Texto de Marcelo Gleiser no Caderno Mais! da Folha de São Paulo. Baseado em uma versão mais completa, publicada em inglês no blog 13.7: Cosmos and Culture. Retirado do blog de Alam Kenjiminowa. As notas ao final são de Rafael Arrais (http://textosparareflexao.blogspot.com/).
Newton, Einstein e Deus
Talvez isso surpreenda muita gente, mas tanto Newton quanto Einstein, sem dúvida dois dos grandes gigantes da física, tinham uma relação bastante íntima com Deus.
É bem verdade que o que ambos chamavam de "Deus" não era compatível com a versão mais popular do Deus judaico-cristão [1].
Numa época em que existe tanta disputa sobre a compatibilidade da ciência com a religião, talvez seja uma boa ideia revisitar o pensamento desses dois grandes sábios.
No epílogo da edição de 1713 de sua obra prima "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural" (1686), Newton escreve que o seu Deus (cristão, claro) era o senhor do Cosmo e que deveria ser adorado por estar em toda a parte, por ser o "Governante Universal". Essa visão de Deus pode ser considerada panteísta, se entendermos por panteísmo a doutrina que identifica Deus com o Universo ou que identifica o Universo como sendo uma manifestação de Deus [2].
A visão que Einstein tinha de Deus, devidamente destituída da conotação cristã, ecoava de certa forma a de Newton. Einstein desprezava tudo o que dizia respeito à religião organizada, em particular a sua rígida hierarquia e ortodoxia [3].
Para ele, um Deus que se preocupava com o destino individual dos homens não fazia sentido. Sua visão era bem mais abstrata, baseada nos ensinamentos do filósofo Baruch Spinoza, que viveu no século 17. Numa carta dirigida a Eduard Büsching, de 25 de outubro de 1929, Einstein diz: "Nós, que seguimos Spinoza, vemos a manifestação de Deus na maravilhosa ordem de tudo o que existe e na sua alma, que se revela nos homens e animais" [4].
Em 1947, numa outra carta, Einstein escreveu: "Minha visão se aproxima da de Spinoza: admiração pela beleza do mundo e pela simplicidade lógica de sua ordem e harmonia, que podemos compreender".
Como essas posições podem ser usadas no debate sobre a compatibilidade da ciência com a religião?
De um lado, ateus radicais como Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Sam Harris argumentam que não pode haver uma compatibilidade, que a religião é uma ilusão que precisa ser erradicada, que o sobrenatural é uma falácia [5].
De outro, existem vários cientistas que são pessoas religiosas e até mesmo ortodoxas, e que não veem qualquer problema em compatibilizar seu trabalho com a sua fé. O fato de existirem posições tão antagônicas reflete, antes de mais nada, a riqueza do pensamento humano. Nisso, vejo um ponto de partida para uma possível conciliação [6].
É verdade que o ateísmo radical está respondendo a grupos fundamentalistas que tentam evangelizar instituições públicas. "Guerra é guerra e devemos usar as mesmas armas", ouvi de amigos. Mas o pior que um fundamentalista pode fazer é transformar você nele.
Einstein e Newton encontraram Deus na Natureza e viam a ciência como uma ponte entre a mente humana e a mente divina.
Para eles, adorar a Natureza, estudá-la cientificamente, era uma atitude religiosa. Acho difícil ir contra essa posição, seja você ateu ou religioso. Religiões nascem, morrem e se transformam com o passar do tempo [7]. Mas, enquanto existirmos como espécie, nossa íntima relação com o Cosmo permanecerá.
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[1] Como sempre digo por aqui, raramente algum livre-pensador terá a mesma visão de Deus que outro. Somente os que seguem dogmas, ou os que atacam ferozmente os dogmas, têm uma visão ou um conceito mais homogêneo do que quer que seja Deus.
[2] Muitos teístas criticam o panteísmo afirmando que Deus não pode ser a mesma coisa que sua obra, assim como uma pintura não é a mesma coisa que um artista. Porém, se a pintura é a manifestação do artista, o universo pode ser a manifestação de Deus. Um panteísta pode achar que absolutamente toda a natureza é sagrada, portanto, mas não quer dizer que afirme que Deus é limitado ao universo. Até mesmo porque do nada, nada se faz, e daí se tira - pela lógica - que Deus é "algo mais do que o tudo".
[3] Por "religião organizada e/ou ortodoxia", leia-se Igreja (ekklesia). A religiosidade, ou Religião (religare), é muito mais do que isso.
[4] O belíssimo conceito que Espinosa (eu prefiro usar seu nome latino) fazia de Deus é resumido no primeiro capítulo de sua "Ética". Mas talvez possa ser resumido ainda mais na frase "uma substância não pode criar a si mesma". O Deus de Espinosa é tão somente - pela lógica - a Primeira Substância, da qual tudo o mais se irradiou.
[5] Vale lembrar que inúmeras doutrinas religiosas concordam que o sobrenatural não existe. Complexo, entretanto, é afirmar que já sabemos tudo sobre o natural - obviamente ainda nos falta muito a desvendar.
[6] Eu certamente não concordo com muitas crenças ou descrenças de Gleiser, mas isso não me impede de admirá-lo por sua inteligência e bom senso, além é claro do trabalho exemplar na divulgação científica. Muitas vezes a discussão sobre a existência de Deus é absolutamente inútil, é quando um "deus-barreira" serve apenas para se interpor entre o entendimento dos seres. Busquemos então o ponto de encontro, e não um debate infindável sobre a discórdia.
[7] As Igrejas (ekklesia) são fundadas e esquecidas, é verdade. A Religião (religare), porém, é sempre um mesmo caminho. Caminho talvez infinito, mas que é trilhado por cada um, e não há sábio ou cientista que possa fazê-lo por você...
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