Oliver Sacks: "Toda noite, antes de dormir, eu vejo coisas"
O autor de livros populares sobre o cérebro diz que 100% das pessoas sofrem algum tipo de alucinação e garante que ouvir vozes não é sinônimo de doença
O neurologista britânico Oliver Sacks, de 79 anos, é um colecionador
incomum.
Guarda histórias fantásticas sobre a mente humana, recontadas
com primor em livros que se tornam campeões de venda.
Em sua obra mais
recente, A mente assombrada (Companhia das Letras, R$ 45), lançada há duas semanas no Brasil, Sacks narra situações criadas apenas pelo cérebro de seus pacientes.
- Cegos enxergam cenas se desdobrar no cinema de suas pálpebras;
- Pessoas ouvem, alto e bom som, músicas criadas por suas mentes;
- Outras advogam o direito de ouvir vozes que não existem sem ser tachadas de doentes...
Sacks diz que não há nada de
errado com eles. “Alucinações são comuns e não significam loucura”, diz
Sacks. “Fazem parte de nossa natureza e influenciam a arte, a literatura e até a religião.”
ÉPOCA – O senhor diz que as alucinações são comuns. Quão comuns?
Oliver Sacks – Estudos estatísticos mostram que algo como 10% da população afirma já ter tido alucinações ocasionais. Um tipo comum é escutar seu próprio nome ou o toque do celular. As percentagens vão ficando maiores, chegam perto dos 100%, se olharmos os estágios intermediários entre a vigília e o sono. Você está na cama, seus olhos estão fechados, mas você não está nem acordado nem dormindo. Nessa fase, podem ocorrer alucinações muito vívidas. Em geral, as pessoas são relutantes em admitir suas alucinações por causa da ideia de que são evidência de loucura, de demência. Na maior parte dos casos, não são.
ÉPOCA – Como explicar essas alucinações corriqueiras?
Sacks – Elas são causadas pela superativação de circuitos cerebrais responsáveis pela percepção dos sentidos. Só que essa ativação acontece num momento em que não há nada para perceber: aquela música não está tocando ou aquelas pessoas não estão desfilando na sua frente. Se alguém alucina com rostos, haverá uma superativação localizada, apenas na parte do cérebro chamada área fusiforme da face, usada no reconhecimento de rostos. Provavelmente, a minha não funciona muito bem porque sou péssimo para reconhecer pessoas. Quando estamos de fato vivenciando uma situação ou imaginando uma cena, várias partes do cérebro trabalham juntas. Na alucinação, não há esse funcionamento integrado. Se a alucinação é causada por uma doença psiquiátrica, além de uma superativação das partes sensoriais do cérebro, parece haver inibição ou dano de áreas responsáveis pelo monitoramento da realidade, como o lobo frontal.
ÉPOCA – Como saber se sua alucinação é sinal de doença psiquiátrica?
Sacks – Normalmente, pessoas que escutam o próprio nome têm a perfeita noção de que aquela voz não é real. Há até quem diga ouvir vozes que parecem vir de uma conversa entre outras pessoas ou de um programa de rádio. Alguns pesquisadores supõem que esse tipo de alucinação auditiva acontece porque a pessoa não reconhece que aquela fala é dela ou porque há uma ativação cruzada com as áreas auditivas. É como se o pensamento se tornasse falado. Estudos recentes confirmam que esse tipo de alucinação não é tão raro e que a maioria dessas pessoas não tem esquizofrenia, um distúrbio psiquiátrico em que os pacientes podem se dizer comandados por vozes imaginárias. Quando não são causadas por doenças da mente, as vozes não são ameaçadoras ou condenatórias. Não competem com os pensamentos e é possível ignorá-las. Conto no livro o exemplo de uma mulher que estava prestes a cometer suicídio. Ela tinha terminado um relacionamento amoroso longo e estava com o coração partido. Numa das mãos, tinha comprimidos; na outra, bebida. Escutou uma voz dizer: “Não faça isso”. A voz a impediu de cometer suicídio. Quando emoções extremas estão envolvidas, qualquer um pode ter uma alucinação.
ÉPOCA – É por isso que o senhor diz que as alucinações têm o poder de influenciar a arte e a cultura?
Sacks – O italiano Giovanni Battista Piranesi, um artista do século XVIII, é um exemplo. Ele teve malária e ficou delirante por causa da febre alta. Conseguiu relembrar com clareza suas alucinações – algo nem sempre acontece com os sonhos – e as usou como base para sua arte. Viu prisões enormes, cheias de labirintos aterradores, e reproduziu essas visões em suas pinturas e desenhos. O romancista russo Fiódor Dostoiévski, do século XIX, transferiu para alguns de seus personagens, como o príncipe Myshkin, de O idiota, suas experiências alucinatórias. Dostoiévski tinha um tipo especial de crise epiléptica. Ela causa uma sensação de êxtase, de estar no céu, rodeado por anjos. Provavelmente, Joana d’Arc, a santa francesa que virou heroína da Guerra dos Cem Anos, no século XV, tinha esse tipo de alucinação. Ela adquiriu um sentimento missionário fervoroso, que levou milhares de pessoas a segui-la. Alucinações desse tipo podem abalar as estruturas de quem as sofre e podem ter um papel em convertê-la. O filósofo americano William James descreveu uma infinidade de experiências religiosas e distinguiu as desse tipo, que chamava de agudas, do hábito social de ir à igreja todos os domingos. Esse sentimento religioso agudo parece estar associado à alucinação.
ÉPOCA – Isso quer dizer que a religião pode ser resultado de uma alucinação?
Sacks – Há muitos casos em que uma convulsão ou lesão nos lobos temporais do cérebro, especialmente no direito, é associada ao sentimento religioso. Estudos de neurociência sugerem que, quando essas áreas são ativadas, há a expressão de um pensamento místico. Os humanos têm potencial para desenvolver esse tipo de pensamento. Em algumas pessoas, ele é mais forte, noutras mais fraco. Ou pode ser que alguns o usem, outros não. Mas não acho que podemos reduzir a natureza da fé a um processo cerebral.
ÉPOCA – No livro, o senhor dedica um capítulo a alucinações causadas por drogas e descreve sua própria experiência. Era impossível passar pelos anos 1960, como estudante de neurologia, e não provar substâncias tóxicas?
Sacks – Certamente estava tentado a experimentá-las. A neuroquímica estava na moda, assim como as próprias drogas. Eu as evitava durante a semana, mas em muitos fins de semana as experimentava. Tive sorte por sobreviver, porque me arrisquei muito. Usava drogas em doses altas, sozinho e sem conhecimento. As anfetaminas podem aumentar a pulsação e a pressão arterial, efeitos perigosos, similares ao da cocaína. A morfina pode rebaixar a consciência e a respiração, e isso pode levar à morte. Alguns pulam pela janela depois de tomar LSD, pensando que podem voar.
ÉPOCA – Além das alucinações causadas pelas drogas, o senhor já experimentou algum outro tipo?
Sacks – Toda noite, antes de dormir e acordar, vejo coisas e ocasionalmente escuto sons, de maneira muito vívida. Perdi totalmente a visão num olho e enxergo parcialmente com o outro. Isso me faz especialmente sensível a certo tipo de alucinação. Se eu olhar para o teto, como estou fazendo agora, vejo formas, como letras e números. Eles se movem, sem formar palavras. Também vejo padrões geométricos e, algumas vezes, sou enganado. Estava num prédio nesta manhã, no elevador, e disse: “Que estampa bonita na parede!”. A pessoa que estava comigo disse que não havia estampa alguma. Essas alucinações geométricas muito simples me enganam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário