"A gente já sabe o que é preciso para viver bem. Falta pôr em prática" Pode um otimista ser apocalíptico?



Pode um otimista ser apocalíptico? 

Pois é assim que se define o neurocientista Sidarta Ribeiro. No seu livro mais recente, Sonho Manifesto (2022), o fundador e atual vice-diretor do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, traz “10 exercícios urgentes de otimismo apocalíptico”. Ao mesmo tempo em que reconhece as mazelas do mundo desigual e hipercompetitivo em que vivemos, Sidarta considera que o acúmulo de saberes já permite à humanidade construir um futuro que valha a pena ser vivido. A entrevista a seguir é fruto de dois encontros. O primeiro, presencial, em Caxias do Sul, numa noite de maio que precedeu uma palestra na cidade serrana. O segundo, em junho, foi realizado por videochamada.


Como o nosso cérebro lida com as transformações cada vez mais aceleradas pelas quais a sociedade tem passado?

Lida mal. As pessoas estão com uma privação crônica de sono, que se dá principalmente pela dependência de telas. Não se trata de demonizar as telas de modo algum, mas a gente tem de entender que, assim como qualquer hábito ou substância, a dose é relevante. A hiperdosagem de telas e a necessidade de novidades o tempo todo que elas proporcionam deixam as pessoas muito ansiosas. Hoje o tédio corre risco de extinção. E o tédio é criativo. Isso leva a outra questão que me preocupa, que é o achatamento do mundo imaginal, ou do imaginário. Você tem todas as imagens prontas, com uma linguagem audiovisual extremamente rica e incessante, que estimula o cérebro sem parar. Mas a que hora você para e desenvolve sua capacidade de imaginar, com pouco ou nenhum estímulo? Cada vez menos. Não faz isso na vigília, que está ocupada com estímulos, e não faz isso dormindo, porque o sono está sendo sistematicamente diminuído.


Em Sonho Manifesto, você defende a importância da soneca na escola para melhorar o aprendizado…

Totalmente. Uma parte do trabalho que meu laboratório fez aqui em Natal (RN) nos últimos 15 anos foi estudar o sono na escola. A gente viu que, quando há uma soneca na escola, mesmo depois de aulas importantes, a duração das memórias daquele aprendizado aumenta. O que é superimportante, porque, no nosso sistema educacional, o aprendizado dura pouco tempo. A pessoa faz a prova e depois esquece o que aprendeu. Se fizer um Enem com o pessoal de 40 ou 50 anos de idade, não vai passar ninguém. Isso porque o jeito como a gente aprendeu privilegia memórias de curto prazo de validade. A soneca pós-aprendizado fortalece muito as memórias, permitindo que elas durem. O último trabalho que a gente publicou sobre isso mostrou que, se você faz três semanas de intervenção numa escola, de meia hora por dia, de um treinamento específico para crianças de cinco ou seis anos que estão aprendendo a ler e a escrever, pedindo para elas discernirem letras em espelho, como o “p” e o “q”, ou o “b” e o “d” – que são erros muito frequentes no processo de alfabetização –, se elas não tiverem um tempo para a soneca depois desse aprendizado, não sobra nada. Elas voltam para o ponto onde estavam. Os estudos mostraram que a memória de longa duração é muito facilitada por uma soneca pós-aprendizado, e por isso a gente deve trazer o sono para dentro da escola em todos os níveis, até mesmo na pós-graduação.


Segue entrevista que Sidarta Ribeiro deu ao TimeLine da Rádio Gaúcha.


Que caminho você vislumbra para que a humanidade alcance, citando uma frase sua de Sonho Manifesto, “um futuro que valha a pena ser vivido”?


A gente precisa se voltar para práticas mais saudáveis e muito antigas. Concordo com a frase lapidar do (líder indígena) Ailton Krenak, que diz que o futuro é ancestral. Para viver melhor a gente precisa fazer coisas que nossos ancestrais faziam muito bem: dormir bem, sonhar bem, compartilhar os sonhos, se alimentar bem. Antes da agricultura as pessoas tinham uma saúde ótima, porque a comida, quando falta, é muito ruim, mas também é ruim quando ela vem em excesso. Havia uma alimentação mais saudável, o exercício físico era mais presente, e hoje a gente faz tudo isso mal. E, muitas vezes, mantendo relações tóxicas. Depois de fazer tudo errado, a pessoa quer se medicar. Não é uma escolha inteligente. O remédio puxa numa direção e provoca um efeito colateral, que leva à necessidade de outro remédio, e no final a pessoa não encontra equilíbrio. Muito do que a gente precisa fazer é se voltar a práticas ancestrais que foram desenvolvidas por povos originários e que vêm sendo validadas pela ciência. Como a alimentação fermentada, por exemplo, que é altamente saudável e desinflama o corpo. Se você come iogurte, kefir, chucrute, kimchi, kombucha… Há estudos mostrando que esses alimentos têm um efeito incrível para reduzir a inflamação do corpo, ajudando a viver uma vida saudável e longeva. Um dos argumentos de Sonho Manifesto, e que trago para o Fronteiras do Pensamento, é que a gente já sabe o que é preciso para viver bem no planeta. Falta pôr em prática.


O incentivo ao consumo local entra nessa ideia?

Se a gente se globalizar completamente, vai perder coisas importantes. Por outro lado, se tivermos só uma cultura local, a gente também perde. Todo mundo gosta de ver filmes estrangeiros, de comer comida de outros países, e é bom que seja assim. Mas é fundamental que haja um equilíbrio. Quando existe um produto feito no teu bairro e o mesmo produto feito na China, isso tem um custo. Se esse custo é razoável para você, é porque alguém lá na China está ganhando um salário muito ruim. A gente precisa olhar para isso. A mesma atenção é preciso ter com a energia. Veja o que foi feito com Belo Monte (usina hidrelétrica no Rio Xingu, no Pará), que detonou a Amazônia para produzir uma energia que, para ser levada aos grandes centros, é dissipada, e boa parte dela se perde nas linhas de transmissão. A produção local de energias renováveis, sejam eólicas ou solares, é uma solução. Se cada casa produzir sua própria energia, e ainda vender isso para o sistema como uma fonte de recursos, não precisa se construir uma megaobra que irá afetar todo um bioma. Ajudaremos o planeta se tomarmos mais soluções como essa, assim como a dos alimentos fermentados que são feitos em casa, como o iogurte natural e a kombucha.
Tanto a competição quanto a colaboração são comportamentos ancestrais, mas parece que a competição deixa de fazer sentido quando há recursos para todos.
O conflito é muito negativo, mas se torna inevitável quando não há recursos para todo mundo. Se você e eu estivermos isolados e só tivermos um pouco de comida, a gente pode optar por ser solidário e rachar, mas também pode entrar em conflito e um de nós querer comer toda a comida. E a história da humanidade é cheia de disputa. No momento em que há comida para todos, por que a gente vai brigar? Aí se torna não adaptativo haver o conflito.


Você afirmou em uma entrevista recente que a maconha medicinal é a única pauta progressista que avançou no Brasil desde o impeachment de Dilma Rousseff. Que outras pautas você considera mais urgente?

Especificamente no que diz respeito à neurociência, é o advento da cannabis medicinal e dos psicodélicos entrando pela porta da frente da medicina. Isso já ocorreu nos EUA, no Canadá, na Alemanha e está começando a ocorrer no Brasil. Outra pauta que não é só brasileira, mas, sim, global, é que as pessoas materialmente mais ricas têm de pagar mais impostos. Quem paga imposto no mundo inteiro é a classe média e os pobres. O pobre paga no consumo, a classe média paga no imposto de renda. As pessoas mais ricas materialmente contribuem muito pouco para a melhoria da sociedade, porque em quase todos os países elas pagam poucos impostos. A gente pode olhar o caso dos países da Escandinávia, onde as pessoas se acostumaram a pagar mais impostos, mas contam com um serviço público de altíssima qualidade. Quando essa pessoa materialmente mais rica pode sair de casa de metrô, sem precisar de carro blindado, ela se sente uma cidadã comum, parte da comunidade. Na desigualdade em que a gente vive, essas pessoas se sentem isoladas e não se sentem parecidas com as outras. Durante a pandemia os 10 homens mais ricos do mundo dobraram suas riquezas. Por que eles precisam de mais US$ 10 bilhões? Isso é sintoma de uma doença. Se eles tivessem tirado 1% do que têm no bolso e doado para a produção de vacinas, talvez a gente já estivesse fora da pandemia. Existe uma irracionalidade nessa adoração do dinheiro e nessa necessidade de acúmulo de capital, e a gente precisa falar disso com clareza. Porque essas pessoas não são gênios do mal que querem ferrar todo mundo. Elas também estão em sofrimento. Só estão acumulando dinheiro porque aprenderam que isso é o certo.


Em Sonho Manifesto, você alerta para o risco de “especiação” que corremos enquanto humanidade. Pode explicar melhor esse termo e esse risco?

Essa é uma questão que eu discuto diretamente no livro, que é o fato de que os materialmente mais ricos e os materialmente mais pobres não têm praticamente nenhuma troca genética. E também têm pouca troca cultural, ou memética. Assim, estão dadas as condições, seja do ponto de vista da cultura ou da genética, para um distanciamento que, do ponto de vista biológico, significa especiação. Se os materialmente mais ricos não vão interagir com os materialmente mais pobres para além da troca patrão-serviçais, isso vai gerar o aumento dessa distância. É algo que já foi previsto pela ficção científica. No livro A Máquina do Tempo, H.G. Wells descreve duas espécies, os Morlocks e os Elois, sendo os últimos escravos que servem de alimento para os primeiros. No futuro, se continuar do jeito que está indo, as pessoas que hoje estão morando na rua, desnutridas, privadas de sono, de segurança, de saúde, vão se distanciar cada vez mais daquelas que têm acesso à melhor medicina e vamos chegar à modificação corporal. A nossa ciborguização está aumentando. Se não tomarmos outro rumo, daqui a algum tempo, talvez 50 ou cem anos, pessoas vão viver muito mais de cem anos, vão poder substituir seus órgãos, ter partes do corpo robotizadas, em um projeto de imortalidade, e cada vez menos identificadas com aquelas que foram a base do seu acúmulo de capital, mas que serão descartadas. Os robôs já terão chegado para tomar todos os empregos, mas eles podem chegar, inclusive, a tomar conta do consumo. Se os robôs produzirem e consumirem, vai sobrar o que para os seres humanos?


Interessante você citar a ficção científica, pois há pouco falou sobre a preocupação com a nossa capacidade de imaginar…

A ficção científica mapeou muito bem o que pode nos acontecer de bom e de ruim. Tenho recomendado pra todo mundo a leitura do livro novo do Daniel Galera, O Deus das Avencas (2021). São três contos de ficção científica, um num futuro mais próximo, outro num distante e outro mais distante ainda. Se a gente conseguir se voltar para a ficção, para a literatura, para o cinema, e entender quais são as trajetórias possíveis, de certo modo a arte desempenhará um papel que os sonhos tiveram para os nossos ancestrais: mapear futuros possíveis.


Qual o papel dos sonhos na ciência do século 21?

Acho que é um papel muito importante. Eu diria que, mais do que na ciência, no destino do planeta. Os sonhos, durante o século 20, foram relegados a alguns guetos de investigação: na psicologia de profundidade; na psicanálise de Freud; na psicologia analítica de Jung; numa parte da psicologia experimental voltada ao estudo do sono REM. E nas ciências humanas, sem dúvida. Mas, nas ciências biomédicas, havia pouca respeitabilidade a essa área de pesquisa. Estudava-se o estado do sono em que o sonho ocorria, mas o sonho em si era tido como caótico, sem sentido e significado. Isso caiu. Nos últimos 20 anos, a neurociência e a psicologia cognitiva mostraram que os sonhos têm significado e que, inclusive, podem melhorar o desempenho das pessoas durante a vigília. Em outras palavras, se você sonhar com a realização de uma tarefa, você se torna mais capaz de realizar aquela tarefa… E isso conecta a neurociência do século 21 a conhecimentos ancestrais não científicos, aos xamãs, aos pajés, a pessoas que lá na Grécia Antiga, na Roma Antiga, no Egito, na Índia, há 5 mil anos, estavam sonhando para buscar adaptação, para tentar se encaixar melhor no mundo ou transformar o mundo para que ele fosse mais adequado às necessidades humanas. Hoje, em meio a essa grande crise ambiental e social, é preciso resgatar o sono e os sonhos. A falta de sono traz um monte de problemas. Provoca mau humor, problemas cognitivos que irão virar fator de risco para depressão e ansiedade, problemas cardiovasculares, diabetes e, lá na ponta, Alzheimer. É uma bola de neve. A falta de sono, depois, vai implicar na falta de sonho, que significa não entender os próprios desejos, medos, desafios. Vai implicar na falta de introspecção, falta de insight sobre a sua própria vida interior. Imagine, numa sociedade em que todo mundo está perdendo o sono, quais são as consequências? Desagregação social, sensação de solidão… Há mais gente morrendo de suicídio do que de homicídio no planeta. Isso é surreal. Estamos superando a brutalidade ou estamos caindo numa solidão infinita?


Sonho Manifesto é um livro otimista, pelo teu argumento de que, apesar de toda a desigualdade, os recursos e as condições para um futuro melhor já estão dados. Falta os bilionários se conscientizarem e ceder, segundo sua argumentação. Isso me faz pensar em Leminski: “O poder é o sexo dos velhos”...

Isso é interessante, pois sempre achei que o contrário de amor era ódio. Até aprender, com meu psicoterapeuta, que o contrário de amor é poder. Quando uma pessoa exerce muito poder sobre a outra, o amor se torna impossível de parte a parte. A gente vive numa sociedade em que as pessoas estão viciadas em poder e em dinheiro, e isso está sendo mediado no cérebro pelo mesmo neurotransmissor, que é a dopamina. Se a pessoa está dependente de álcool, de cocaína, de videogame ou de dinheiro, no cérebro isso é mais ou menos a mesma coisa. E qual é o problema? É que, ativando esse sistema interno de recompensas, a gente nunca chega à saciedade. A pessoa que tem muito dinheiro sempre quer mais. Assim como a que tem muito poder. Se você conversa com essas pessoas que têm muito dinheiro, elas estão em sofrimento. Porque queriam ter ainda mais dinheiro do que outra pessoa, porque perdem muito dinheiro rapidamente quando especulam, porque não acreditam nas amizades que têm, por causa das heranças que têm a receber… É uma neurose enorme. Mas existe outro sistema no cérebro, ligado ao neurotransmissor serotonina, que tem tudo a ver com a plenitude. É o que a gente produz quando está em relações saudáveis, quando está com pessoas que a gente ama, ouvindo música, dançando, fazendo amor. Tudo isso produz serotonina e outros neurotransmissores que levam à sensação de plenitude, de conforto e segurança, que são o contrário do que a dopamina pode provocar. Meu argumento é que, enquanto houve escassez no planeta, desde a pré-história até meados do século passado, não havia como ficar livre da ética da competição baseada em dopamina, mecanismos em nosso corpo nos levavam para esse lado mais egoísta. Porém, quando passou a haver abundância, a pressão de seleção sobre toda a espécie mudou. Se continuarmos a ter pessoas hipercompetitivas acumulando cada vez mais, a crise ambiental e social será completa. As pessoas que têm US$ 5 bilhões e querem ainda mais dinheiro estão doentes, e a gente precisa falar sobre isso abertamente. Elas precisam muito mais de amor, de ayahuasca, de ioga, de ayurveda, de alimentação orgânica sem ultraprocessados do que de mais dinheiro. Isso se conecta a ensinamentos que estão em Jesus Cristo, em Buda, em Krishna. Não digo que, se os bilionários mudarem de ideia, fica tudo bem. É mais complicado do que isso, porque há a questão da emergência popular, das pessoas dizerem “não aceitamos não ter o que comer e não ter onde dormir”. Mas não adianta emergir de baixo para cima se os de cima vão entrar em guerra com os de baixo. Tem de haver um acordo entre classes sociais para subir o piso e descer o teto. As pessoas que têm US$ 5 bilhões não precisam de mais dinheiro, mas, sim, de cuidar do único planeta que todos temos para morar.






Texto reproduzido de GZH, de autoria do jornalista Andrei Andrade, publicada no dia 28/07/22.


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