuo nada mais que a apercepção do mundo enquanto fato subjetivo, mas não quanto objetividade posta em validade" (p. 306).

Procedendo dessa maneira, a Psicologia Fenomenológica passa de maneira decisiva a tematizar as características principais da vida psíquica, ou seja, os modos essenciais e básicos de ser: as intencionalidades. A vida psíquica é, por assim dizer, a vida da consciência, a própria consciência, porque a consciência é sempre consciência de algo. Comenta Husserl (1925/2001) que intencionalidade já tinha sido vista pelos escolásticos, porém foi ressignificada na "Psicologia Empírica" de Brentano como característica fundamental da vida psíquica. Entretanto, pode-se afirmar que foi com as Investigações Lógicas que a questão da intencionalidade recebeu definitivamente a fundamentação necessária na construção de um saber rigoroso, ao mostrar que a intencionalidade não tem um caráter exclusivamente psicológico, mas sim transcendental, expressa no "a priori da correlação universal".

A nova psicologia proposta por Husserl (1927/1990), em síntese, conduz à reformulação da psicologia empírica e científica como psicologia fenomenológica, porque visa o esclarecimento dos principais conceitos usados na psicologia (consciência, percepção, afetividade, imaginação, fantasia, cognição, etc.) a partir deles mesmos, ou seja, a partir da própria identidade e constituição dos referidos processos psicológicos. Contudo, para isso não coloca a vida psíquica em uma análise natural científica, mas por entendê-lo como são eles em nossa vida humana, procura descrevê-la como tal, identificando as suas estruturas sintéticas e universais. A psicologia fenomenológica, pois, se afirma propedêutica, analítica e eidética, tomando os fenômenos psicológicos como fenômenos puros, indicando aquilo que se conhece – na psicologia moderna – como os "processos psicológicos básicos", mas que foram acolhidos pela cientificidade natural, a partir de suas manifestações, e não de sua essência fenomênica.

Por fim, pode dizer então que com a Psicologia Fenomenológica tem-se a fundação de uma "nova psicologia" que não se confunde com qualquer "abordagem" da Psicologia (seja esta antiga ou nova). Ao contrário, frente à crítica que Husserl promove contra o naturalismo e relativismo das análises psicológicas que estavam em voga (e que ainda permanecem, em muitos setores da Psicologia, bastando para tal, percebermos a pulverização das "escolas psicoterápicas" ou a pulverização dos fazeres na psicologia contemporânea) e que proporcionou a fundação da psicologia científica; é possível posicionar-se contra o estabelecimento de um conceito de abordagem na Psicologia, já que para o filósofo, a psicologia funda-se na constituição de uma ciência eidética. Com o desenvolvimento da Fenomenologia Transcendental, Husserl (1924-1925/2001) chegou a um resultado surpreendente em relação à psicologia, podendo ser expresso assim: "(...) não existe uma psicologia pura como ciência positiva, uma psicologia que pretenda pesquisar universalmente, como fatos reais, os homens que vivem no mundo, do mesmo modo como as outras ciências positivas da natureza e do espírito" (p. 208). Ainda, é também importante advertir, como explica Husserl que os psicólogos não são filósofos (e nem devem ser), porque aqueles buscam a "teoria essencial pura do psíquico", a partir do homem natural, do indivíduo e do social-psíquico, enquanto que esses buscam uma filosofia transcendental, pautado na vida transcendental.

Está lançada – esperamos, resgatada, e ainda em aberto – a proposta de construção de uma efetiva Psicologia Fenomenológica com estas concepções que não se confundem, nem com "as abordagens da psicologia" nem com as "teorias das escolas terapêuticas", mas se constituem no solo fundamentador de uma nova ciência empírica puramente humana.

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Notas sobre os autores

Tommy Akira Goto. Professor Pós-graduação de Psicologia e da Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Doutor em Psicologia Clínica (PUC-Campinas), Mestre em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo), Membro do Grupo de Trabalho Fenomenologia na Associação Nacional de PósGraduação em Filosofia (ANPOF), Membro-colaborador do Circulo Latinoamericano de Fenomenologia (CLAFEN), Membro-assistente da Sociedad Iberoamericana de Estudios Heideggerianos (SIEH). Email: tommy@ufu.br

Adriano Furtado Holanda. Psicólogo, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília, Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas. Professor do Departamento de Psicologia (Graduação) e no Mestrado da Universidade Federal do Paraná. Coordenador do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno –www.labfenoufpr.com.br), Editor Chefe da Phenomenological Studies-Revista da Abordagem Gestáltica e Editor Associado da revista Interação em Psicologia (UFPR). Membro-colaborador do Círculo Latinoamericano de Fenomenologia (CLAFEN) e Coordenador do Grupo de Trabalho "Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos" na ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia). Email: aholanda@yahoo.com.

Ileno Izidio da Costa. Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília, Psicólogo clínico, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade, MA em Filosofia e Ética da Saúde Mental (Warwick/Reino Unido), Doutor em Psicologia Clínica e Cultura e Pós doutor (USP, UFRN, UCB/Lisboa). Orientador de Mestrado e Doutorado (PPG-PsiCC/UnB), Coordenador dos Grupos de Intervenção Precoce nas Psicoses (GIPSI), Personna (Estudos e Pesquisas sobre violência, Criminalidade, perversão e "psicopatia") e do Centro Regional para Enfrentamento às Drogas da UnB (CRR-UnB/Darcy Ribeiro/Senad). Membro do Grupo de Trabalho "Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos" na ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia). Email: ileno@unb.br.

 

 

A Influência de Brentano na Psicologia Fenomenológico-Existencial


Franz Brentano viveu de 1838 a 1917. O oposicionismo constituiu-se numa característica marcante de sua existência. Enquanto padre católico opôs-se ao princípio da infalibilidade do papa. Como filósofo discordou do empirismo, do racionalismo e do criticismo kantiano e, ainda, como psicólogo, rejeitou a tese associacionista acerca do conteúdo da consciência como algo permanentemente real, assim como as idéias de Wundt sobre a consciência como um epifenômeno, portanto reduzida ao fisiológico.

Brentano fundou a psicologia do ato, argumentando que o fenômeno psíquico se constitui como atividade e não como conteúdo. Defendeu a proposta de um inédito empírico nos estudos dos fenômenos psíquicos, porém não experimental. Afirmou ainda que a psicologia, da mesma forma que as ciências da natureza, parte da percepção e da experiência. A percepção interna vai constituir-se no seu principal recurso metodológico, indispensável aos estudos dos fenômenos psicológicos.

O ponto de partida na sistematização da psicologia de Brentano não foram os parâmetros enunciados pela ciência de seu tempo. Foi buscar seus fundamentos na filosofia dos escolásticos, em São Tomás de Aquino, em quem encontrou a teoria do intention. Esta desenvolveu-se a partir da intentionaliter, que caracteriza o conteúdo do pensamento que se fixa no espírito e este, por sua vez, estando também intentionaliter nas coisas. A noção de tempo enquanto temporalidade no lugar do temporal como abstração foi a influência extraída de Santo Agostinho.

A proposta de uma sistematização da psicologia do ponto de vista empírico, mesmo com uma fundamentação filosófica, não deixa de se estruturar como ciência. Propôs duas maneiras de se chegar aos fenômenos psíquicos: a psicologia descritiva ou psicognosia, visando alcançar os elementos últimos de que se constitui a totalidade da consciência, desta forma, chegar à marca comum de todas as singularidades: a intencionalidade; a segunda maneira propõe a averiguação das leis do fluir dos fenômenos psíquicos, denominando-a de psicologia genética.

A sistematização das idéias de Brentano vai exercer fortes influências em diferentes áreas de estudo, tais como a filosofia fenomenológica de Husserl, Max Sheler e Martin Heidegger; as investigações sobre ontologia e metafisica, sobre tudo ao que se referem as análises categoriais e os estudos pormenorizados sobre Aristóteles e, por fim, as investigações lógico-linguísticas.

A psicologia de Brentano vai partir de pressupostos diferentes dos da psicologia fisiológica e da comportamental. Na critica aos princípios da fisiologia na psicologia, retoma Aristóteles quando em Tratado da alma refere-se aos movimentos voluntários, afirmando não existir nenhum órgão intermediário entre o desejo e o membro que se movimenta. Neste aspecto considerou, então, que os fatos relativos aos órgãos pertencem a outro ramo de estudos e não à psicologia. Quanto ao comportamento, não concorda que seja determinado alheio à vontade e o que o determina é a intenção que o anima.

O fato de Brentano ter renunciado ao determinismo biológico ou psicológico não significa que ele tenha retornado à psicologia como estudo da alma, nem tampouco que retomou a uma filosofia especulativa, a fim de refletir acerca dos problemas humanos. Ao negar a possibilidade de se levar para o laboratório o psiquismo, propôs que este fenômeno fosse abordado de forma empírica, mas não experimental, e mais, que se abandonasse a introspecção, como método, já que esta implicava em uma observação interna, e aos fenômenos psicológicos cabia a percepção interna. Esta proposta fica claramente descrita em seu livro A psicologia do ponto de vista empírico, no seguinte trecho:

Tal como as ciências da natureza, a psicologia repousa sobre a percepção e a experiência. Mas seu recurso essencial é a percepção interna de nossos próprios fenômenos psíquicos, consistindo em uma representação, um julgamento, o que é prazer e dor, desejo e aversão, esperança e inquietação, coragem e desencorajamento, decisão e intenção voluntária, nunca o saberíamos se a percepção interna de nossos próprios fenômenos não nos lho ensinasse.

Brentano retomou a alma como objeto de estudo da psicologia, porém referiu-se a esta como um substrato substancial de representações, de sensações, de imagens, de lembranças, de esperanças. Denominou a todas estas vivências de fenômenos psíquicos, e como tais são intencionados. São atos que se referem a objetos exteriores e os objetos são imanentes aos atos mentais. A intenção, constituindo-se na propriedade essencial da vida consciente, vai indicar uma direção ou uma tensão da consciência para o objeto. Neste sentido, o espírito nos escolásticos passou a se denominar consciência na psicologia de Brentano.

A consciência na psicologia do ato vai diferir da consciência cartesiana, uma vez que esta se desdobra sobre si mesma e aquela tende sempre para algo no mundo. Em termos desta proposta teórica em psicologia, falar-se-á em consciência intencional. A intencionalidade como a principal característica da consciência vai modificar a noção de experiência como estrutura e como conteúdo. A consciência intencional constitui-se numa atividade, na qual os fatos físicos vão diferir dos fatos psicológicos, que vão ser denominados fenômenos.

Os fenômenos psíquicos constituem-se de experiências intencionais, ocorrem como representações, juízos e fenômenos emocionais e possuem as seguintes propriedades: de intencionalidade, de se constituírem como objetos de percepção interna: portanto evidentes, de existir efetivamente, de se mostrarem como unidade, de se apresentarem como atos de representação.

As idéias de Brentano vão dar início a uma psicologia que irá buscar as propriedades da consciência através da experiência interna. A partir da sistematização de sua teoria vão surgir a psicologia da gestalt, a teoria de Lewin, a psicologia fenomenológica, enfim toda a psicologia cuja ênfase recaia sobre a consciência com sua característica essencial: a intencional idade.


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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

INCONSCIENTE: Seu cérebro sabe qual será sua escolha antes mesmo que você perceba!

Segundo pesquisadores, 11 segundos é o tempo de antecedência no qual o padrão cerebral se decide antes de nós tomarmos consciência disso


Pesquisadores da Universidade de New South Wales apontam que nossas escolhas são feitas por atividades cerebrais pré-existentes.


Você faz escolhas sobre a sua vida diariamente: sair para tomar café da manhã na padaria ou ficar em casa, tomar um sorvete de chocolate ou um frozen iogurte, ir a pé ou de carro, e por aí vai. Mas nem sempre nossas escolhas estão sob o nosso próprio controle, determina um estudo publicado no periódico Scientific Reports.


Conduzida por cientistas da Universidade de New South Wales, na Austrália, a pesquisa mostra que há uma atividade cerebral inconsciente que determina cada uma das nossas escolhas antes mesmo que estejamos cientes delas. É possível, inclusive, prever as escolhas através de padrões do cérebro onze segundos antes de determinarmos nossa decisão. 


Em um experimento no Laboratório da Mente do Futuro, pertencente à Escola de Psicologia da UNSW, os pesquisadores pediram que os participantes respondessem perguntas nas quais eram escolhidos um entre dois padrões visuais de listras vermelhas e verdes – uma delas horizontal e a outra vertical.


A escolha era feita após os participantes imaginarem cada um dos padrões enquanto uma máquina de ressonância magnética funcional de imagens (fMRI) fazia o acompanhamento do processo. Cada pessoa também devia ranquear o quão forte sentia o padrão imaginado logo após o escolher. Assim, os pesquisadores puderam prever quais seriam as decisões de cada indivíduo, e também como as pessoas classificá-las. 



Discussões cerebrais


A nossa habilidade de fazer escolhas conscientes está localizada nas áreas de funcionamento executivo do cérebro, onde também estão as estruturas visuais, formações sob o córtex cerebral que são uma espécie de "berçário" dos pensamentos. “Enquanto a decisão sobre o que irá se pensar está sendo feita, as áreas executivas do cérebro escolhem o vestígio do pensamento, que é bem mais forte. Em outras palavras, se uma atividade cerebral pré-existente vai de encontro com alguma de suas escolhas, então o que ocorre é que o cérebro está mais sujeito a escolher aquela opção enquanto ela é reforçada por essa atividade pré-existente”, explica Joel Pearson, diretor do Laboratório da Mente do Futuro, em comunicado. 


Segundo ele, esse processo de atividade cerebral pré-existente que acaba orientando nossas escolhas e ajuda a explicar porque quando pensamos sobre a mesma coisa várias vezes a nossa tendência é ter ainda mais pensamentos sobre aquilo. É o que ele chama de “feedback em loop”, uma resposta em círculos. 


Como os pensamentos também surgem na mesma área onde está o córtex visual, área responsável por nos mandar para nosso organismo informações visuais do mundo, o estudo pode indicar a origem para alguns pensamentos visuais involuntários que o ser humano pode ter, além de abrir espaço para mais descobertas na área dos estudos de doenças mentais, especialmente aquelas que tem como característica pensamentos intrusos imagéticos, como o transtorno do estresse pós-traumático.


Os cientistas alertam para os riscos de assumir que todas as escolhas são feitas por uma atividade cerebral pré-existente: “Nossos resultados não podem garantir que todas as escolhas sejam consequência de imagens involuntárias, mas isso demonstra que esse mecanismo existe e pode servir de viés para nossas escolhas diárias”.



Afinal, temos livre-arbítrio ou não?

Suzana Herculano-Houzel 



Os estudos mostram: começamos a preparar movimentos até um segundo antes de sentirmos "vontade" de fazer aquele movimento; a atividade do cérebro prediz se escolheremos A ou B a seguir antes de "sabermos" o que escolher; uma decisão já pode ter sido feita pelo cérebro até 7 segundos antes de tomarmos ciência do que vamos decidir. Pergunta: então, livre-arbítrio não existe, certo?


Errado.


Errado, em ao menos três níveis.


Primeiro: ao contrário do que dizem os livros didáticos, o sistema nervoso NÃO serve para "detectar estímulos e organizar respostas a eles". Fosse assim e nós viveríamos presos ao presente, condenados a apenas reagir aos acontecimentos. Nessas condições, até andar seria um problema - pois, para nos mantermos em pé, é preciso antecipar a queda iminente e mover as pernas sempre na expectativa do desastre. Não somos, portanto, máquinas de reagir-a-estímulos: nós nos adiantamos a eles, e fazemos isso porque o cérebro cria modelos internos do mundo, prevê acontecimentos, e toma decisões com base em suas expectativas.


Segundo: não precisamos esperar que estímulos aconteçam. Somos capazes de iniciar comportamentos por conta própria, com base em nossas experiências anteriores e expectativas para o futuro. Só assim é possível entender como decidimos começar a estudar hoje para uma prova amanhã, ou levantar da cama com desejo de assistir a um filme específico, ler aquele livro que um dia você viu na estante, ou ir para a rua correr ao sol.


Terceiro: mesmo que tenhamos decidido fazer, comprar ou falar, é sempre possível voltar atrás, até o último instante - desde que você tome ciência do que está prestes a fazer. Seu cérebro prepara suas ações com segundos de antecedência, mas ao menos meio segundo antes de passar à ação é possível tomar ciência do que se está prestes a fazer - e isso é tempo suficiente para então decidir, se for o caso, NÃO fazer.


E, por último, a razão maior para dizer que livre-arbítrio, sim, existe - e que pode ser ao mesmo tempo a constatação mais difícil e também a mais simples de todas: no que tange às suas decisões, você É o seu cérebro. Se seu cérebro decidiu agora mas só tomará ciência disso daqui a 7 segundos, VOCÊ decidiu agora e só tomará ciência disso daqui a 7 segundos…


(Inspirado em ensaio do biólogo alemão Martin Heisenberg, na revista Nature de 4 de maio de 2009, em que ele sustenta que não é preciso termos consciência de nossas decisões para sermos considerados seres dotados de livre-arbítrio; o que importa é que nossas ações são auto-geradas)


A DESCOBERTA DO INCONSCIENTE E O PERCURSO HISTÓRICO DE SUA ELABORAÇÃO



Por Geselda Baratto


RESUMO

O texto aborda o conceito de inconsciente na obra freudiana, acompanhando o percurso trilhado por Freud na sua descoberta e na elaboração do seu conceito. No seu interior, busca-se demonstrar que a teoria do inconsciente é fruto de um longo e laborioso processo de construção. Com a finalidade de efetuar a investigação histórica da construção de seu conceito, partindo de sua origem até alcançar os desenvolvimentos subseqüentes, o texto tem início com as elaborações teóricas produzidas no período dos “Estudos sobre a Histeria” (1893-1895) e culmina com as elaborações efetuadas no interior da primeira e da segunda tópica freudiana. No decorrer do texto, é formulada a estreita relação do inconsciente com os conceitos de representação, recalque, desejo e resistência. O texto aborda ainda a articulação entre a teoria e o método da livre associação.



Descoberta do inconsciente e o percurso histórico de sua elaboração


No texto metapsicológico "O Inconsciente"; (1980/1915a), Freud defende a tese da existência de processos psíquicos inconscientes, demonstrando que a equivalência convencional entre psíquico e consciente é completamente inadequada e calcada numa superestima outorgada à consciência. Com a descoberta do inconsciente, ele opera uma verdadeira revolução, denominada por Lacan (1985) de "copernicana”; (p. 14). De fato, ao afirmar que o inconsciente pensa, Freud desaloja a consciência de seu lugar de centro, alterando assim o privilégio conferido aos pensamentos conscientes. O cerne de sua descoberta vem demonstrar que os processos de pensamentos inconscientes se produzem à margem da consciência e dela independem.

Freud coloca em cena a concepção de um sujeito dividido, não centrado em torno da consciência. O que ele descobre é a ausência de um eixo à volta do qual os processos psíquicos se ordenam. O sujeito é descentrado, isto é, carente de um centro ordenador. As elaborações efetuadas na primeira tópica colocam em cena a idéia de um sujeito caracterizado pela ruptura, pelo estiramento. A formulação do aparelho psíquico composto por três sistemas (o consciente, o pré-consciente e o inconsciente) remetem precisamente à noção de divisão e descentramento do sujeito.


A elaboração de que o inconsciente é um sistema constituído por representações associadas umas às outras de acordo com as leis do deslocamento e da condensação, de que ele se constitui na verdadeira instância onde os pensamentos se produzem, e de que esses pensamentos inconscientes podem encontrar um meio de expressão simbólica na palavra, formam, em síntese, o ápice das elaborações freudianas presentes na primeira tópica. Contudo, essas formulações têm um longo e laborioso percurso histórico de formulação. Acompanhar passo a passo os caminhos trilhados pelo próprio Freud na construção do conceito de inconsciente constitui o escopo fundamental deste texto. Em outras palavras, o objetivo é traçar o percurso histórico que conduziu Freud à descoberta fundamental da psicanálise – o inconsciente –, partindo do período dos "Estudos sobre a Histeria#&34; (Freud, 1980/1893-1895) até alcançar os seus desenvolvimentos subseqüentes.


Nos primórdios da psicanálise, entre os anos 1893 a 1899, o método utilizado era a hipnose. Por meio desse método, Freud objetivava promover a catarse através da abreação. No intuito de aliviar o paciente do sofrimento de seus sintomas, ele depreendia não pouco esforço no trabalho de procurar focalizar diretamente o momento em que eles se formavam (Freud, 1980/1914a, p. 193). O objetivo técnico consistia essencialmente em se descobrir a causa desencadeante do sintoma e o momento de sua ocorrência. Nesse mesmo período, Freud observou a enorme dificuldade enfrentada pelos pacientes no esforço depreendido em relacionar seus sintomas com algo relativo a si próprios, ou seja, constatou a presença de um poderoso obstáculo que se opunha à rememoração das idéias inconscientes, impedindo-as de se tornarem conscientes. Ele o denominou resistência. O acesso ao inconsciente exigia que as forças da resistência fossem vencidas e superadas, requerendo, por parte do analista, certo esforço para neutralizá-las. Efetivamente, o recurso à sugestão hipnótica visava a suspender, ainda que temporariamente, a resistência, permitindo que o sujeito, sob hipnose, colocasse em palavras certo número de lembranças esquecidas associadas ao sintoma. Esse método tem curto período de duração na prática clínica de Freud pela sua ineficácia. É digno de nota ele ter comprovado que o método da sugestão hipnótica mais ocultava do que revelava as resistências, além de, e isso não é de menor importância, os resultados obtidos por esse meio serem de curta duração. Sabemos hoje que os resultados terapêuticos alcançados por meio de métodos sugestivos não apenas fomentam as resistências, tornando o desejo inconsciente ainda mais inacessível, como também, de forma mais fundamental, conduzem a uma alienação imaginária do sujeito ao desejo de um outro, ao qual ele passa a se submeter.


No período histórico dos "Estudos”, o método da sugestão hipnótica consistia em tornar consciente o inconsciente, definido, nesse período, como um estado de segunda consciência no qual as lembranças não ab-reagidas se alojavam. Sublinhamos que a noção de inconsciente compreendido como estado de dupla consciência ou de consciência dividida sofre posteriormente severas críticas por parte do próprio Freud, o mesmo ocorrendo com o método da sugestão hipnótica. Devemos estar alertas para o fato de que o método da sugestão hipnótica utilizado na origem da história da psicanálise se apoiava nas elaborações teóricas produzidas naquele momento, e de que tornar consciente o inconsciente significava tornar manifesto e reconhecido pela consciência o fator traumático causal que se encontrava na base da produção dos sintomas histéricos.


Com efeito, a prática clínica de Freud comprovava que as emoções penosas despertadas pelos eventos traumáticos permaneciam estreitamente vinculadas à sua lembrança. A ab-reação, por meio da narrativa do paciente, tornava possível a liberação da "emoção estrangulada#&34;, possibilitando a sua descarga, isto é, a catarse: "cura pela palavra#&34;: assim denominou Ana O., a mais famosa das histéricas, o método psicoterapêutico da catarse. Guardadas as devidas proporções, tanto temporais quanto teóricas, podemos concluir que a catarse consistia em uma purificação alcançada através do ato de fala do sujeito.


Freud observava que os sintomas histéricos desapareciam quando ab-reagidos, isto é, desapareciam quando, por meio do recurso à palavra, ocorria a descarga das emoções penosas associadas aos acontecimentos traumáticos. Os eventos traumáticos deveriam receber expressão verbal por parte do sujeito, conduzindo à catarse.


Lacan (1991), no Seminário - Livro 7, assinala que, na antiga Grécia, o termo catarse traduzia habitualmente a idéia de purgação, apaziguamento e eliminação das tensões, relacionando-se de forma íntima à noção de uma purificação. No ponto de elaboração teórica em que nos encontramos atualmente, sabemos que a ab-reação consistia essencialmente em dar nome, em simbolizar pelo recurso à linguagem um real vivido não integrado ao sistema simbólico do sujeito.


No período do método da sugestão hipnótica, o objetivo da psicoterapia era o de percorrer os caminhos que haviam conduzido à formação dos sintomas. O trabalho da psicoterapia partia dos sintomas manifestos do sujeito e culminava com a localização das causas que o haviam determinado. A premissa de que a lembrança do trauma que não fora abreagido permanecia no aparelho psíquico e operava como um corpo estranho ao próprio sujeito, situando-se como fundamento que justificava a importância conferida à procura pela causa originária dos sintomas. Nessa época, Freud relata ter ficado muito impressionado com o fato de a lembrança do trauma permanecer, muito tempo após a sua ocorrência, eficaz, viva enquanto agente etiológico dos sintomas atuais do sujeito. Ele comprovou haver uma desproporção temporal entre o surgimento dos sintomas e o evento traumático desencadeante, constatando, por um lado, que o sintoma não surgia logo após a ocorrência do fator traumático, e, por outro, que ele permanecia presente no psíquico como se fosse uma força atual em constante atividade. De acordo com Freud, uma cena só se torna traumática quando transformada em lembrança, a partir de sua evocação por meio da repetição de uma cena análoga. O traumático requer, pois, dois tempos: o tempo do acontecimento e o a posteriori, que é o tempo da produção de sua significação, no qual pode ter lugar o sintoma. Isso conduz a duas conclusões: a primeira é que o valor do trauma não está no acontecimento em si, mas na associação estabelecida pelo sujeito; a segunda, derivada da primeira, é que o traumático é sempre singular. Nesse sentido, o caso Katharina (Freud, 1980/1893-1895a) é exemplar ao revelar que, "em todo caso de análise de histeria baseada em traumas sexuais, verificamos que as impressões do período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança atingem seu poder traumático num dado posterior como lembrança"; (p. 182).


A ênfase colocada sobre a lembrança e não sobre o acontecimento deu lugar, num período imediatamente subseqüente, ao conceito de fantasma, cuja formalização teórica se acha intimamente articulada à teoria do trauma.


No segundo momento de elaboração sobre o trauma, e que deve ser situado no marco dos avanços teóricos efetuados no interior mesmo da obra dos "Estudos", Freud conclui que o caráter traumático não é algo intrínseco a um acontecimento ou situação concreta vivenciada pelo sujeito. Nessa nova concepção, como vimos em parágrafos anteriores, o trauma emerge no a posteriori, no momento em que o sujeito produz uma interpretação da cena vivida. Freud foi sagaz em perceber que os eventos narrados por seus pacientes em análise não correspondiam efetiva e necessariamente a cenas reais vividas. Eles correspondiam a lembranças da cena, tal como ela havia sido interpretada posteriormente pelo sujeito. O acento se desloca do acontecimento para a interpretação e a produção de sentido. Em suma, Freud depreende o caráter fantasmático das lembranças narradas por seus pacientes, passando a reconhecer que o trauma tem ordem psíquica, e não real, como inicialmente se supunha. O fato de o centro do trauma ter sido deslocado do acontecimento para a lembrança leva Freud a concluir, em 1893, no texto "Comunicação Preliminar", que "os histéricos sofrem de reminiscências" (p. 48). Com efeito, na estrutura da neurose, a realidade psíquica é decisiva, constituindo-se no produto de uma laboriosa construção efetuada pelo sujeito no percurso de sua constituição psíquica. O que Freud designa como fantasma deve nos conduzir ao reconhecimento da realidade do desejo inconsciente.

Os primórdios de elaboração do que se tornará posteriormente a elaboração definitiva sobre o fantasma pode ser rastreado a partir do texto "Projeto para uma Psicologia Científica" (Freud, 1980/1895). No seu interior, Freud apresenta a origem do desejo como calcada na primeira experiência de satisfação. Essa experiência deixa como resíduo psíquico uma marca mnésica, tomada, doravante, como modelo de toda busca ulterior do sujeito, busca de uma percepção primeira que tem como modelo uma primeira mítica experiência de satisfação. A realização do desejo não seria outra coisa senão o restabelecimento da situação originária de satisfação de forma alucinatória. A realização alucinatória do desejo permite-nos depreender o caráter ficcional próprio do desejo.

Na coletânea de textos que compõem os "Estudos...", Freud utiliza-se da expressão fantasma para demonstrar a importância da atividade fantasmática na formação dos sintomas histéricos, sob a forma de devaneios, sonhos diurnos, romances que o sujeito constrói no estado de vigília.

Na "Interpretação de Sonhos"; (Freud, 1980/1900), Freud afirma que a estrutura do fantasma é comparável à estrutura do sonho, demonstrando de forma mais precisa a relação do fantasma com a estrutura do desejo inconsciente: o fantasma e o sonho constituem formas de realização de desejo. O deslocamento e a condensação são isolados como dois mecanismos fundamentais no trabalho de deformação do desejo, visando a torná-lo irreconhecível para o sujeito.

Na segunda tópica freudiana, a teoria do fantasma atinge sua formalização cabal no momento em que Freud demonstra, por um lado, o estatuto de objeto libidinal que o sujeito se faz para o isso, isto é, da dimensão absolutamente ficcional daquilo que o sujeito toma como sendo o seu EU, e, por outro, do estatuto ficcional da realidade humana, isto é, da montagem mítica que o sujeito constrói sobre sua história.

Ao longo da obra freudiana, a teoria do fantasma sofre inúmeras reviravoltas conceituais, até finalmente ser reconhecida como mola mestra em torno da qual se organiza o desejo singular de um sujeito.

Quanto ao trauma, vale destacar que, desde o princípio, ele foi relacionado à noção de um excesso de excitação que, ao tomar o valor de um impacto devido a sua intensidade, deixa uma forte impressão no aparelho psíquico, circunscrevendo-se no marco do que hoje pode ser compreendido como um real não assimilável, não integrado ao sistema simbólico do sujeito, e que lhe exige esforço na produção de um sentido.

Alguns pontos de elaboração efetuados por Freud no período de 1893 a 1899 são dignos de nota, merecendo destaque por se constituírem nos germens da futura teoria do inconsciente e do método da livre associação a ele intimamente relacionado.

Nas elaborações produzidas no período dos "Estudos...", Freud destacou como fato marcante que, nas neuroses traumáticas, não havia um único trauma principal isolado operando como agente etiológico dos sintomas, e sim, uma série de traumas parciais ligados entre si, que formavam um grupo de causas desencadeantes. Ele observou que a relação entre esses grupos causais e os sintomas obedecia a uma ordem de conexão lógica causal simbólica, e não cronológica ou factual. Um evento traumático que desperte uma emoção penosa de náusea moral pode perfeitamente se manifestar sob a forma de um sintoma histérico de vômito, por exemplo. Isso o levou a concluir que, entre o sintoma e os grupos causais traumáticos, se estabelece uma relação associativa produzida por laços de semelhança simbólica. Outro ponto por ele destacado, e de não menor importância, refere-se ao fato de o paciente apresentar uma perda de memória dessas relações simbólicas. A lembrança do evento traumático permanecia registrada no aparelho psíquico, mas, quanto à eficácia de sua ação na produção dos sintomas, o paciente nada recordava. De acordo com as elaborações avançadas nesse período, tornar algo consciente consistia precisamente em restabelecer as conexões causais simbólicas perdidas, fato que se torna ainda mais digno de nota ao lembrarmos que, em "A Psicoterapia da Histeria" (1980/1893- 1895b), o pressuposto teórico do estado de dupla consciência cede lugar à teoria da defesa presente na neurose, seguida imediatamente pela teoria do recalque. O recalque, compreendido como a operação por meio da qual as representações de desejo são inscritas no inconsciente, é um dos conceitos centrais da psicanálise, com um longo percurso histórico de elaboração.

Ao introduzir a teoria da defesa e, em conseqüência, a teoria do recalque, Freud não estava, inicialmente, recusando a teoria formulada por Breuer de estados hipnóides presentes na histeria, e sim, afirmando que eles eram adquiridos por meio do mecanismo psíquico da defesa.

Em uma leitura atenta do texto "Comunicação Preliminar", de 1893, no interior do qual se delineiam conceitos-chaves para a futura teoria do inconsciente e que é fruto do trabalho conjunto entre Freud e Breuer, pode-se concluir que a noção de estados hipnóides deve ser atribuída à Breuer, enquanto os conceitos originários de defesa, recalque e resistência devem ser atribuídos a Freud.

Com a denominação de estados hipnóides, Breuer enfatizava a existência, nos histéricos, de estados de divisão de consciência análogos aos produzidos nos estados de hipnose, isto é, uma clivagem da consciência que determinava a separação de grupos psíquicos de idéias. Nesse sentido, os estados hipnóides eram equivalentes aos estados artificialmente induzidos pela hipnose.

Na concepção de Breuer, a histeria hipnóide era determinada pelo fato de um grupo de idéias se tornar patogênico devido ao "estado psíquico especial" em que se encontrava o paciente no momento de um dado acontecimento. A dissociação psíquica de idéias não era, portanto, para ele, determinada pela ação psíquica posta em jogo pela defesa, como procurava sustentar Freud.

Com a introdução da teoria da defesa, têm início as divergências teóricas entre ele e Breuer sobre a etiologia da histeria. Freud, por um lado, inicialmente, não rejeitava inteiramente a teoria dos estados hipnóides; Breuer, por seu turno, aceitava sem muito entusiasmo a teoria da defesa. A divergência entre ambos atinge seu ponto de culminância quando Freud afirma serem precisamente as idéias carregadas de conteúdo sexual as que caem sob o golpe do recalcamento. Com a teoria da defesa, Freud desejava sustentar uma nova descoberta: o processo psíquico do recalque como fator etiológico primário desencadeante da histeria.

Com a teoria da "histeria de defesa", Freud desejava estabelecer uma nova tese, segundo a qual a "histeria é psiquicamente adquirida" (Freud, 1980/1893-1895c, p. 53). Para ele, a tendência para a dissociação de idéias se acha presente num grau rudimentar em toda a histeria, constituindo-se na manifestação básica dessa neurose (p. 53). Vale destacar que as elaborações produzidas inicialmente por Freud sobre o recalque, com toda a originalidade de sua formulação, conservam ao longo de sua obra todo o seu vigor.

Na época dos "Estudos...", no período compreendido entre os anos 1893 a 1895, no transcurso do qual Freud introduziu a teoria da defesa, o recalque foi definido como um processo defensivo por meio da qual o sujeito expulsava do campo da consciência as idéias que lhe pareciam incompatíveis com as representações que fazia de si mesmo, e foi situado como o mecanismo responsável pela dissociação psíquica. Pela ação do recalque, um grupo psíquico de idéias é separado, isto é, dissociado da cadeia de idéias conscientes, passando a desempenhar um papel fundamental na formação dos sintomas histéricos.

No texto a "Psicoterapia da Histeria" (Freud, 1980/1893-1895b), ao afirmar que "a histeria se origina de uma repressão de uma idéia incompatível" (p. 342), Freud define o recalque nos seguintes termos: "O ego do paciente foi abordado por uma idéia que se mostrou incompatível, que provocou, por parte do ego, uma força de repulsão com a finalidade de defender-se da idéia incompatível. Essa defesa, de fato, foi bem sucedida. A idéia em questão foi forçada para fora da consciência" (p.325). Nesse mesmo texto, ele conclui que a "aversão do ego", por um lado, impele a idéia patogênica para fora da associação da cadeia de idéias conscientes, e, por outro, opõe-se ao seu retorno, e que "o não saber do ‘paciente histérico' constitui, de fato, (um não querer saber) (p. 326). Ora, sabemos que as idéias expulsas da consciência não são de modo algum eliminadas. Elas são tão somente isoladas da consciência, sendo assim, fundado o campo do inconsciente.

Conforme avançava em suas elaborações teóricas, ia se tornando claro para Freud que o recalque era o operador responsável pela existência de grupos de idéias situadas à margem da cadeia associativa consciente, e de que, portanto, ele deveria ser situado como causa do que, em 1983, no texto "Comunição Preliminar", ele denominou divisão da consciência. Nesse mesmo texto, Freud faz uma observação de capital importância para a futura teoria do inconsciente ao afirmar que, na histeria, grupos de idéias que são isolados de ligação associativa com outras idéias podem, contudo, associar-se entre si, formando um complexo de idéias altamente organizadas (p. 56).

O inconsciente freudiano se define inteiramente pelo recalque, o que levou Freud a asseverar, em 1915, que: "A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise" (Freud, 1980/1914b, p. 26). Introduzido como causa da divisão psíquica e como processo por meio do qual as representações de desejo são expulsas do campo da consciência, vindo a inscrever-se no campo do inconsciente, a força de sua ação não torna uma representação inócua e inativa; ao contrário, garante a sua indestrutibilidade ao torná-la inacessível à consciência.

O abandono da teoria dos estados hipnóides a favor da teoria da defesa envolvida no processo do recalque dá lugar à nova designação clínica: a histeria da defesa, fato que, entre outros, fez com que Freud se mostrasse ainda mais céptico quanto aos alcances terapêuticos obtidos através do método da sugestão hipnótica. A experiência clínica obtida por ele através da prática com a sugestão hipnótica constituiu-se em um valioso instrumento, que lhe permitiu elaborar posteriormente o fenômeno da sugestão implicado na transferência.

A Conferência XXVIII, intitulada "Terapia Analítica" (Freud, 1980/1916-1917), é, em grande parte, dedicada a diferenciar o tratamento psicanalítico do tratamento por sugestão e a demonstrar que a transferência toca de perto a questão da sugestão. Nessa conferência, Freud afirma que o poder de influência que o analista possui sobre o analisando se fundamenta na transferência. Essa aliança estreita entre transferência e sugestão foi apreendida a partir de sua larga experiência clínica e, de forma mais particular, em sua prática com o método da sugestão hipnótica, permitindo-lhe dissecar a relação entre autoridade e sugestão. Foi justamente a inclinação do sujeito neurótico à sugestionabilidade, e que o predispõe à posição de "servidão mental", que conduziu Freud a assinalar os riscos implicados em todo tratamento que se paute no recurso às práticas sugestivas. É no contexto da íntima relação da transferência com a sugestão que ele centrou sua preocupação em torno do manejo da transferência, isto é, dos princípios éticos que norteiam a prática da psicanálise, demonstrando de maneira cabal que a transferência se apresenta sob uma dupla face, constituindo-se ao mesmo tempo como o mais poderoso instrumento e o maior obstáculo da análise. Grande parte de seu ensino foi dedicada a diferenciar o tratamento psicanalítico do tratamento por sugestão, demonstrando permanente preocupação com a problemática envolvida nas práticas sugestivas. Por conceber que a transferência, numa de suas facetas, é um terreno fecundo à sugestão, e vendo nisso uma fonte de perigo a ser evitado, ele preconizou que a psicanálise pode e deve operar com a transferência de um modo diverso daquele da crença, pela fé e pela sugestionabilidade, constando que, "com bastante freqüência, a transferência é capaz de remover os sintomas da doença por si mesma (mas só por pouco tempo) enquanto ela própria perdura. Nesse caso, o tratamento é realizado pela sugestão, e não pela psicanálise" (Freud, 1980/1913, p. 186). A problemática relativa à aliança entre transferência e sugestão deve ser concebida no terreno da prática analítica e, mais especificamente, no modo como, pela sua ética, o analista maneja o laço transferencial.

Conforme foi assinalado em parágrafos anteriores, a noção de fios de associações lógicas simbólicas, cuja relação fora perdida pelo paciente, foi ganhando vulto em relação à noção de eventos traumáticos isolados como causa dos sintomas. Freud chega à conclusão que os sintomas não são determinados por uma única lembrança ou uma única idéia patogênica isolada, e sim, por uma sucessão de "traumas parciais" entrelaçados entre si, formando uma verdadeira cadeia de idéias associadas umas com as outras, prenunciando, assim, o conceito de sobredeterminação. Isso o leva a formular o conceito de que o aparelho psíquico é constituído pelo registro de certo número de lembranças ou de "seqüência de pensamentos" organizados em torno de um núcleo. Em torno desse núcleo, encontrava-se um abundante material psíquico, organizado sob a forma de uma estrutura relacional estratificada de acordo com três formas de arranjos diversas, e pela qual Freud nos apresenta o aparelho psíquico como um perfeito arquivo de memória.

A primeira forma de organização do material psíquico descrita consiste numa disposição cronológica seqüencial do material mnêmico, uma forma de ordenamento temporal linear, que constituiu uma espécie de arquivo bem ordenado de lembranças dispostas segundo uma ordem cronológica invertida. As lembranças mais recentes eram as que surgiam em primeiro lugar, seguidas pelas lembranças mais remotas da infância, culminando com a lembrança traumática, em torno da qual as demais se encontravam ligadas por laços de contigüidade.

Em segundo lugar, havia uma forma de arranjo temático. Nessa forma de organização do material psíquico, os temas que apresentem algum traço de semelhança simbólica estão fadados a se associarem entre si, tendo como centro um tema principal ao qual se encontram todos ligados. O resultado final forma uma ordem de estratificação temática que, na medida de sua proximidade com o núcleo patógeno, determina um incremento das resistências.

Em terceiro lugar, a mais importante forma de organização do material psíquico constitui uma forma de arranjo que não obedece à cronologia e nem à semelhança temática. Essa terceira forma de organização ordenava-se de acordo com o que Freud denomina conteúdo do pensamento. Nela, a associação das idéias ocorre de acordo com certos fios lógicos que as mantêm ligadas entre si. Diversamente da ordem temática, não é concêntrica, mas tem a forma de "ziguezague", e obedece a uma ordem de associação que evoca a imagem de uma ramificação arbórea própria da lógica da associação livre.

A concepção de que a neurose é determinada por uma multiplicidade de fatores causais, não sendo jamais fruto de uma única causa isolada, leva Freud a concluir que existe uma determinação múltipla da causalidade psíquica, isto é, a elaborar o conceito de sobredeterminação. A sobredeterminação destaca o fato de que, para os sonhos e para os sintomas, bem como para as demais formações do inconsciente, concorre uma multiplicidade de fatores causais: uma "determinação múltipla" (Freud, 1980/1900, p. 327).

Data do período dos "Estudos..." a constatação de que a divisão psíquica é ocasionada pelo conflito posto em jogo entre o eu e um determinado grupo de idéias denominadas por Freud antitéticas. Pelo processo de defesa envolvido no recalque, o eu expulsa de seu campo as idéias irreconciliáveis, ainda que ao preço de sua própria divisão. Essas idéias são registradas no inconsciente, passando a integrar o seu sistema de memória e condenando o eu, doravante, a experimentar os seus retornos sucessivos como um corpo estranho incompatível com a sua consistência imaginária. O recalque não elimina a representação indesejável, mas simplesmente isola-a psiquicamente. As idéias de caráter aflitivo passam, desde então, a formar um grupo associativo separado da consciência, organizando-se de acordo com leis associativas diversas daquelas que regem o eu consciente, condenando-o a uma luta permanente contra o retorno do recalcado em derivados substitutos do inconsciente, sob a forma de uma tenaz resistência.

Nos anos iniciais da história do movimento psicanalítico, assistimos ao nascimento de princípios teóricos fundamentais da psicanálise. No seu transcurso se originaram conceitos que se constituíram em ponto de partida para as futuras linhas de desenvolvimento da teoria do inconsciente e do método da livre associação. Acompanhando o percurso trilhado pelo próprio Freud na construção do conceito de inconsciente, somos surpreendidos pelas inúmeras reviravoltas conceituais que culminaram na elaboração da primeira e da segunda tópica, no interior das quais ele nos apresenta em toda extensão de sua complexidade a concepção estrutural do aparelho psíquico. A relação intrínseca entre representação, inconsciente e recalque mantém ainda hoje toda a sua vigência, e encontra-se presente, em estado germinal, nos "Estudos". Pautados pelos desenvolvimentos teóricos posteriores, compreendemos o quanto a noção de representações de desejo deve à noção de lembranças traumáticas, em outras palavras, como vimos acima, ao caráter fantasmático dessas lembranças. Compreendemos também que a noção de núcleo traumático primário como causa originária dos sintomas responde à noção de inscrição da pulsão no psíquico, ou seja, à noção de um oco, de um vazio estrutural situado no coração do inconsciente, que opera como causa do desejo e da falta-aser do sujeito. Isso nos leva a concluir que é do desejo que o eu se defende, portanto, o que se apresenta como irreconciliável e traumático ao "eu oficial" (Safouan, 1991, p. 42), e do qual ele nada quer saber, é o vazio que causa o desejo, bem como a montagem fantasmática que dele deriva e que serve ao propósito de encobri-lo e ocultá-lo.

É verdade que, num período imediatamente anterior à elaboração da teoria da defesa e do recalque, as noções teóricas avançadas a propósito da divisão psíquica, como vimos anteriormente, eram colocadas em termos de cisão da consciência (uma "consciência normal" e uma "segunda consciência"), onde se alojavam as lembranças de caráter penoso. É verdade também que o objetivo era integrálas à cadeia de associações conscientes, daí o recurso à hipnose. De fato, isso conduz à idéia de que o inconsciente deveria ser integrado à dita consciência normal. A noção de que a consciência poderia dividir-se a si própria, determinando, como conseqüência, dois estados de consciência, uma ignorando a existência da outra, é uma concepção cara a algumas correntes filosóficas. Vimos como Freud não se deteve nela por muito tempo, lançando posteriormente severas críticas a tal postulado. A seu ver, se a aceitação da existência de idéias inconscientes acarreta dificuldades, a existência de uma consciência inconsciente é ainda mais objetável (Freud, 1980/1912b, p. 330).

Em 1892-1893, no texto "Um Caso de Cura pelo Hipnotismo", Freud abandona a teoria da divisão da consciência, propondo como modelo da divisão psíquica a noção de "vontade e contra-vontade". Nesse modelo, ele afirma que a contra-vontade se opõe à vontade consciente manifesta pelo sujeito, revelando-se mais soberana e determinante, a ponto de impedir a realização de sua vontade. O desconhecimento de sua existência impõe que se manifeste sob a forma de sintomas, cuja causa permanece ignorada pelo sujeito. Contravontade é a denominação dada ao desejo inconsciente em 1893, tal como o compreendemos hoje

Logo após propor o modelo da divisão psíquica em termos de vontade e contravontade, Freud o abandona em prol de um novo modelo: o da incompatibilidade do eu com uma cadeia de idéias de caráter penoso, ou seja, o modelo da dissociação psíquica posta em jogo entre o eu e um grupo de ideais a ele contrários e irreconciliáveis.

Vimos como imediatamente após essas elaborações conceituais, ou mesmo a elas paralelas, passa a ter lugar a noção de associações regidas por laços lógicos simbólicos. A noção de que o sujeito estava impedido de recordar os eventos penosos (traumáticos) de sua existência vai perdendo importância e cedendo lugar a uma nova elaboração: o que é perdido pela memória consciente não são os eventos, por mais penosos que eles possam se revelar; o que o sujeito perde pela ação do recalcamento são os fios de articulações lógicas que se estabelecem entre os sintomas manifestos e as cadeias de representações do desejo inconscientes. Em suma, o sujeito é incapaz de relacionar os atos de sua vida cotidiana com os pensamentos inconscientes que neles se produzem. No método da associação livre, o sujeito é convidado a abandonar as resistências e a deixar-se conduzir pelos fios lógicos que ligam as representações inconscientes entre si, convidado, portanto, a produzir pensamentos inconscientes e a esforçar-se para encontrar palavras que os expressem.

É na certeza da existência de pensamentos inconscientes e na aposta de que eles podem ser traduzidos em palavras que o método da livre associação se sustenta. Isso nos leva a retomar a questão problemática de tornar consciente o inconsciente, abordada anteriormente. Qual é o entendimento que podemos fazer dessa expressão freqüente na obra freudiana? Deveríamos ver nela uma recomendação técnica de tornar o saber insabido do inconsciente conhecido pela consciência? Seria o caso de supor como desejável e mesmo possível que o trabalho de análise culminasse na posse e no domínio, pela consciência, do que é inconsciente?

A questão de como o inconsciente se torna consciente não é de modo algum banal, no mínimo por duas razões. Por um lado, ela dá margem a equívocos e mal-entendidos com relação à prática da psicanálise; por outro, pela particular atenção que Freud lhe dedica no texto "O Inconsciente" (1915a). Nesse texto, ele levanta a questão de como se dá a transposição, isto é, a passagem das idéias do sistema inconsciente para o sistema consciente, questão introduzida precisamente em função da concepção tópica de que o aparelho psíquico é constituído por três sistemas.

Nesse texto, ele formula três hipóteses. A primeira, denominada tópica, formula a possibilidade de um duplo registro do material mnêmico inconsciente, sendo colocada nos seguintes termos: quando uma idéia ou representação passa do registro inconsciente para o registro consciente, com a mudança de localização tópica aí operada, a idéia passaria a existir em dois lugares diversos, quer dizer, a idéia continuaria a ter existência psíquica inconsciente, acrescida agora de uma existência paralela no sistema consciente? Com relação a essa hipótese, Freud levanta uma séria objeção. Quando se comunica ao paciente o conteúdo de uma idéia recalcada, pode-se afirmar que ela passou a ter existência em dois lugares psíquicos diversos. Contudo, o trabalho clínico comprova que esse procedimento não produz nenhuma alteração psíquica. O recalque não é removido e nem os seus efeitos são anulados.

Com relação ainda a essa primeira hipótese, Freud faz uma divertida analogia, dizendo que, se o conhecimento sobre o inconsciente fosse tão importante para o paciente, ouvir conferências ou ler livros seria suficiente para curá-lo. Observa, entretanto, que isso tem tanta influência sobre os sintomas quanto a distribuição de cardápios aos famintos (Freud, 1980/1910, p. 211).

Estamos devidamente advertidos do fato de que a revelação do inconsciente ao paciente resulta, no melhor dos casos, numa medida completamente inócua, no pior e no mais freqüente, no fortalecimento da barreira das resistências.

Tornar consciente o inconsciente calcado na premissa de promover um alargamento do campo consciência não faz parte dos pressupostos técnicos da psicanálise. Sabemos, pelo legado de ensinamentos deixados por Freud, que uma técnica assim conduzida não é outra coisa senão a manifestação de "uma ambição terapêutica" (Freud, 1980/1912a, p. 153) por parte do analista, e que ele não vacila em considerar o "...sentimento mais perigoso para um psicanalista" (p. 153). Ao proceder desse modo selvagem, o analista não estará fazendo nada mais do que inculcar no paciente as suas próprias concepções e desejos, fazendo um uso abusivo do laço transferencial ao colocá-lo a serviço da sugestão. Essa ocasião é oportuna para lembrarmos, por um lado, os riscos implicados em todo tratamento que se paute no recurso à sugestão e, por outro, a concepção do analista sobre o inconsciente, a direção do tratamento e da ética na qual sustenta o seu trabalho pauta a totalidade de seus atos analíticos.

A segunda hipótese, denominada funcional, aventa a possibilidade de que a passagem de uma idéia inconsciente para o consciente implicaria uma mudança pura e simples de seu estado. Essa hipótese é refutada, sendo considerada a mais grosseira das três.

A terceira hipótese formulada por Freud põe um ponto final na questão de como algo inconsciente se torna consciente. Ela consiste, primeiramente, numa recusa das duas hipóteses anteriores. A passagem do inconsciente para o consciente não se dá por meio de uma mudança de registro, tampouco por diferenças produzidas no estado funcional.

Na formulação da terceira hipótese, Freud introduz a distinção entre "representação de coisa" (Sachvorstellung) e "representação de palavra" (Wortvorstellung), esclarecendo que no inconsciente subsistem as representações de coisa sem as representações de palavra correspondentes. Como o inconsciente se torna consciente? Freud responde: "O que o recalque recusa às representações inconscientes é a sua tradução em palavras. Associar as representações inconscientes com as palavras abre a única via possível de acesso do inconsciente à consciência".

No Seminário - Livro 7, Lacan (1991) afirma que a oposição entre Wortvorstellung e Sachvorstellung introduzida por Freud demonstra de forma admirável o quanto ele compreendeu bem a distinção necessária entre a linguagem como função e a linguagem enquanto estrutura.

Concluímos, portanto, que tradução em palavras é o recurso disponível ao sujeito para reconhecer e elaborar algo sobre o seu desejo. É também por meio do ato de fala que o sujeito encontra recursos para tornar simbólico um real traumático não integrado ao sistema simbólico. É da certeza da existência de processos de pensamentos que se produzem de forma autônoma da consciência e do valor conferido por Freud à palavra que nasce tanto a teoria quanto o método da psicanálise.

 

 

Referências

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Freud, S. (1980). Artigos sobre a técnica. Sobre o início do tratamento. In S. Freud, Obras completas (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)

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Freud, S. (1980). Estudos sobre a histeria. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar. In S. Freud, Obras completas (Vol. 2). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893)

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Lacan, J. (1991). O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. In J. Lacan, O Seminário – Livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Safouan, M. (1991). A transferência e o desejo do analista. Campinas, SP: Papirus.


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