Parada e recomeço

~ Parada e recomeço

 
~ Por
Itamar Melo 18/05/2013


Você está angustiado com os rumos da sua vida? Conheça gente que largou tudo para mergulhar em uma jornada de redescoberta e reinvenção


Período sabático é uma opção para quem quer se descobrir Tadeu Vilani/Agencia RBS
A advogada Laura Miguel Reis voltou professora de ioga do seu período sabático na Índia Foto: Tadeu Vilani / Agencia RBS
No mundo judaico antigo, um de cada sete anos era destinado por lei ao repouso compulsório. A terra não podia ser cultivada, as dívidas se extinguiam, os escravos conquistavam a liberdade. Não era permitido sequer colher os frutos das árvores. Terminado esse período, conhecido como ano sabático, tinha início um novo ciclo de vida.


Nos dias atuais, o sabático está de novo em evidência, mas agora com um novo significado, de caráter pessoal. A ideia básica ainda é realizar uma pausa prolongada antes de uma nova etapa. Mas já não se trata apenas de deixar a terra inculta. A meta agora é cultivar o espírito, para que algo novo floresça.

Os "sabatistas" de hoje dão uma resposta radical a angústias que são de quase todo mundo: de sentir-se esmagado por uma rotina que deixou de fazer sentido, de ser prisioneiro de decisões tomadas em um passado com qual já não é possível identificar-se, de ter a sensação de que todo novo dia é sempre o mesmo dia, sem conduzir a nada. Diante disso, os adeptos do sabático abandonam afazeres e responsabilidades para mergulhar dentro de si mesmos, em uma jornada de redescoberta e reinvenção.

Nessa nova encarnação, o ano sabático deixou de ser uma obrigação religiosa para virar um sonho acalentado por muitos, ainda que realizado por poucos — bem poucos. Mesmo assim,virou um fenômeno pop, alimentado pelo exemplo de celebridades como a ex-apresentadora do Fantástico Glória Maria e o ex-técnico do Barcelona Josep Guardiola, que renunciaram a suas posições para sair em busca de seu verdadeiro eu.

O dado animador para quem está buscando coragem de também largar tudo para se encontrar é que existem exemplos concretos fora do mundo das celebridades e dos muito ricos. Nesse sentido, vale a pena relatar a experiência transformadora vivida pela porto-alegrense Laura Miguel Ries.
Até 2007, a vida de Laura seguia o script previsível: formou-se em Direito na PUCRS, fez pós-graduação na área tributária, empregou-se em um grande escritório de advocacia. Como quase todo mundo, trabalhava horas sem fim para vencer prazos.

— Comecei a ver que aquilo não tinha nada a ver comigo — conta ela.
A insatisfação chegou ao limite seis anos atrás, quando Laura trabalhava em um escritório de Florianópolis. Mas, duas vezes por semana, tinha um desafogo: dava aulas de ioga, que começara a praticar anos antes, como forma de estar serena para a prova da OAB, após duas reprovações. A cada dia, via-se mais como professora de ioga e menos como advogada.

 — Eu estava dividida. Comecei a me sentir muito longe da advocacia. Pensava assim: "Estou com 26 anos e faço uma coisa de que eu não gosto. Mas como vou viver de ioga?". Até que finalmente decidi: "Sabe de uma coisa? Vou para a Índia e vou repensar tudo".

Para bancar a empreitada, Laura raspou o fundo de garantia e vendeu o carro. Os amigos achavam que estava louca. O pai ficou inconformado. Na bagagem, levou uma mochila quase vazia, não queria sequer usar as roupas da antiga Laura.

— Queria me desligar das referências que tinha e ir despida e aberta para o que viesse, sem pensar na volta — conta.

Laura foi para Mysore, no sul da Índia, com a ideia de se aprofundar na ashtanga yoga. Lá funcionava o centro mantido por Pattabhi Jois, responsável por desenvolver o método. Ela estava tão determinada a prolongar ao máximo seu período sabático que economizava cada centavo. Chegava a cortar o próprio cabelo, para poupar.

Depois de dois meses, achou que lhe faltava devolver o que tinha recebido, na forma de trabalho voluntário. Seguiu para Boudhnat, no Nepal, e começou a ensinar inglês a refugiados tibetanos. Uma noite, depois de comunicar-se com a família via Skype em uma lan house, foi abordada por um português. Ele contou-lhe que estava no país para montar uma ONG em benefício de meninas prostitutas de Katmandu.

— Posso ajudar. Tenho tempo livre — entusiasmou-se Laura.


Voluntariado levou Laura até o Nepal

O projeto sofreria uma reviravolta. Laura e o português encontraram uma finlandesa que visitava o Nepal para conhecer o abrigo para crianças para o qual contribuía financeiramente. O trio foi ao local e teve um choque: a entidade era uma fraude. As 34 crianças, com idade entre dois e nove anos, viviam em condições subumanas e tinham nos corpos marcas de espancamento. O dono estava envolvido em tráfico de menores para prostituição e transplante de órgãos.

Laura e o amigo resgataram as crianças e, em lugar da ONG, montaram uma entidade para cuidar delas. Os 30 dias que a jovem gaúcha planejara no Nepal acabaram por virar seis meses de trabalho voluntário.

— Foi um período muito pesado. Chorei inúmeras vezes com as histórias de maus tratos. Vivi coisas muito fortes. Mas estava apaixonada por aquilo e não queria voltar.

O retorno a Porto Alegre ocorreu depois de 11 meses, em 2008, por insistência do hoje marido, mas durou poucos dias. Ela voltou ao Oriente para ensinar ioga na Tailândia e percorrer a Índia. O retorno definitivo foi em 2009 — se é que se pode falar em retorno:

— Acho que continuo lá. Sou outra pessoa, muito distante do que eu era. Voltei sabendo com clareza o que quero.

Quando montou uma escola de ioga na Capital, Laura sentia-se tão longe da advogada que não foi capaz de preparar os contratos do empreendimento — pareciam escritos em um idioma estranho. Aos

33 anos, ela recomenda que outras pessoas façam como ela, mas com precauções:

— Se a pessoa está feliz com seu mundo, eu digo: não vai. Conheço gente que largou tudo e não se encontrou. Mas acho importante sair do seu ambiente para se reestruturar.

O passo dado pela porto-alegre Laura Miguel Ries é relativamente comum em países do Primeiro Mundo. Após o término da faculdade ou antes de assumir um novo emprego, muitos europeus costumam dedicar alguns meses a uma espécie de vagabundagem meditativa.

— Ter a coragem de parar, descobrir que se pode sobreviver sem todo o conforto material, ver outras possibilidades na carreira e aceitar mais risco são os benefícios do sabático — afirma o engenheiro Eduardo Telichevesky, 49 anos, que deixou um emprego de uma década na indústria norte-americana para passar um ano sabático em sua Porto Alegre natal e emergir da experiência como criador de uma empresa start up em Cupertino, na Califórnia.

Já há programas específicos para esse público, oferecidos por operadoras de viagens, que envolvem jornadas de meses por destinos menos frequentados. Para Beto Conte, diretor do Student Travel Bureau (STB) no Estado, a novidade é que os brasileiros começam a ganhar coragem de assumir a mesma trilha:

— Essa prática de vivenciar um período de reflexão e experiência entre o final de um ciclo e o começo de outro está cada vez mais difundida aqui. Como nossa economia está estabilizada, com pleno emprego, tornou-se menor o receio de abandonar uma boa colocação profissional — diz ele.
O próprio Conte teve, há cerca de três décadas, o seu sabático transformador. Formado em Engenharia Civil, ele viajou à Suíça para uma especialização em patologias de estruturas de concreto armado. No inverno, para fugir do frio, passou um mês no Oriente. Quando finalmente voltou, um ano depois, o engenheiro não existia mais.

— Ao me desligar da área técnica, tive o insight do que queria fazer da minha vida. É mais fácil tomar esse tipo de decisão quando há um distanciamento. Qualquer pessoa que está questionando sua vida pode se beneficiar de um sabático — observa.


O plano: não fazer absolutamente nada
Fábio Bernardi ficou em Porto Alegre para seu sabático.    
Isso não significa que um período sabático seja necessariamente sinônimo de longas viagens mundo afora. A viagem realmente importante é interior. E isso pode ser feito sem sair de casa. Foi assim que o publicitário Fábio Bernardi, 41 anos, começou sua trajetória de redescoberta. Em novembro de 2010, depois de 18 anos de profissão, decidiu desligar-se de um cargo de direção na agência Paim. Seu plano: não fazer absolutamente nada.

— Durante uns três meses, eu não tinha programação alguma. Não queria pensar em nada. Chegava ao cúmulo de ir ao cinema e fazer uni-duni-tê para escolher o filme, para não ter de tomar decisão. Essa fase foi a mais importante. Eu não queria repensar minha vida a partir do que estava vivendo antes. Precisava tirar de dentro de mim os anos de inserção em uma determinada cultura — explica.


O sabático de Bernardi durou 13 meses e envolveu três fases, que ele associa à computação. O primeiro momento, de não fazer nada, foi o de resetar a máquina. Em seguida, veio a etapa que o publicitário chama de aumentar a memória: aos poucos, ele começou a se interessar de novo por absorver informações, viver momentos especiais, acumular experiências. Essa fase incluiu uma viagem à Espanha. Sua mulher, Lara Piccoli, decidiu seguir o exemplo e também desligou-se da Paim. O casal embarcou junto em busca de um futuro.


— Fomos para ficar 25 dias e esticamos para 40. Conversamos muito — diz Bernardi.


Quando receberam uma sondagem profissional, teve início a terceira fase do sabático. Bernardi e Lara voltaram a Porto Alegre para preparar seu "upgrade". Além de estudarem a proposta de parceria com o grupo ABC, do publicitário Nizan Guanaes, começaram a se interrogar sobre o que queriam fazer da vida.


— Decidimos que gostaríamos de voltar ao mercado, mas como donos de negócio — diz.


No começo de 2012, depois de definir o modelo de empresa, Bernardi e a mulher assumiram a agência Morya em Porto Alegre, associados a Guanaes.

Bernardi conta que a filosofia da empresa é um resultado direto do período de reflexão. Ele se propôs a criar uma agência onde é feito um "esforço brutal" para que ninguém trabalhe depois das 19h ou nos fins de semana:

— Essa foi uma descoberta concreta do meu período sabático. O fim de semana é um microssabático. Melhora as pessoas.


Uma das principais dicas do publicitário para quem quer dar uma parada é fazer um planejamento que dê tranquilidade no período de reinvenção pessoal. Antes de sua jornada, Bernardi havia passado dois anos preparando a imersão em si mesmo. A preparação significou, basicamente, fazer reservas financeiras.


— O planejamento financeiro é fundamental. Ele permite que se faça o período sabático por inteiro. Garante que a mente esteja tranquila. Não adianta fazer se não houver paz de espírito — aconselha.






Escritor transforma experiência em livros


O escritor Airton Ortiz, um felizardo que conseguiu transformar os sabáticos em modo de vida, concorda com a importância de ter segurança financeira e algum plano B para o momento de retorno ao mundo do trabalho. Ele oferece outras recomendações. Para Ortiz, um bom sabático não pode ser apenas para descansar — para isso existem as férias. Também não é o caso de programar uma jornada com família ou amigos, porque se trata necessariamente de um empreendimento solitário e de desconexão com o passado.


— Gente que fez o Caminho de Santiago diz que ele tem uma energia muito boa, mas não tem coisa nenhuma. A mudança ocorre nas pessoas por elas terem ficado sozinhas com elas. O mais importante do sabático é sair do piloto automático e lançar um novo olhar para si — observa.


Ortiz, 58 anos, fala com a autoridade de quem vive uma experiência sabática que já dura quase duas décadas. Nos anos 1990, ele fechou sua editora em Porto Alegre, pôs uma mochila nas costas e foi para a África. Durante três meses, percorreu vários países e subiu ao topo do Kilimanjaro. De volta para casa, percebeu que tinha uma história para contar. O sucesso do livro resultante abriu uma perspectiva de futuro. Desde então, faz uma grande viagem todos os anos e a transforma em literatura. Já são 14 volumes publicados.

— Os três meses na África me transformaram totalmente. Foi um divisor de águas — diz.

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