Por Ricardo de Mattos
no Digestivo Cultural
Acompanha a Humanidade, desde sua descida da árvore, a divergência entre imanência e transcendência. Por imanência podemos entender a concepção segundo a qual o ser humano limita-se ao que é no mundo, nada havendo que esperar além. Por transcendência entende-se a concepção de algo que não apenas sobrevive à passagem do Homem pelo mundo, mas também caracteriza-o como tal.
A reflexão descuidada pode apressar-se em criar os binômios imanência-materialismo e transcendência-espiritualismo. Na antiguidade grega pode-se encontrar o exemplo de imanência não materialista, quando acreditava-se que tudo ― material e imaterial ― vinculava-se a este mundo. Assim, tínhamos os deuses ocupando o Monte Olimpo e as almas dos mortos encaminhadas às profundezas do reino de Hades. Devassado o orbe em seu interior e investigado o céu por sondas espaciais que vão cada vez mais longe e transmitem-nos imagens impressionantes, desvaneceu-se a construção helênica ― e posteriormente dantesca ― do lugar fixo e "pronto".
No correr dos séculos formaram-se alianças que por um lado tiveram seu proveito, mas por outro pecaram pelo reducionismo. O imanentismo colocou-se sob a proteção da Ciência e fez do materialismo o seu porta-voz. Já a transcendência foi entregue aos cuidados da Religião, o que em alguns casos significou dar um jarro de cristal para um macaco carregar. Em decorrência, o Homem parece ter perdido a capacidade de enxergar o Universo como expressão do Absoluto.
Quem vincula imanentismo, Ciência e materialismo apresenta seus argumentos como si houvesse uma ligação necessária entre essas concepções. Conforme socorre-nos mais uma vez o Dicionário Oxford de Filosofia, organizado por Simon Blackburn, o materialismo é, antes de qualquer coisa, o nome comum de algumas escolas de pensamento. Estas escolas vão desde o atomismo grego de Demócrito e de Leucipo até o materialismo dialético e o histórico, passando por Hobbes e pelos excessos de La Mettrie. Apresentar a Ciência como materialista, portanto, é uma falácia de definição.
À Ciência, portanto, seria vedado investigar fenômenos que o senso comum colocou ao resguardo da Fé? Embora a divulgação seja precária, limitada ou mesmo inexistente, não é o que pensam alguns cientistas e pensadores atuais. Entre eles destacamos Mario Beauregard, neurocientista canadense, professor associado de pesquisa da Universidade de Montreal, indicado como "pioneiro em neurobiologia da experiência mística". Seu livro O cérebro espiritual ― Uma explicação neurocientífica para a existência da alma (Best Seller, 2010, 448 págs.) foi traduzido para o português e publicado no Brasil sem a mesma repercussão que tiveram Richard Dawkins ou Daniel Dennett.
Beauregard foi um dos palestrantes do I Simpósio Internacional "Explorando as Fronteiras da Relação Mente-Cérebro", ocorrido na cidade de São Paulo, entre os dias 24 e 26 de setembro deste ano. Si há uma corrente científica preponderante e favorável ao materialismo dos estados centrais, isto é, defensora de que os acontecimentos mentais teriam origem exclusivamente no cérebro e no sistema nervoso central, a contracorrente ganha forças diariamente. Importante salientar que a reação não se dá com argumentos de ordem filosófica ou religiosa, mas dentro exclusivamente do campo científico.
O fundamento filosófico do Simpósio foi o dualismo cartesiano, que distingue entre cérebro material e mente imaterial, esta atuando sobre aquele. Aos que cultivam o gosto pelo encadeamento histórico do pensamento humano, citamos o valioso livro Deus na natureza, do astrônomo francês Camille Flammarion, cuja epígrafe é justamente mens agitat molem ― a mente agita a matéria. Astrônomo por formação, Flammarion enveredou-se pelo aprofundamento da abordagem científica do espírito, situando-o na Natureza.
O cérebro espiritual tem a coautoria da jornalista canadense Denyse O'Leary, versada em questões de fé e ciência, que conferiu ao livro científico a fluência e o interesse de uma reportagem. Tais qualidades foram mantidas por Alda Porto e Fernanda Campos, tradutora e revisora técnica, respectivamente. O leigo pode acompanhá-lo com facilidade e o especialista encontrará nos diversos quadros intratextuais os fundamentos neurobiológicos e anatômicos de Beauregard.
Camille Flammarion
Beauregard realiza experiências em torno das "experiências místicas e/ou espirituais religiosas" (EMER). Inicialmente não as distingue, mas depois o faz de forma sucinta. Experiências religiosas são as que surgem "no segmento de uma tradição religiosa". Vivencia uma experiência espiritual quem acredita ter contatado com o divino, com algo além ou acima de si, o que não inclui todo e qualquer calafrio metafísico. Já no misticismo encontra-se a tentativa de alcançar realidades cósmicas através de estados alterados de consciência como a prece e a meditação profunda, com exclusão de drogas e qualquer substância que possa ser usada com fins alucinógenos.
O livro, portanto, não tem a pretensão de provar a existência de Deus, mas sim que pessoas místicas entraram em contato com forças externas a si mesmas, forças que não seriam percebidas caso a mente fosse um produto cerebral. Beauregard iniciou suas pesquisas almejando investigar a atividade dos neurônios durante a EMER. Quando ele afirma querer descobrir quais poderiam ser os correlatos neurais da experiência, ele demonstra trabalhar com possibilidades, com hipóteses, que são o ponto de partida e a base de trabalho da Ciência. O cientista trabalha com hipóteses, e suas pesquisas e experimentos podem levá-lo a confirmá-las ou negá-las. Difere de fazer uma afirmação e dedicar-se a provar sua certeza.
A abordagem espiritualista exclui o dever de estudar o cérebro? Não, e este ponto é especialmente lembrado pelo neurocientista. Mesmo as explicações materialistas para a religião e a espiritualidade não devem ser a priori desprezadas, como são revistas diante das novas descobertas. O bom pianista conhece os gênios e gêneros musicais, suas obras, o teclado, o dedilhado, a madeira da estrutura e o material das cordas internas do piano, a afinação e os melhores centros de fabricação. A abordagem espiritualista, por assim dizer, fornece respostas muito mais completas e explicações não forçadas.
Dizer que determinada região do cérebro é ativada durante uma EMER é algo substancialmente diverso de dizer que a mesma região é a responsável exclusiva do fenômeno. Realmente, depois de ter um cérebro humano entre as mãos, fica difícil aceitar que somente aquele amontoado orgânico é o único autor da Bíblia, do Corão, do Taj Mahal, da Capela Sistina e da Nona Sinfonia (de Beethoven). Certa parcela de força dos materialistas é extraída da ignorância e da falta de vivência de seus seguidores.
Seria temeroso afirmar que o materialismo vinculado ao proceder científico está em seus estertores. Argumentação e atitudes apelativas, porém, já se impõem. Citemos dois exemplos, ambos constantes do livro. No frenesi de comprovar que o ser humano é um animal como outro qualquer, sem direito a pretender-se de forma alguma superior ao mundo natural, Beauregard menciona as tentativas de cruzamento entre homem em chimpanzé, visando obter o híbrido "humanzé". Não fossem dois cromossomos a mais a favor do chimpanzé, tal cruzamento já teria sido obtido. "Os sonhos da Razão produzem monstros", antecipou-se Goya.
O outro exemplo é o "capacete de Deus", elaborado pelo neurocientista norte-americano Michael Persinger. Seu intuito é dar descargas eletromagnéticas suaves na região do lobo temporal ― perto das costeletas ― e com isso produzir experiências espirituais e provar sua origem cerebral. Testado o capacete em Dawkins, não funcionou. A cada falha, Persinger culpava o voluntário da ocasião. Apesar dos insucessos, o capacete começou a ser fabricado para venda. Caso ainda possa-se falar em Ciência diante de ocorrências deste nível, e caso estes eventos ganhassem as telas do cinema, seria lamentável não poder contar mais com Vincent Price no papel de certos "cientistas".
no Digestivo Cultural
"O cérebro, contudo, não é a mente; é um órgão apropriado para ligar a mente ao resto do universo." (Mario Beauregard)
Acompanha a Humanidade, desde sua descida da árvore, a divergência entre imanência e transcendência. Por imanência podemos entender a concepção segundo a qual o ser humano limita-se ao que é no mundo, nada havendo que esperar além. Por transcendência entende-se a concepção de algo que não apenas sobrevive à passagem do Homem pelo mundo, mas também caracteriza-o como tal.
A reflexão descuidada pode apressar-se em criar os binômios imanência-materialismo e transcendência-espiritualismo. Na antiguidade grega pode-se encontrar o exemplo de imanência não materialista, quando acreditava-se que tudo ― material e imaterial ― vinculava-se a este mundo. Assim, tínhamos os deuses ocupando o Monte Olimpo e as almas dos mortos encaminhadas às profundezas do reino de Hades. Devassado o orbe em seu interior e investigado o céu por sondas espaciais que vão cada vez mais longe e transmitem-nos imagens impressionantes, desvaneceu-se a construção helênica ― e posteriormente dantesca ― do lugar fixo e "pronto".
No correr dos séculos formaram-se alianças que por um lado tiveram seu proveito, mas por outro pecaram pelo reducionismo. O imanentismo colocou-se sob a proteção da Ciência e fez do materialismo o seu porta-voz. Já a transcendência foi entregue aos cuidados da Religião, o que em alguns casos significou dar um jarro de cristal para um macaco carregar. Em decorrência, o Homem parece ter perdido a capacidade de enxergar o Universo como expressão do Absoluto.
Além disso, uma sequência de erros profundos primeiro estabeleceu a dicotomia entre natural e sobrenatural, e em seguida elevou este à categoria de transcendental. Ao natural pertence o mundo físico, sujeito a leis fixas e apreensíveis pelo ser humano. Ao sobrenatural, concerne um local onde prevalece a anomia, a arbitrariedade. Embora Allan Kardec tenha observado que as Leis da Natureza são exatamente as mesmas quer no mundo visível, quer no mundo invisível ― isto é, na parcela do mundo imperceptível aos sentidos humanos atuais ― a dicção de Thomas Huxley em seu ensaio O natural e o sobrenatural ganhou a preferência da comunidade científica.
Quem vincula imanentismo, Ciência e materialismo apresenta seus argumentos como si houvesse uma ligação necessária entre essas concepções. Conforme socorre-nos mais uma vez o Dicionário Oxford de Filosofia, organizado por Simon Blackburn, o materialismo é, antes de qualquer coisa, o nome comum de algumas escolas de pensamento. Estas escolas vão desde o atomismo grego de Demócrito e de Leucipo até o materialismo dialético e o histórico, passando por Hobbes e pelos excessos de La Mettrie. Apresentar a Ciência como materialista, portanto, é uma falácia de definição.
À Ciência, portanto, seria vedado investigar fenômenos que o senso comum colocou ao resguardo da Fé? Embora a divulgação seja precária, limitada ou mesmo inexistente, não é o que pensam alguns cientistas e pensadores atuais. Entre eles destacamos Mario Beauregard, neurocientista canadense, professor associado de pesquisa da Universidade de Montreal, indicado como "pioneiro em neurobiologia da experiência mística". Seu livro O cérebro espiritual ― Uma explicação neurocientífica para a existência da alma (Best Seller, 2010, 448 págs.) foi traduzido para o português e publicado no Brasil sem a mesma repercussão que tiveram Richard Dawkins ou Daniel Dennett.
Beauregard foi um dos palestrantes do I Simpósio Internacional "Explorando as Fronteiras da Relação Mente-Cérebro", ocorrido na cidade de São Paulo, entre os dias 24 e 26 de setembro deste ano. Si há uma corrente científica preponderante e favorável ao materialismo dos estados centrais, isto é, defensora de que os acontecimentos mentais teriam origem exclusivamente no cérebro e no sistema nervoso central, a contracorrente ganha forças diariamente. Importante salientar que a reação não se dá com argumentos de ordem filosófica ou religiosa, mas dentro exclusivamente do campo científico.
O fundamento filosófico do Simpósio foi o dualismo cartesiano, que distingue entre cérebro material e mente imaterial, esta atuando sobre aquele. Aos que cultivam o gosto pelo encadeamento histórico do pensamento humano, citamos o valioso livro Deus na natureza, do astrônomo francês Camille Flammarion, cuja epígrafe é justamente mens agitat molem ― a mente agita a matéria. Astrônomo por formação, Flammarion enveredou-se pelo aprofundamento da abordagem científica do espírito, situando-o na Natureza.
O cérebro espiritual tem a coautoria da jornalista canadense Denyse O'Leary, versada em questões de fé e ciência, que conferiu ao livro científico a fluência e o interesse de uma reportagem. Tais qualidades foram mantidas por Alda Porto e Fernanda Campos, tradutora e revisora técnica, respectivamente. O leigo pode acompanhá-lo com facilidade e o especialista encontrará nos diversos quadros intratextuais os fundamentos neurobiológicos e anatômicos de Beauregard.
Camille Flammarion
Beauregard realiza experiências em torno das "experiências místicas e/ou espirituais religiosas" (EMER). Inicialmente não as distingue, mas depois o faz de forma sucinta. Experiências religiosas são as que surgem "no segmento de uma tradição religiosa". Vivencia uma experiência espiritual quem acredita ter contatado com o divino, com algo além ou acima de si, o que não inclui todo e qualquer calafrio metafísico. Já no misticismo encontra-se a tentativa de alcançar realidades cósmicas através de estados alterados de consciência como a prece e a meditação profunda, com exclusão de drogas e qualquer substância que possa ser usada com fins alucinógenos.
O livro, portanto, não tem a pretensão de provar a existência de Deus, mas sim que pessoas místicas entraram em contato com forças externas a si mesmas, forças que não seriam percebidas caso a mente fosse um produto cerebral. Beauregard iniciou suas pesquisas almejando investigar a atividade dos neurônios durante a EMER. Quando ele afirma querer descobrir quais poderiam ser os correlatos neurais da experiência, ele demonstra trabalhar com possibilidades, com hipóteses, que são o ponto de partida e a base de trabalho da Ciência. O cientista trabalha com hipóteses, e suas pesquisas e experimentos podem levá-lo a confirmá-las ou negá-las. Difere de fazer uma afirmação e dedicar-se a provar sua certeza.
A abordagem espiritualista exclui o dever de estudar o cérebro? Não, e este ponto é especialmente lembrado pelo neurocientista. Mesmo as explicações materialistas para a religião e a espiritualidade não devem ser a priori desprezadas, como são revistas diante das novas descobertas. O bom pianista conhece os gênios e gêneros musicais, suas obras, o teclado, o dedilhado, a madeira da estrutura e o material das cordas internas do piano, a afinação e os melhores centros de fabricação. A abordagem espiritualista, por assim dizer, fornece respostas muito mais completas e explicações não forçadas.
Dizer que determinada região do cérebro é ativada durante uma EMER é algo substancialmente diverso de dizer que a mesma região é a responsável exclusiva do fenômeno. Realmente, depois de ter um cérebro humano entre as mãos, fica difícil aceitar que somente aquele amontoado orgânico é o único autor da Bíblia, do Corão, do Taj Mahal, da Capela Sistina e da Nona Sinfonia (de Beethoven). Certa parcela de força dos materialistas é extraída da ignorância e da falta de vivência de seus seguidores.
Seria temeroso afirmar que o materialismo vinculado ao proceder científico está em seus estertores. Argumentação e atitudes apelativas, porém, já se impõem. Citemos dois exemplos, ambos constantes do livro. No frenesi de comprovar que o ser humano é um animal como outro qualquer, sem direito a pretender-se de forma alguma superior ao mundo natural, Beauregard menciona as tentativas de cruzamento entre homem em chimpanzé, visando obter o híbrido "humanzé". Não fossem dois cromossomos a mais a favor do chimpanzé, tal cruzamento já teria sido obtido. "Os sonhos da Razão produzem monstros", antecipou-se Goya.
O outro exemplo é o "capacete de Deus", elaborado pelo neurocientista norte-americano Michael Persinger. Seu intuito é dar descargas eletromagnéticas suaves na região do lobo temporal ― perto das costeletas ― e com isso produzir experiências espirituais e provar sua origem cerebral. Testado o capacete em Dawkins, não funcionou. A cada falha, Persinger culpava o voluntário da ocasião. Apesar dos insucessos, o capacete começou a ser fabricado para venda. Caso ainda possa-se falar em Ciência diante de ocorrências deste nível, e caso estes eventos ganhassem as telas do cinema, seria lamentável não poder contar mais com Vincent Price no papel de certos "cientistas".
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