O Sutra do Diamante entendido por um Leigo !


O SUTRA DO DIAMANTE 

 
Direto do Saindo da Matrix: qui, 23 de junho, 2011
    Kitaro - Kageroh / Nen / Linden


O ser humano é uma parte do todo a que chamamos universo, uma parte limitada no tempo e no espaço.
Ele concebe a si mesmo, as suas idéias e sentimentos como algo separado de todo o resto - numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência. E essa ilusão é um tipo de prisão que nos restringe aos nossos desejos pessoais e reserva a nossa afeição a algumas poucas pessoas mais próximas de nós.
Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza.
Ninguém conseguirá atingir completamente este objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação e o alicerce de nossa segurança interior.
 (Albert Einstein)

Essa frase está em sagrada sintonia com o espírito do budismo, em especial com os ensinamentos doVajracchedika Prajna Paramita, o Sutra do Diamante. Esse é um dos maiores ensinamentos que o budismo pode oferecer, porque é a culminância do pensamento descontrutivista dessa doutrina (sem ser negativista, como é normal no ocidente). Ele não mede consequências e desconstrói até mesmo a imagem mítica do Buda. É essa suprema coerência que me faz ver o budismo como O caminho, que abarca todos os caminhos justamente por não tentar ser O ÚNICO caminho. Isso é especialmente enfatizado no Vajrayana, escola tibetana de budismo que é parte do Mahayana (o grande caminho) e cujo representante é o Dalai Lama.
A língua tibetana nem mesmo possui um termo para a palavra "religião". A palavra mais próxima é Chö, que é uma tradução tibetana da palavra em sânscrito Dharma. Este termo tem uma ampla gama de significados possíveis, mas nenhuma palavra em português vem a expressar aproximadamente as associações que ela tem para os tibetanos. Em seu uso mais comum ela se refere aos ensinamentos do budismo, em que se acredita expressar o caminho para a iluminação. Esse caminho é multifacetado, e há ensinamentos e práticas para servir a cada tipo de pessoa. Ninguém é obrigado a seguir e não há práticas que sejam prescritas para todos os budistas. Ao invés disso, o Dharma tem algo para cada um, e qualquer um pode se beneficiar com algum aspecto do Dharma.
Não há uma "verdade" que possa ser colocada em palavras. O budismo tibetano reconhece que as pessoas têm diferentes capacidades, atitudes e pré-disposições, e o dharma pode e deve ser adaptado a isto. Assim, não há uma única igreja que todos devam cultuar, nenhum serviço religioso que todos devam participar, nenhuma oração que todos devam dizer, nenhum texto que todos devam tratar como normativo, e nenhuma divindade que todos devam cultuar. O dharma é extremamente flexível e se alguém achar que uma prática específica leva a diminuir as emoções negativas, a conduzir para a paz e felicidade maiores e a aumentar a compaixão e a sabedoria, isto é o dharma. O Dalai Lama afirma que é possível praticar o dharma até mesmo seguindo os ensinamentos e práticas de tradições não-budistas, como o cristianismo, islamismo, judaísmo ou hinduísmo. Se alguém pertence a uma destas tradições e se a sua prática religiosa conduz ao avanço espiritual, o Dalai Lama aconselha a mantê-la, já que esta é a meta de todos os caminhos religiosos.
A própria noção de "budismo tibetano" precisa ser esquecida se quisermos envederar pelos meandros desse pensamento. Esse budismo não depende de tradições específicas, não depende de FORMA (embora a use) e não depende sequer de CONTEÚDO (embora use e seja o melhor meio de obter a compreensão). No final é dito que você não se apegue nem à mensagem que você acabar de ler. Esse é o Sutra (ensinamento) do Diamante. Diamante não porque seja eterno, mas por ser cortante como tal, cortando fora todas as concepções arbitrárias que impedem a pessoa de atingir a iluminação.
Só compreendi a importância deste Sutra com a inestimável ajuda do Lama Padma Santem, e como foi preciso transformar os conceitos e palavras desse Sutra em MAIS conceitos e palavras (durante as horas de palestra no retiro budista), pra depois ir descartando mentalmente uma a uma, farei o mesmo adaptando os conceitos para meu público e meu entendimento (que pode não estar lá muito certo, pois o ideal seria a palestra completa com o Lama Padma).
O texto é um diálogo de Buda com seu discípulo Subhuti, que gostaria de saber do Mestre o que dizer para as pessoas que querem iniciar a prática para atingirAnuttara-Samyak-Sambodhi ("a Mais Elevada e Perfeita Sabedoria", mais comumente conhecida como "Iluminação"). Buda dá então 6 passos, que são os 6Paramitas (perfeições):
1. O PARAMITA DA GENEROSIDADE (DANA PARAMITA)
Apesar dos seres sensoriais então a serem libertos por mim serem inumeráveis, sem limite, ainda assim em realidade não existem estes seres sensoriais a serem libertados. E por que, Subhuti? Porque caso houvesse nas mentes dos Bodhisattva-Mahasattvas (Aquele no caminho da perfeição) concepções arbitrárias de fenômenos tais como a existência de identidade em alguém e identidade em um outro, identidade como dividida em um número infinito de seres que nascem e morrem, ou identidade como união com alguma Alma Universal eternamente existente, eles seriam inadequadamente chamados de Bodhisattva-Mahasattvas.
Buda já começa entrando com os dois pés no peito dos discípulos. O budismo for dummies sempre pregou que somos parte de uma "alma universal", que podemos reencarnar numa pedra ou num animal, e aprendemos a ver todos os seres como UM ser, algo próximo da concepção de Deus no ocidente. O sutra do diamante corta isso fora. É um alerta ao seguidor que queira trilhar o caminho último pra iluminação para que se afaste de qualquer expectativa de méritos decorrentes da generosidade (ou seja, querer agradar a um Ser Supremo, um Buda, etc). Se você é generoso porque sente prazer em ajudar outros seres, ou busca com isso conquistar bênçãos, um pedacinho do paraíso, ver Jesus ou Buda, ou acumular karma bom pra uma vida melhor, isso não é criticado por Buda, mas ele alerta que ainda assim isso é uma prisão.
Subhuti, se algum bom e piedoso discípulo, homem ou mulher, por motivação caridosa sacrificou sua vida, geração após geração, tão numerosas como os grãos do de areia nos bilhões de universos, e outro discípulo permanecer apenas estudando e observando um único stanza desta Escritura e explicando-a a outros, o mérito deste será muito maior.
O maior presente que o budismo pode ofertar é o conhecimento que liberta das amarras mentais. Dar de comer aos outros é bom? É ótimo, e o budismo propõe isso, também. Ensinar a pescar é melhor ainda. Mas a problemática do budismo não está no assistencialismo físico, e sim psicológico. De nada adianta uma pessoa alimentada e rica se sua mente acabará levando-a às mesmas paisagens de outrora, seja nesta vida, seja em outras. É relativamente fácil tirar o homem da pobreza, mas difícil tirar a pobreza de dentro do homem.

Assim como a luz da lamparina pode romper a escuridão que está lá há mil anos, pode também a centelha da sabedoria extinguir a ignorância que já dura muitas eras
(Hui Neng, sexto patriarca Zen, séc. 7 d.C.)

Para representar essa prisão da mente foi criada a Roda da Vida (Bhavachakra), também conhecida com a Roda da Existência, Roda do Devir e do Vir-a-ser. Ela representa os mundos que os diversos estados mentais nos levam, por vidas e vidas.

















No centro da Roda há três animais que representam os três venenos (Klesha) da mente: o desejo (apego) é representado por um galo; o ódio (aversão) é representado por uma serpente; e a ignorância (conhecimento errôneo), a fonte dos outros dois venenos, é representada por um porco ou javali. O galo e a serpente geralmente aparecem saindo da boca do javali, indicando que o apego e a aversão surgem da ignorância. Estamos sempre criando javalis pra nós mesmos e (o pior!) pros outros. Quando o javali adquire uma aura mágica (como uma religião ele está transformado num belo, plumoso e colorido galo, que é o apego. E a cobra se prontifica a defender a existência desse javali com seus dentes e veneno. Muitas vezes matamos e morremos por defender essas idéias, e se você está dizendo "ainda bem que não sou fanático assim" lembre-se que a idéia de Eu (e sua consequente autosobrevivência) não é mais do que uma idéia. Uma idéia muito, mas MUITO arraigada e que cada fibra do seu corpo (E ALMA) depende e se identifica com ela. Ao transcendermos estes três venenos podemos nos libertar do sofrimento dos seis reinos e extinguir os doze elos que nos prendem a ele. Fácil, não?
Não.
- O que pensas, Subhuti? Se um discípulo ofertou em caridade tal quantidade dos sete tesouros capaz de encher os bilhões de universos, retornariam a esta pessoa consideráveis bênçãos e méritos?
Subhuti replicou:
- Bênção e méritos muito consideráveis. Ainda que àquilo que o Senhor se refere como "bênçãos e méritos", ele não atribui qualquer valor objetivo ou quantidade; ele apenas se refere à isso no sentido convencional.
Senhor Buda continuou:
- Se houvesse um outro discípulo que, após haver estudado e observado mesmo um único verso desta Escritura, explicasse seu significado aos outros, seu mérito e bênçãos serão muitos maiores. E por quê? Porque destas explanações os Budas atingiram Anuttara-samyak-sambodhi (A Mais Elevada e Perfeita Sabedoria, ou Iluminação), e seus ensinamentos estão baseados nesta sagrada Escritura. Mas Subhuti, tão pronto eu acabe de falar destes Budas e seus Dharmas, eu preciso recolher as palavras, pois não existem nem Budas nem Dharmas.
Quando um Bodhisattva-Mahasattva inicia a prática para atingir a iluminação, ele precisa abandonar, também, toda a ligação a concepções arbitrárias de fenômenos. Quando praticando a atividade pensar, ele deveria excluir definitivamente todos os pensamentos conectados com fenômenos de visão, audição, paladar, olfato e tato, e todas as discriminações baseadas neles, mantendo sua capacidade de pensar independente de tais concepções arbitrárias de fenômenos. A mente é perturbada por estas discriminações de conceitos sensoriais e pelas concepções arbitrárias subseqüentes a respeito delas, e, uma vez que a mente se torna perturbada, ela cai em falsas imaginações como com respeito a uma identidade e sua relação com as outras identidades discriminadas. É por esta razão que o Tathagata encoraja constantemente os Bodhisattva-Mahasattvas para que em sua prática de generosidade não sejam perturbados por quaisquer concepções arbitrárias de fenômenos, tais como visões, sons, etc.
O Bodhisattva-Mahasattva deveria também receber donativos sem ser influenciado por pensamentos preconceituosos como com respeito a uma identidade e a identidade dos outros, e apenas pelo propósito único de beneficiar seres sensoriais. Se um Bodhisattva-Mahasattva, na prática de generosidade concebe no interior de sua mente qualquer dessas concepções discriminando ele mesmo das outras identidades, ele será como um homem que caminha no escuro e nada vê. Mas se ele não tem concepções arbitrárias de atingir as bênçãos e méritos que ele atingirá com tal prática, será semelhante a uma pessoa com bons olhos que vê claramente todas as coisas, como se estivesse sob o sol brilhante.

2. O PARAMITA DA MORALIDADE (SILA PARAMITA)
Subhuti, quando um discípulo está motivado para dar presentes objetivos como generosidade, ele deveria praticar o Sila Paramita da transcendente prática da moralidade, ou seja, ele deveria lembrar que não há distinção entre eles e os outros e, portanto, ele deveria praticar a generosidade, não apenas com presentes objetivos, mas através de bondade e simpatia impessoais. Se um discípulo simplesmente praticar bondade desta forma, ele rapidamente atingirá a iluminação.
Subhuti, pelo que acabei de dizer a respeito de bondade, o Tathagata não se refere a que quando um discípulo estiver trazendo benefícios, ele deveria manter em sua mente quaisquer concepções arbitrárias a respeito de bondade, pois bondade, afinal, é apenas uma palavra e a generosidade deveria ser espontânea e além das identidades.
O Senhor Buda continuou:
- Não pensa, Subhuti, que o Tathagata diria consigo: "Eu libertarei seres sensoriais". Este seria um pensamento degradante. E por quê? Porque realmente não existem seres sensoriais a serem libertados pelo Tathagata. Houvesse quaisquer seres sensoriais a ser libertos pelo Tathagata isto significara que o Tathagata estaria alimentando no interior de sua mente conceitos arbitrários de fenômenos, tais como a identidade de alguém, outras identidades, seres vivos, e uma alma universal. Mesmo quando o Tathagata se refere a si mesmo, ele não alimenta em sua mente qualquer conceito arbitrário a respeito. Só os seres humanos terrestres consideram a identidade como sendo uma possessão pessoal. Subhuti, mesmo a expressão "seres terrestres", como usada pelo Tathagata, não significa que existam tais seres. Ela é usada apenas como figura de expressão.
Subhuti, se um discípulo oferecer como donativo uma quantidade tal dos sete tesouros suficiente para preencher tantos mundos quantos são os grãos de areia do rio Ganges, e se um outro discípulo, tendo compreendido o princípio da ausência de identidade de todas as coisas e através disso tenha atingido a perfeita ausência de identidade, este teria mais bênção e méritos do que aquele discípulo que tivesse apenas praticado generosidade objetiva. E por quê? Porque os Bodhisattva-Mahasattvas não olham as bênçãos e méritos como propriedades individuais.
Subhuti inquiriu o Senhor Buda:
- O que significam as palavras "os Bodhisattva- Mahasattvas não olham as bênçãos e méritos como propriedades individuais?".
- Uma vez que essas bênçãos e méritos numa foram buscadas com espírito separativo pelos Bodhisattva-Mahasattvas, então, da mesma forma, eles não as vêem como propriedade privada, mas como pertencentes de todos os seres sensoriais.

O Buda não vê a vacuidade das coisas. Ele não atingiu um nível mágico onde a realidade dele é diferente da nossa. Não, ele não está separado das coisas. Na verdade ele vê como as coisas são produzidas, vê o boneco e vê as cordas movendo o boneco. Vê que aquilo É e NÃO É. Ele vê o quadro-negro e as palavras no quadro-negro, e sabe que a realidade observada não é independente do observador (como a física quântica já registrou). Achar-se separado das coisas é um erro conceitual que o faria deixar de ser Buda (iluminado). O Buda vê as engrenagens, sabe que faz parte do intrincado mecanismo, mas só participa dele de forma CONSCIENTE, lúcida. Imagine o Buda jogando videogame: ele vê o personagem na tela, o cenário, o desafio, sabe o significado daquela imagem, mas sabe que aquilo é um conjunto de pixels se movendo numa tela, algo que foi criado e pensado para agir e reagir segundo uma programação, uma inteligência, e enquantojoga em nenhum momento ele se envolve com o jogo a ponto de esquecer esse fato e ser absorvido pelo mesmo.
Assim, achar que está "iluminando pessoas" seria para o Buda estar mentalmente absorvido pelo roteiro do jogo, porque na verdade não existem pessoas, e sim pixels se movimentando na tela. Mas, como ele decidiu vir aqui jogar, e precisa interagir com a história e seus personagens, é preciso usar os elementos do jogo (ou seja, a linguagem e as regras desse mundo) para ser efetivo em sua interação.

3. O PARAMITA DA HUMILDADE E PACIÊNCIA (KSHANTI PARAMITA)
- O que pensas, Subhuti? Supõe que um discípulo atingiu o grau de Arahat (alguém inteiramente liberto); poderia ele manter em sua mente concepções arbitrárias tais como "eu tornei-me um Arahat?"
- Não, Honrado dos Mundos! Porque falando verdadeiramente, não há tais coisas como Arahat. Estivesse um discípulo que tenha atingido este grau de liberação alimentando no interior de sua mente concepções arbitrárias tais como "eu tornei-me um Arahat", ele logo estaria discriminando coisas tais como sua própria identidade, identidade dos outros, seres vivos e uma alma universal.

Aqui Buda mostra que, para obter um certo nível no budismo é preciso desprender-se até das idéias de níveis concebidas no próprio budismo, como Sotapanna(aquele que entrou na corrente), Sakradagamin (mais um retorno) e Anagamim (nenhum retorno mais). O Lama disse que uma das últimas tentações deMara (Demônio, Tentador) na iluminação do Buda foi dizer "É, você foi o único que conseguiu esse feito". Tivesse Buda sucumbido a esse elogio, teria criado para si um imenso galo chamado "Buda" e perderia a iluminação, embora provavelmente achando que estivesse iluminado.
Neste ponto o Sutra fala também do budismo Hinayana, que não leva a desconstrução às últimas consequências. Obviamente isso é uma adaptação do texto, já que o budismo só teve a cisão Hinayana/Mahayana séculos depois da morte de Buda, mas faz parte da própria filosofia não se ater à forma, e sim ao conteúdo. É importante, por isso, ter um guia experiente explicando os textos. O Lama explicou que os praticantes Hinayana tomavam os ensinamentos de Buda de uma forma mais literal, e estavam mais preocupados com a libertação (ou "salvação") de si mesmos.

4. O PARAMITA DO ZELO E PERSEVERANÇA (VIRYA PARAMITA)
Subhuti, caso houvesse algum discípulo bom e caridoso, homem ou mulher, que por seu zelo em praticar a generosidade, estivesse decidido a sacrificar sua vida pela manhã, ou ao meio-dia, ou ao entardecer, em tantas ocasiões quantos são os grãos de areia do rio Ganges, se estas ocasiões se repetissem por centenas de miríades de kalpas, seriam grandes suas bênçãos e méritos?
- Seriam grandes certamente, Senhor Buda.
- Supondo, Subhuti, que um outro discípulo venha a observar e estudar esta Escritura em pura fé, suas bênçãos e méritos seriam ainda maiores. E se ainda um outro discípulo, além de observar e estudar esta Escritura, zelosamente explicá-la a outros e copiá-la e fazê-la circular, suas bênçãos e méritos seriam ainda muito maiores.

Aprender é descobrir aquilo que você já sabe
Fazer é demonstrar que você o sabe
Ensinar é lembrar aos outros que eles sabem tanto quanto você.
Vocês são todos aprendizes, fazedores, professores

(Richard Bach)

5. O PARAMITA DA TRANQÜILIDADE (DHYANA PARAMITA)
O que tu pensas, Subhuti? Quando o Tathagata estava com o Buda Dipankara, teve ele algum pensamento arbitrário de Dharma como algo que pudesse garanti-lo na busca para atingir Anuttara-samyak-sambodhi (iluminação) intuitivamente?
- Não, Senhor Abençoado.
- Estás certo, Subhuti. Falando a verdade, não existe tal concepção arbitrária de Dharma. Isto significa que o que eu atingi não é algo limitado e arbitrário que pode ser chamado de "Anuttara-samyak-sambodhi", mas é a condição de Buda, cuja essência é idêntica à essência de todas as coisas: universal, inconcebível, inescrutável.
O Senhor Buda enfatizou dizendo: - Subhuti, a condição de Buda que o Tathagata atingiu é e não é, ao mesmo tempo, a mesma que Anuttara-samyak-sambodhi. Isto é apenas uma outra maneira de dizer que o fenômeno de todas as coisas é idêntico à condição de Buda e Anuttara-samyak-sambodhi, e que nem é realidade nem irrealidade, mas reside junto com todos os fenômenos no vazio e silêncio, inconcebível e inescrutável. Subhuti, esta é a razão pela qual eu digo que o Dharma de todas as coisas não pode jamais ser abarcado por quaisquer concepções arbitrárias de fenômenos, não importa quão universal tal concepção possa ser. Esta é a razão pela qual isto é chamado de Dharma e a razão pela qual não há tal coisa como o Dharma.

Imagine a mente como um quadro-negro de escola. Ele é "vazio", desprovido de conteúdo, que será acrescentado por você ou pelos outros. Quando somos crianças e estamos no início do aprendizado aquilo é um quadro com símbolos desenhados, que são impreterivelmente apagados após um tempo. Quando absorvemos os significados dos símbolos e passamos a tomá-los como idéias "reais" passamos a ignorar o quadro-negro e nos fixarmos apenas nas idéias apresentadas. E essas idéias nos perseguem, seja na prova, seja na profissão ou no dia-a-dia. O budismo nos ensina que essas idéias que tomamos como reais são tão efêmeras quanto giz no quadro-negro. O estado real da sua mente é o "vazio". E pra compreender isso é preciso atingir um estágio de desconstrução que atinja aquele estado de criança, quando o quadro-negro ainda exibia símbolos desenhados. Por isso Jesus disse: Em verdade vos digo que, qualquer que não receber o reino de Deus como criança, de modo algum entrará nele. Mas isso não significa que devamos permanecer ignorantes, ao contrário, é um estágio da sabedoria em que você está receptivo, atento, livre de pré-conceitos. Mas o problema com as crianças é que elas são facilmente enganadas. Tomam o conceito como realidade e facilmente viram pequenos "adultos". Por isso também Jesus disse sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas. Ora, isso nada mais é que a natureza dual do pensamento budista, em que é preciso simplicidade para ver o mundo como ele se apresenta, e astúcia e sabedoria pra não se deixar enganar por ele.
Sua mente aceita qualquer coisa que você colocar em sua superfície, e comunica aos outros, mas sua natureza é impermanente. Por isso você não deve se identificar com o conteúdo de sua mente, pois hoje pode ser matemática, e amanhã português ou inglês. Você não é sua mente e, em última instância, sua mente não é o quadro-negro, e sim o vazio do quadro-negro. Assim, você "é" proavelmente o vazio das inúmeras possibilidades de vir-a-SER.
Essa dualidade das coisas confunde a cabeça das pessoas, especialmente dos ocidentais, acostumados que estão a aceitar ordens vindas de fora, tradições superiores, sejam elas reveladas divinamente ou não. Então se perguntam: será que existe reencarnação no Budismo? Será que existe Deus no budismo? E a resposta é sim. E não. É dual. A realidade última não pode ser apreendida sequer pelo Buda.

Vejamos outro exemplo de como a mente funciona, dessa vez mais prático. Considere essa foto abaixo. Vamos analisar, de forma bem estereotipada, o que ela representa pra alguns grupos de pessoas:
- Para homens adolescentes ela é uma bunda (e que bunda!). Somente os mais observadores a definirão como uma bunda atravessando a rua.
- Para homens mais maduros é uma mulher com uma bunda respeitável atravessando a rua.
- Homens sábios e espirituosos meditarão na presença de espírito do fotógrafo que, em face de tal beleza, a compartilhou com a humanidade.
- Para metade das mulheres essa é uma mulher vulgar, que não deveria ter saído de casa desse jeito.
- A outra metade está imaginando onde ela comprou essa blusa de rendinhas.
- Mulheres sábias e espirituosas meditarão na impermanência da bunda e imaginarão a desgraça que vai ser esse traseiro aos 50 anos.
- Crianças, curiosos e monges provavelmente perceberão um cachorro dirigindo um carro na foto (eu não percebi).
E é assim, mudando o foco, que vamos interpretando as imagens, fatos, relacionamentos e nossa própria existência. O budismo não diz que há foco certo ou errado, mas nos convida a meditar a respeito dos nossos filtros e observar a foto como um todo, através da meditação, mostrar o quanto ela é limitada em termos de ser um instantâneo de um momento efêmero e até mesmo perceber o quanto de tempo estamos gastando filosofando com uma IMAGEM!

O problema com as tradições é que elas são como a âncora de um navio: essencial para embarcar e desembarcar. É preciso embarcar numa doutrina com segurança, sabendo o que ela propõe, o que já foi feito e quais são suas metas, e a tradição serve pra isso. Da mesma forma é essencial para desembarcar da sua doutrina e conhecer outras, possibilitando a troca de conhecimento de forma estruturada e fundamentada. Lhe protege contra as tempestades e evita que você seja jogado nas pedras. Mas a tradição, da mesma forma que a âncora, não serve para navegar. É preciso levantá-la, tirá-la do fundo do mar - terreno ao qual ela estava lhe segurando - e seguir o vento e as correntezas. Nenhum barco navega igual a outro, nem singra as mesmas ondas. Mantenha a tradição consigo por segurança, mas vá desbravar o oceano! Seja o capitão de seu próprio navio, e não um escravo da âncora.

Não acredite no que você ouviu; não acredite em tradições porque elas existem há muitas gerações;
não acredite em algo porque é dito por muitos; não acredite meramente em afirmações escritas de sábios antigos;
não acredite em conjecturas; não acredite em algo como verdade por força do hábito;
não acredite meramente na autoridade de seus mestres e anciãos.
Somente após a observação e análise, quando for de acordo com a razão e condutivo para o bem e benefício de todos, somente então aceite e viva para isso

(Buda)

E então chegamos a parte mais bela, a culminância do Sutra do Diamante, a jóia do budismo:

6. O PARAMITA DA SABEDORIA (PRAJNA PARAMITA)
- O que tu pensas, Subhuti? Teria o Tathagata atingido qualquer coisa que possa ser descrita como Anuttara-samyak-sambodhi? Alguma vez ele te deu este ensinamento?
Subhuti replicou:
- Como eu entendo o ensinamento do Senhor Tathagata, não há tal coisa como Anuttara-samyak-sambodhi, nem é possível para o Tathagata ensinar qualquer Dharma fixo. E por quê? Porque as coisas ensinadas pelo Tathagata são, em sua natureza essencial, inconcebíveis e inescrutáveis; elas são nem existentes nem não-existentes; elas nem são fenômenos nem arquétipos ocultos (noumena). O que significa isto? Isto significa que os Budas e Bodhisattvas não são iluminados por qualquer verdade fixa, mas por um processo intuitivo que é espontâneo e natural.
- Subhuti, se algum discípulo dissesse que o Tathagata está agora indo ou vindo, ou está agora sentado ou deitado, ele não teria entendido o princípio que eu estava ensinando. E por quê? Porque ainda que a palavra "Tathagata" signifique "Aquele que então veio" e "Aquele que então se foi", o verdadeiro Tathagata nunca vem de nenhum lugar nem vai para algum lugar. O nome "Tathagata" é meramente uma palavra.
Então o Senhor Tathagata novamente inquiriu de Subhuti, dizendo:
- Pode o Tathagata ser reconhecido inteiramente através de alguma manifestação de forma?
- Não, Honrado dos Mundos! O Tathagata não pode ser reconhecido inteiramente por alguma manifestação de forma. E por quê? Porque o fenômeno de forma é inadequado para manifestar a condição de Buda. Pode servir apenas como uma mera expressão, uma alusão ao que é inconcebível.
- O que pensas, Subhuti? Poderia o Tathagata ser inteiramente reconhecido por alguma ou por todas suas transformações transcendentais?
- Não, Honrados dos Mundos! O Tathagata não poderia ser inteiramente reconhecido por alguma ou por todas suas transformações transcendentais. E por quê? Porque o que o Tathagata acabou de se referir como "transformações transcendentais" é meramente uma figura de expressão. Mesmos os mais elevados Bodhisattva-Mahasattvas são incapazes de compreender inteiramente, mesmo por intuição, aquilo que é inescrutável em sua essência.
O Senhor Buda continuou:
- Subhuti, não pensa o oposto, ou seja, que quando o Tathagata atingiu Anuttara-samyak-sambodhi, isso não se deu pela posse das trinta e duas marcas físicas de excelência. Não pensa isto. Caso tu penses que quando iniciando a prática da busca de Anuttara-samyak-sambodhi tu deverias te fixar em que todos os fenômenos devem ser cortados fora, rejeitados, não pensa isto. E por quê? Porque quando um discípulo pratica a busca para atingir Anuttara-samyak-sambodhi, ele nem deveria se fixar nessas concepções arbitrárias de fenômenos e nem se fixar na sua rejeição.
O Senhor Buda então alertou Subhuti dizendo:
- Subhuti, não pensa que o Tathagata chegue mesmo a considerar em sua própria mente: "Eu devo enunciar um sistema de ensinamento para elucidar o Dharma". Tu nunca deverias alimentar tal pensamento indigno. E por quê? Porque se algum discípulo desse guarida a semelhante pensamento, ele não apenas estaria confundindo o ensinamento do Tathagata, mas estaria igualmente rebaixando a si mesmo. E, além disso, o que acabou de ser referido como "um sistema de ensinamento" não tem significado, uma vez a Verdade não pode ser cortada em pedaços e arranjada em um sistema. As palavras podem apenas ser usadas como figuras de expressão.
Subhuti inquiriu:
- Abençoado Senhor! Quando tu atingiste Anuttara-samyak-sambodhi, sentiste no interior de tua mente que nada havia sido adquirido?
- É precisamente isto, Subhuti. Quando eu atingi Anuttara-samyak-sambodhi, não senti qualquer concepção arbitrária de Dharma discriminada no interior de minha mente, nem mesmo a mais sutil. Mesmo as palavras Anuttara-samyak-sambodhi são meramente palavras. Ainda assim, Subhuti, o que eu atingi em Anuttara-samyak-sambodhi é o mesmo que todos os outros atingiram; é algo que é indiferenciado, nem para ser olhado como um estado elevado e nem para ser olhado como um estado inferior. É inteiramente independente de quaisquer concepções definitivas e arbitrárias de uma identidade individual, outras identidades, seres vivos e/ou uma alma universal.
Portanto, todo o discípulo que está buscando Anuttara-samyak-sambodhi deveria descartar não apenas essas concepções, mas também todas as idéias a respeito de tais concepções e todas as idéias a respeito de não-existência (ou irrealidades) de tais concepções.
Ainda que o Tathagata em seu ensinamento faça uso constante de idéias e concepções a respeito deles, os discípulos deveriam manter a mente liberta frente a tais concepções e idéias. Eles deveriam relembrar que o Tathagata, ao fazer uso delas para explicar o Dharma, sempre as usa como analogia a uma jangada, que é para usar apenas para atravessar o rio. Uma vez cruzado o rio ela não tem mais utilidade, ela deveria ser descartada. Assim, estas concepções arbitrárias de coisas e sobre coisas, deveriam ser inteiramente abandonadas quando se atinge a iluminação. E ainda com maior razão deveriam ser abandonadas as concepções de coisas não-existentes.

- O que pensas, Subhuti? O Tathagata deu-te algum ensinamento definitivo neste Ensinamento?
- Não, Abençoado Senhor! O Tathagata não nos deu qualquer ensinamento definitivo nesta Escritura.

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