“Os Retiros Zen Budistas são uma oportunidade para mergulhar na prática de forma intensiva. A programação diária consiste em zazen, palestras do Darma e atividades em grupo. A palavra japonesa para retiro é ‘sesshin’, significa ‘unificar a mente’. Muitos praticantes, mesmo reconhecendo o desafio que um sesshin possa representar em termos físicos, valorizam os sesshins como ‘férias da alma’.” ~ Monja Isshin.
Da quarta-feira, dia 1º de dezembro a terça-feira, dia 7 de dezembro de 2010 foi realizado o Sesshin (retiro) urbano sob orientação da minha querida professora no Dharma, Monja Isshin das Sangas irmãs Águas da Compaixão (Ji Sui Zendô), Sanga Aikikai e Energia Harmoniosa. Este Sesshin se deu no apartamento de uma praticante voluntária e era "realizado" durante o dia e parte da noite (sou imensamente grato a querida Ieda "Seishin" que discretamente recebeu este Kōhai e me orientou nas rotinas da prática em sua casa, como boa Senpai que é, saudações ao “imperador Ming”). No fim do período de prática eu ia para casa cuidar da família e dormir, mas, cedo levantava, organizava as coisas com a “patroa” e seguia para o retiro. Foi preciso encaixar umas folgas para me afastar do hospital e tudo se acertou.
De "Imperador Ming" observando o seu império... |
Não é o primeiro retiro urbano que faço, mas é o primeiro nesta "sanga" e com a Sensei Isshin. Sabia que seria muito pouco freqüentado pois a maioria dos membros mais freqüentes e experientes da sanga estavam se preparando para o retiro da semana seguinte em Sampa no Rohatsu Sesshin do Templo Busshinji, com Saikawa Roshi. Mas nem por isto seria menos interessante. Seria uma experiência mais “íntima”, como já me dizia a Sensei.
Sempre achei que retiros eram eminentemente exercícios individuais realizados em conjunto. Você senta junto dos demais, caminha com os demais, come com os demais... Mas enfrenta a sua prática sozinho. Em silêncio. Em geral, era assim que eu via.
Mas as percepções mudam.
Imensamente grato a minha querida e firme sensei que nos presenteou com sua orientação firme e luminosa... Sempre apontando o caminho como um farol no alto da rocha, iniciou “nosso” sesshin. O primeiro dia foi tranqüilo e sereno. Ironicamente as horas do dia passaram rápido entre incensos, zazens, kihins, chás intercalados. Zazens entre 30 e 45 minutos seguidos de curtas caminhadas em meditação em um mesmo espaço faz com que a gente chegue a ter uma certa intimidade com este espaço. Notamos as nuances da parede a nossa frente... As diferenças sutis da luz no passar das horas... Os cheiros... Os sons...
Os sons são uma ópera cacofonia a parte. Os pássaros que cantam só a manhã... Os que cantam só a tarde... Os cães discutindo a vida a distância... As pessoas conversando ao telefone... Os rádios... cada um a uma distância e em estações diferente... Os carros... Mais longe, os ônibus... Operários assoviando, batendo, raspando, “britando” em ritmos diferentes... Percebo que a vida toda estes sons estiveram de alguma forma ali... Presentes e camuflados... Aos poucos eles ficam confortavelmente para segundo plano. Presentes, mas não são mais distrações. De repente um som passa a ser mais presente, apesar de ser o mais sutil. O som é um som que vibra em ondas... Um som que finalmente é mais presente que tudo o mais.
O poderoso som do ar passando em meu nariz. Fico atento a isto por um tempo enquanto conto a respiração. Então junto a esta "percepção" e uma suave contagem, de traz de meus olhos, ouso alguém dizer:
"--Um!"
A “experiência” que tenho é esta: Enquanto o ar suavemente sai do meu corpo "desinflando" meu peito que se "senta" alinhado sobre meu diafragma... Não faço esforço para me equilibrar... Como uma pilha de pedras que adequadamente foram organizadas das menores sobre as maiores, assim esta meu copo. Meu quadril esta sentado sobre a almofada zafú e delicadamente deixa as pernas formar um triângulo equilibrado firme com a terra; sentado sobre meu quadril e apoiado na coluna segue meu abdômen relaxado; sentado sobre ele meu diafragma; sentado sobre ele meus pulmões, e a caixa de ressonância do tórax; brotando delicadamente dos meus ombros começam meus braços que terminam em um mudra atento, mas não tenso, sobre o colo; sentado sobre o eixo de meus ombros meu pescoço equilibrado e firme... Sentado em zazen sobre meu pescoço esta minha cabeça.
De olhos abertos, fitando a parede e atento a ressonante troca de ar... Nisto ouso o pulmão encher-se novamente, o diafragma reposicionar-se e quando seu limite natural é encontrado, assim como uma pedra que sobe ao seu máximo antes de voltar o ar sai suavemente do espaço elástico que preenchia... E ouso aquela estrondosa voz por traz de meus olhos denovo:
"-- Dois...".
De onde vem esta voz? É a mesma voz que eu ouso quando escolho as palavras para escrever agora. Mas esta voz não escolhe as palavras... Ela "narra" conforme lhe é pedido. Assim como a mão não escolhe o que deve tocar nem como, a voz da minha mente fica de prontidão para se manifestar para "dar" voz para algo que é "anterior" ao som da minha mente.
Anterior ao "Eu"?
Atento a parede, atento aos sons, atento a respiração, descubro que tem "algo" que esta atento... e que é algo que é anterior a minha fala.
Anterior ao significado da palavra.
Que diz ao som de minha fala mental o que ela deve dizer...
Se ter consciência é "saber" o que se esta pensando, percebo que existe uma instância "anterior" a este saber.
Que olha por cima de meus olhos e sente antes de "mim" o que eu sinto. Sentado diante da parede me percebo na caverna de Platão... Onde no fundo vejo a sombra de quem sou. Como olhar para de trás de meus olhos?
"-- Três!" ...
Com receio de ser "desmascarado" e visto meu corpo passa a defesa da privacidade deste "algo": "Dor".
O joelho se manifesta... Minha atenção é arrancada da parede e me traz para o joelho. Respiro e digo que esta dor é um aviso. Que estou ciente e grato pelo aviso. Avalio a validade da intensidade e urgência do recado. Esta tudo bem? Irrigação, fluxo sanguíneo, reação dérmica e capilares, músculos, juntas... Tudo ok. É só "desconforto". Nada demais.
Volto para o foco:
"-- Um"...
"--Dois"...
"--Três" ...
Um dia passa. E sou grato por viver isto.
No segundo dia.
O embate se repete. Mas algo mudou. Fica simplesmente simples "observar" os sons "passarem". As idéias e memórias "passarem". Contar é "natural" como a entrada e saída de ar. Sem esforço ou entrave.
Percebo o silêncio que surge ao intervalo da voz que conta na mente como quem passa a perceber a árvore pela sombra e pela luz que passa entre as folhas e ramos. Sem entender bem porquê, me emociono profundamente e "sinto" que "algo" cheio de muito carinho se sentiu "reconhecido". Neste “reconhecimento” mútuo uma emoção boa se torna física. Um calor sobe de meu peito e irradia uma onda de "conforto" com fluxos que acompanham a troca de ar. A parede continua firme a minha frente e tudo parece em ordem. Um encontro importante se dá. Nada de palavras pode explicar ou ser dito neste momento.
O sino toca e eu agradeço.
No caminho do almoço vejo que "tudo" esta transbordando de cor, luz e som... As pessoas estão mais bonitas e as "coisas" estão cheias de detalhes. O sabor da comida, o ar. Os detalhes são prazerosos.
Tenho vontade de rir. Respiro e fico atento a minha mente por traz do efeito.
Obrigado por dividir comigo este mundo. Seja você o que for. Penso em murmúrio.
Não sei se importa mas eu sou ateu. Não que eu não acredite na "espiritualidade". Só que todas as mitologias e divindades (mesmo o deus judeu/cristão/mussulmano) me parecem apenas uma forma de explicação imperfeita e inacabada. Me parecia, ate então, que a idéia de um "Deus" é mais uma forma de conforto psicológico que de fato. Neste dia eu vi que o mundo continua lindo e perfeito "apesar" das minhas lamentações e dele "não encaixar" no meu desejo ou conceito de "perfeito". Eu mesmo estava irradiando beleza para o mundo e o mundo me devolvia beleza... éramos (as pessoa, animais, árvores, pedras, carros...) parte de uma teia onde todos refletiam o que emanavam... Me senti profundamente "grato" pela oportunidade de estar ali. Participando da vida. Me percebi insubstituível mas ao mesmo tempo insignificante. Em confortável paradoxo. Se existe alguma forma de “Deus” este se manifesta nesta “completude” que é o presente. Esta bela teia que é a vida, toda se manifestando no presente em harmonia.
De volta ao zazen a parede me recebe também com um paradoxo: como uma peça que aguarda seu encaixe ela esperava minha sombra. Sento e conto.
"--Um."
"--Dois."
O ar tem temperaturas diferentes quando entra e quando sai, percebo. Os sons me visitam e seguem... Minha visão desfoca. Volto ao foco. Ali esta a parede. Sólida. Começo novamente.
"--Um."
"--Dois."
Sigo contando. Mas algo esta diferente. Deixo estar e observo, a respiração não é no fluxo confortável que eu mantinha antes... Esta acelerando... Não me assusto nem me apreço em diminuí-la. Observo ela acelerar. A parede perde a firmeza e deforma. No intervalo entre entrar e sair de ar a parede se desfaz e solidifica. Vejo"um forro" de teto de um lugar agressivamente branco. Sinto o gosto metálico de oxigênio hospitalar na boca. Minha boca esta seca e meu nariz coberto por um cateter que sopra e apita. Percebo que meus braços e pernas estão amarrados. Estou deitado olhando para o teto branco e claro demais fraco demais para me soltar das faixas que prendem meus braços junto ao corpo e me afogando em oxigênio. Ardências serpenteiam meus braços e crânio... Quero pedir socorro mas não sei falar... Quero chamar minha mãe mas não sei as palavras... Isto foi antes de eu aprender a falar. Então eu choro. Choro. Choro até perceber que desta vez eu controlo o ar que chega e sai. Choro até o ritmo voltar para meu controle. FOCO. Minha respiração volta ao suave fluxo. A parede ficou me esperando e me serve de apoio. Não sei quanto tempo passou.
O sino toca. Eu agradeço.
Divido com a Sensei minha experiência. Que só posso descrevê-la como uma cruel viagem no tempo para minha primeira infância, um momento de grave enfermidade em que estive a beira da morte e era pequeno demais para lembrar... Só tive relatos tardios quando grande. Contei que não podia descrever como uma "lembrança" pois vi e senti tudo fisicamente, não só psicologicamente: o tato dos lençóis duros de goma; o corpo contido; o gosto do oxigênio... Vivenciei aquilo realmente minutos antes. Eu "fui" para lá. Por um tempo eu "estive" novamente ali. Contei como eu voltei e como recuperei o foco pouco antes de ouvir o sino.
Disse-lhe ainda que inúmeras vezes fui perseguido pela sensação de que era contido contra minha vontade ainda hoje... que esta parte de mim estava viva esperando socorro.
Sensei me disse depois de uma pausa longa: "--Aproveite sua experiência e agora imagine que pode "ver" novamente aquela criança neste momento".
"Imagine que um ser de luz agora lhe da socorro e a desamarra."
No mesmo instante algo em meu peito "solta-se"... "desata".
E nada mais será como antes.
Grato em gasshô!
* Glossário:
Zen Budismo Sōtō (曹洞宗; Japonês: Sōtō-shū, Chinês: Caodong-zong) -- Às vezes referida como Soto Shu, é uma escola Budista japonesa. Ela descende da escola chinesa Caodong, e foi levada ao Japão por Dogen Zenji (1200-1253). Atualmente, é a escola de Zen com maior presença no Ocidente. Com cerca de 15.000 templos e 7 milhões de seguidores (dados de 1989), a Soto é a maior escola de Zen do Japão.
Sua prática fundamental é a Shikantaza, um tipo de meditação Zen (zazen) que pretende levar o praticante ao esquecimento de si mesmo, chegando gradualmente ao que se poderia chamar de "pura experiência da realidade".
Os professores de Zen (senseis ou roshis) da escola Soto são monges que receberam a transmissão do Dharma, um reconhecimento conferido a eles depois de terem atingido um certo grau de realização e de terem servido em um monastério por vários anos. Com esse reconhecimento, os professores passam a integrar uma linhagem que tradicionalmente considera-se remontar a Siddhartha Gautama, o Buda histórico e fundador do Budismo. Além de fazer cerimônias, ensinar e atender à comunidade, na escola Soto o os monges podem casar e constituir família.
Sensei (em japonês) é empregado para referir-se a professores, doutores, escritores consagrados e, em geral, pessoas com altos níveis de conhecimento.
Senpai (em japonês) é o sufixo para tratar colegas mais velhos ou figuras mentoras. Aplica-se a estudantes mais velhos de escolas, a atletas mais experientes, etc.
Kōhai (em japonês) é o contrário de senpai, usado para referir-se aos mais jovens. Porém, não é normal tratar alguém diretamente com este sufixo, pois seria rude. Ao invés de kōhai, é preferível kun.
Rohatsu Sesshin – Retiro da Iluminação de Buda - Na semana de 1 a 8 de dezembro, as sangas Zen Budistas do mundo inteiro fazem um retiro honrando a Iluminação de Buda, que é celebrado no dia 8 de dezembro nas tradições de budismo japonês, chinês e coreano. Segundo a tradição, depois de aceitar o arroz doce oferecido pela pastora Shujata, abandonando o acetecismo extremo, Sidharta (o futuro Buda, banhou-se no rio e sentou-se em Zazen por sete dias e sete noites.
Na manhã do oitavo dia, ao olhar com profundidade a estrela da manhã, atingindo a Iluminação, disse:
“Eu e todos os seres da Grande Terra simultaneamente nos tornamos o Caminho.”
Como fez o Buda, durante sete dias e sete noites, todo ano sentamos em Zazen e no oitavo dia realizamos a cerimônia celebrando a Iluminação de Buda.
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