Porque no fundo,
como Hume afirma, quando se começa a introspecção, notamos um grupo de
pensamentos e sentimentos e percepções e tudo isso, mas nunca nos apercebemos
de uma substância à qual possamos chamar “o Eu”.
David Hume,
filósofo inglês do séc. XVII.
Citação postada no blog Sangha Margha.
O mundo de Sofia (Excertos acerca de David Hume)
Escrito por Jostein Gaarder ~Cia. das Letras, São Paulo, 1998 ~ Tradução
de João Azenha Jr. Capítulo 21 (Excerto) Hume (Páginas 287-301.)
Alberto
tinha os olhos fixos na mesinha que havia entre os dois. Em dado momento,
virou-se e olhou para o céu emoldurado pela janela.
O
tempo está carregado. Disse Sofia.
Sim,
está muito abafado.
Vamos
falar agora sobre Berkeley?
Ele
foi o segundo dos empíricos britânicos. Mas como Berkeley é um capítulo à
parte, vamos nos concentrar primeiramente em David Hume, que viveu de 1711 a
1776. Sua filosofia é considerada ainda hoje a mais importante filosofia
empírica. Além disso, Hume é de fundamental importância, pois inspirou o grande
filósofo Immanuel Kant na execução de seu próprio projeto filosófico.
E
o fato de eu estar muito mais interessada na filosofia de Berkeley não conta?
Não, não conta. Hume cresceu nas
proximidades de Edimburgo, na Escócia, e sua família queria muito que ele fosse
um jurista. Ele próprio afirmava, porém, que sentia uma insuperável aversão a tudo, menos à filosofia e à erudição. Como os grandes pensadores franceses Voltaire e
Rousseau, Hume viveu em pleno Iluminismo e viajou muito pela Europa, antes de
voltar a se estabelecer em Edimburgo. Sua obra mais importante, Tratado sobre a
natureza humana, foi publicada quando Hume tinha vinte e oito anos. Ele mesmo
dizia, porém, que desde os quinze já tinhas as idéias para este livro.
Estou vendo que preciso me apressar.
Você já começou.
Mas se um dia eu tiver minha própria
filosofia, ela será completamente diferente de tudo o que tenho ouvido até
agora.
Você está sentindo falta de alguma
coisa em especial?
Em primeiro lugar, todos os filósofos
de que ouvi falar até agora foram homens. E os homens parecem viver num mundo
só deles. Eu estou mais interessada no mundo real: flores, animais e crianças,
que nascem e crescem. Os seus filósofos falam sempre do homem enquanto ser
humano e vira e mexe aparece um tratado sobre a natureza humana. Só que este
homem, este ser humano, parece sempre ser um homem de meia-idade, e a vida
começa com a gravidez e o nascimento. Acho que até agora vi poucas fraldas e
ouvi muito pouco choro de nenê nesta história toda. Acho, também, que esta
história tem muito pouco amor e amizade.
Neste ponto você tem toda a razão. Mas
talvez Hume seja exatamente um filósofo que pensa um pouco diferente. Mais do
que qualquer outro, ele toma o mundo cotidiano como ponto de partida para a sua
reflexão. Acredito até que Hume foi muito sensível ao modo como as crianças,
esses novos cidadãos do mundo, experimentam a vida.
Então vamos lá. Quero ouvir.
Como empírico, Hume considerava sua
tarefa eliminar todos os conceitos obscuros e os raciocínios intrincados
criados até então por esses filósofos homens a que você se referiu. Naquela
época, circulavam por escrito e oralmente toda a sorte de antigos resquícios de
concepções medievais e conceitos das filosofias racionalistas do século XVII.
Hume queria retornar à forma original pela qual o homem experimentava o mundo.
Para ele, nenhuma filosofia que não aquela a que chegamos pela reflexão sobre o
nosso cotidiano seria capaz de nos conduzir para além dessas mesmas
experiências cotidianas.
Até agora tudo isto soa muito
promissor. Será que você poderia dar um exemplo?
Na época de Hume, acreditava-se
amplamente na existência dos anjos. Por anjo entendemos uma forma humana alada.
Você já viu um anjo, Sofia?
Não.
Mas você já viu uma forma humana, não
viu?
Que pergunta boba!
E você já viu asas?
Claro, só que nunca numa pessoa.
Pois bem, para Hume, o “anjo” é
uma noção complexa. Ela se constitui de duas experiências diferentes, que
ocorrem simultaneamente na imaginação humana, já que na realidade estão
dissociadas. Em outras palavras, esta noção é falsa e como tal deve ser
rejeitada. Do mesmo modo, temos de proceder a uma verdadeira limpeza em nossos
pensamentos e idéias, pois, como Hume afirmou, “se tomamos um livro sobre a doutrina divina, ou
sobre metafísica,
devemos perguntar o seguinte:
·
Ele contém algum
raciocínio abstrato sobre tamanho ou números?
Não.
·
Contém algum
raciocínio sobre fatos e sobre a vida que seja baseado em experiências?
Não. Atira-o, então, ao fogo, pois tudo o que ele contém
não passa de fantasmagoria e ilusão.
Muito drástico.
Sim, mas depois dessa limpeza toda
sobra o mundo, Sofia, e muito mais vivo e de contornos mais nítidos do que
antes. Hume queria retornar ao modo como a criança experimenta o mundo, antes
de o espaço de sua mente ser tomado por pensamentos e reflexões. Você não disse
que muitos dos filósofos sobre os quais falamos vivem num mundo só deles e que
você se interessa mais pelo mundo real?
Sim, foi mais ou menos isso.
Pois bem, estas palavras poderiam ter
sido de Hume. Mas vamos acompanhar mais de perto o seu raciocínio.
Estou ouvindo. — A primeira coisa que Hume constata é que o homem possui impressões, de um lado, e idéias, de outro.
Por impressão ele entende a percepção
imediata da realidade exterior.
Por idéia ele entende a lembrança de
tal impressão.
—Você pode me dar um exemplo?
Se você queima a mão no fogão, o que
você experimenta é uma impressão imediata. Mais tarde pode ser que você se
lembre de que se queimou, e esta lembrança Hume a chama de idéia, noção. A
diferença entre elas é que a impressão é mais forte e mais viva do que a
lembrança que se tem dela mais tarde. Podemos chamar a impressão sensorial de
original, e a idéia, ou a lembrança que se tem dela, de uma cópia pálida do
original. Afinal, a impressão é a causa direta da idéia guardada na mente.
Até aqui deu para acompanhar.
Mas Hume também chama a atenção para o
fato de tanto a impressão quanto a idéia poderem ser ou simples ou complexas.
Você ainda se lembra do exemplo da maçã quando conversamos sobre Locke? Como
tal, a experiência direta de uma maçã é uma impressão complexa. Da mesma forma,
a idéia que a mente faz de uma maçã também é uma idéia complexa.
Desculpe-me interrompê-lo, mas isto é
mesmo importante?
Se é importante? E como! Embora os
filósofos tenham se ocupado de uma série de problemas aparentemente banais,
você não pode recuar diante da oportunidade de participar da construção de um
raciocínio. Na certa Hume teria concordado com Descartes quanto ao fato de um
raciocínio ter de ser construído a começar pela sua base.
Eu me rendo
Hume está preocupado com o fato de que
às vezes formamos idéias e noções complexas, para as quais não há
correspondentes complexos na realidade material. É dessa forma que surgem
noções falsas sobre coisas que não existem na natureza. Já citamos o exemplo do
anjo. E anteriormente falamos também do crocofante. Outro exemplo pode ser
Pégaso, o cavalo alado. Em todos esses exemplos, temos de admitir que foi nossa
mente, sozinha, que construiu essas coisas, juntando a impressão de um par de
asas com a impressão de um cavalo, por exemplo. Esses dois componentes foram
experimentados por nós um dia e entraram para o teatro da mente como impressões
“verdadeiras”. No fundo, a mente não inventou nada.
Ela só teve o trabalho de pegar tesoura e cola para construir essas noções
falsas.
Entendo. E entendo também que isto pode
ser muito importante.
Ótimo. Hume quer estudar cada noção,
cada idéia, a fim de verificar se sua composição encontra um correlato na
realidade. Nesse sentido, ele pergunta: de que impressões surgiu esta idéia? Em
primeiríssimo lugar, ele precisa decompor uma noção complexa em suas noções simples
constituintes. É assim que ele pretende chegar a um método crítico de análise
das idéias do homem. E também é assim que ele pretende “fazer uma faxina” nos nossos pensamentos e idéias.
Você teria um ou dois exemplos?
Na época de Hume, as pessoas tinham uma
noção muito clara do céu. Talvez você ainda se lembre das palavras de
Descartes, segundo as quais as noções claras e distintas seriam, em si,
garantia para a existência do correspondente desta idéia na realidade.
Já disse que não sou do tipo que se
esquece facilmente das coisas.
Não é difícil ver que a noção de “céu”
é
uma noção
extremamente complexa. Vamos citar apenas alguns elementos: no “céu”
existem um “portão de pérolas”, “ruas
de ouro”,
“exércitos de anjos” etc. etc. E podemos ir mais além em nosso trabalho de decomposição dos elementos em seus fatores
constituintes, pois também o “portão de pérolas”, as “ruas de ouro” e os “exércitos
de anjos”
são
noções
complexas. Somente quando nos damos conta de que nossa noção complexa de “céu”
se compõe
de noções
simples tais como “portão”, “pérola”, “rua”, “ouro”, “figuras
humanas vestidas de branco”
e “asas” é que podemos nos perguntar se algum dia já experimentamos na realidade essas “impressões simples”. —
E na verdade já
as experimentamos. Só
que depois nós
as combinamos para formar uma imagem onírica.
Exatamente. Pois quando sonhamos,
usamos tesoura e cola, por assim dizer.
Para Hume, porém, todo o material que
usamos para compor nossas imagens oníricas chegou um dia à nossa consciência
por meio de impressões simples. Uma pessoa que nunca viu ouro não consegue
imaginar o que seja uma rua de ouro.
Muito inteligente da parte dele. E
quanto à “noção clara de Deus”, de Descartes?
Também para isto Hume tem uma resposta.
Digamos que, para nós, Deus é uma criatura infinitamente inteligente, sábia e
boa. Temos aí, portanto, uma noção complexa formada por algo infinitamente
inteligente, infinitamente sábio e infinitamente bom. Se nunca tivéssemos
experimentado a inteligência, a sabedoria e a bondade, não poderíamos ter tal
conceito de Deus. E pode ser também que nossa imagem de Deus nos fale de um pai
severo, mas justo. Quer dizer, outra noção complexa composta por “pai”, “severo” e “justo”. E assim por diante. Depois de Hume, muitos críticos da religião chamaram a atenção para o fato de tal noção de Deus ser atribuída ao modo como
nós, quando crianças, “experimentamos” nosso próprio pai. Para esses críticos, a noção de um pai levou à noção de um Pai do Céu.
—
Talvez isto seja verdade. Mas eu nunca aceitei que Deus fosse necessariamente
um homem. E para compensar isto, minha mãe às
vezes diz “pelo
amor da Deusa”,
ou coisa parecida.
Portanto, Hume quer atacar todo e
qualquer pensamento ou idéia que não possa ser atribuído a uma impressão
sensorial correspondente. Ele costumava dizer que queria banir para bem longe
esse absurdo que durante tanto tempo dominara o pensamento metafísico, acabando
por condená-lo ao descrédito. Mas também na vida cotidiana empregamos conceitos
complexos, sem nos perguntarmos se eles têm alguma validade. É o caso, por
exemplo, da noção de um Eu, ou de um núcleo da personalidade. Foi esta a noção
que serviu de base para a filosofia de Descartes. Ela foi a noção clara e
nítida sobre a qual ele construiu toda a sua filosofia.
Espero que Hume não tenha tentado negar
que eu sou eu, pois nesse caso ele não passaria de um cabeça-oca.
Sofia, se eu pudesse escolher uma única
coisa para você aprender de todo este curso de filosofia, eu diria para você
aprender a não tirar conclusões precipitadas.
Continue.
Não… você mesma pode aplicar o método de Hume para analisar o que
entende por seu eu.
Nesse caso preciso começar perguntando
se a noção de eu é
simples ou complexa.
E você tem uma resposta para esta
pergunta?
Bem, tenho de admitir que me sinto
extremamente complexa. Por exemplo, no que se refere ao humor, sou muito
inconsistente. E também acho difícil decidir por alguma coisa. Além disso,
posso gostar de uma pessoa hoje e detestá-la amanhã.
Sua noção de “eu” é
complexa, portanto.
Certo. Em seguida tenho de perguntar se
tenho uma impressão complexa correspondente a esta noção complexa de “eu”. E acho que tenho. Acho que sempre tive.
Isso faz de você uma pessoa insegura?
Não sei. É que estou mudando o tempo
todo. Por exemplo, não sou hoje a mesma Sofia de quatro anos atrás. Meu humor e
a forma como eu mesma me vejo modificam-se de um minuto para outro. É como se
de repente eu passasse a ser outra pessoa, completamente diferente.
Quer dizer que é falsa a sensação de
que nossa personalidade possui um núcleo constante. Nossa noção de eu
compõe-se, na verdade, de uma longa cadeia de impressões isoladas, que nunca
conseguimos vivenciar simultaneamente. Hume fala de um “feixe de diferentes conteúdos de consciência, que se sucedem numa rapidez
inimaginável
e que estão
em constante fluxo e movimento”.
Nossa mente seria, então,
uma espécie
de teatro, no qual estes diferentes conteúdos se sucedem em suas entradas e saídas de cena, e
se misturam numa infinidade desordenada de posições e de tipos. Para Hume,
portanto, o homem não
possui uma base de personalidade, atrás ou abaixo da qual se desenrola a cena de que são atores as percepções e as sensações. É como as imagens numa tela de cinema: elas se
alternam tão rapidamente que não vemos que o filme de compõe de imagens
isoladas. Na verdade, essas imagens não estão conectadas. O filme é uma soma de
instantes.
Acho que desisto.
Isto significa que você desiste da
idéia de que sua personalidade tem um núcleo constante, imutável?
Acho que sim.
E um minuto atrás você tinha uma
opinião completamente diferente!
Bem, resta acrescentar que a análise de
Hume da consciência humana e a sua recusa em aceitar um núcleo constante e
imutável para a personalidade já tinham sido defendidas dois mil e quinhentos
anos antes, do outro lado do mundo.
Por quem?
Por Buda.
É muito intrigante como os dois se
expressam de forma parecida.
Buda considerava a vida humana uma
sucessão ininterrupta de processos físicos e mentais, que modificavam as
pessoas a cada momento. O bebê de colo não é a mesma pessoa em idade adulta;
hoje não sou o mesmo de ontem. Buda pregava que não posso dizer que alguma
coisa me pertença, assim como não posso dizer que este sou eu. Não há,
portanto, um eu, e a personalidade não possui um núcleo rígido, imutável.
Sim, a semelhança com Hume é
surpreendente.
Como conseqüência direta da noção de um
eu imutável, muitos racionalistas consideravam evidente o fato de o homem
possuir uma alma imortal.
Mas isto também é uma noção falsa?
Pelo menos é o que dizem Hume e Buda.
Você sabe o que dizem que Buda teria dito a seus seguidores pouco antes de
morrer?
Não. Como posso saber?
Todas as coisas complexas estão condenadas à decadência.” Hume poderia ter dito a mesma coisa. Ou mesmo Demócrito. Seja como for, sabemos que Hume
rejeitou toda e qualquer tentativa de provar a imortalidade da alma ou a existência de Deus. Isto não significa que ele considerava
impossíveis ambas as coisas; significa apenas que considerava um absurdo
racionalista achar que seria possível provar a fé religiosa com a razão humana.
Hume não era cristão; também não era um ateu convicto. Ele era o que chamamos de
agnóstico.
E o que significa isto?
Um agnóstico é uma pessoa que não sabe
se Deus existe. Em seu leito de morte, Hume recebeu a visita de um amigo que
lhe perguntou se ele acreditava numa vida após a morte. Contam que Hume
respondeu que também era possível um pedaço de carvão ser atirado ao fogo e não
se queimar.
Entendo… —
Foi a resposta típica
de um homem que não
abria mão
da sua imparcialidade. Ele só
aceitava como verdade aquilo que podia experimentar pelos sentidos, mas todas
as demais possibilidades continuavam em aberto.
Hume não rejeitava nem a fé em Jesus
Cristo, nem a crença em milagres. Só que em ambos os casos trata-se de crença e
não de razão. Podemos dizer que os últimos elos que ligavam a crença ao
conhecimento foram quebrados pela filosofia de Hume.
Você disse que ele não rejeitou
categoricamente a idéia do milagre. — O que também não
significa que ele acreditava em milagres.
Em muitas passagens, Hume afirma que os
homens têm evidentemente uma forte necessidade de acreditar em acontecimentos
que hoje chamaríamos de “sobrenaturais”. Só que todos os milagres de que ouvimos falar
aconteceram em algum lugar distante de onde estamos, ou então há muitos, muitos anos. Hume só se recusa a acreditar em milagres
porque nunca experimentou um milagre. Da mesma forma, e inversamente, ele
também nunca experimentou o fato de que milagres não acontecem.
Explique melhor.
Hume chama de milagre a um evento que
pressupõe a ruptura das leis da natureza. Mas também não podemos afirmar que
experimentamos as leis da natureza. Podemos experimentar, isto sim, que uma
pedra cai no chão quando a soltamos. Da mesma forma, se ela não caísse,
poderíamos experimentar o fato de ela não cair.
Eu chamaria isto de milagre, ou então
de algo sobrenatural.
Quer dizer que você acredita em duas
naturezas: uma natureza e uma “sobrenatureza”. Será que com isto você não
está
tomando o caminho de volta ao discurso racionalista?
Pode ser, mas acho que a pedra cai no chão
toda a vez que a soltamos.
E por quê?
Agora você está sendo impiedoso.
Não estou não, Sofia. Para um filósofo
nunca é errado fazer perguntas. Pode ser que este seja justamente o ponto mais
importante da filosofia de Hume. Responda-me: como você pode ter tanta certeza
de que a pedra sempre cai no chão?
É que eu já vi isto tantas vezes que
tenho certeza absoluta.
Hume diria que você já experimentou
muitas vezes que uma pedra cai no chão quando a soltamos. Só que você não
experimentou o fato de que ela irá sempre cair.
Em geral dizemos que a pedra cai ao
solo por força da gravidade. Só que nós nunca experimentamos esta lei. Tudo o
que experimentamos é que as coisas caem.
E não é a mesma coisa?
Não exatamente. Você disse que acredita
que a pedra irá sempre cair porque já viu isto muitas vezes. E é exatamente
isto que preocupa Hume.
Você está tão acostumada com um evento
se seguindo ao outro que acha que ele vai acontecer todas as vezes que você
soltar uma pedra. É assim que surgem as noções do que chamamos de “leis imutáveis da natureza”.
Será que ele realmente acha possível
que uma pedra não caia no chão quando a soltarmos?
Na certa ele estava tão convencido
quanto você de que a pedra cairia no chão a cada nova tentativa. Mas ele apenas
chama a atenção para o fato de não termos experimentado o porquê de as coisas
serem assim.
Não estamos de novo nos afastando um
pouco dos bebês e das flores?
Não, ao contrário. Você pode muito bem tomar as crianças como testemunhas para as afirmações de Hume. Quem você acha que ficaria mais surpreso se a
pedra flutuasse no ar por um ou dois segundos, você ou um bebê de um ano?
Eu ficaria mais surpresa.
E por que, Sofia?
Talvez porque eu entenda melhor do que
a criança que isto contraria a natureza.
E por que a criança não entende isto?
Porque ela ainda não aprendeu o que é a
natureza.
Ou porque a natureza ainda não se
tornou um hábito para ela.
Entendo o que você quer dizer. Hume
queria levar as pessoas a observar melhor as coisas.
Vou lhe dar uma tarefa: se você e um
bebê assistirem juntos a um grande número de mágica, um número de levitação,
por exemplo, quem você acha que se divertiria mais com o número?
Acho que… eu.
E por quê?
Porque eu saberia que o que vejo é
impossível.
Muito bem. A criança não acha graça no
fato de a levitação contrariar as leis da natureza, simplesmente porque ela
ainda não as conhece.
Sim, acho que é por isso mesmo.
E ainda estamos no ponto crucial da
filosofia da experiência de Hume. Ele teria acrescentado que a criança ainda
não se tornou escrava de suas expectativas. A criança tem, portanto, menos
preconceitos do que você. Podemos perguntar até mesmo se a criança não seria o
maior filósofo.
É que uma criança não possui opiniões
preconcebidas.
E isto, minha querida Sofia, é a maior
virtude da filosofia. A criança experimenta o mundo tal como ele é, sem acrescentar
coisas ao que experimenta.
Sempre me sinto muito mal quando
reconheço que tenho algum preconceito.
Quando Hume aborda a questão da força
do hábito, ele se concentra na chamada lei da causa. Segundo esta lei, tudo o
que acontece precisa ter uma causa. Hume cita o exemplo de duas bolas de bilhar.
Quando você empurra com o taco uma bola preta para cima de uma bola branca que
estava em repouso, o que acontece com a bola branca?
Quando a preta atinge a branca, a
branca começa
a se mover.
E por que ela começa a se mover?
Porque foi atingida pela bola preta.
Neste caso, dizemos que o impacto da
bola preta é
a causa do início
do movimento da bola branca. Mas não devemos nos esquecer de que só podemos
falar com certeza sobre coisas que experimentamos.
Eu mesma já experimentei isto várias vezes.
É que a Jorunn tem uma mesa de bilhar no porão.
Hume diz que você só experimentou o
fato de que a bola preta bate na branca e que a branca começa a rolar sobre a
mesa, e não a causa em si do movimento da bola branca. Você experimentou o fato
de um acontecimento se suceder temporalmente ao outro, mas não experimentou que
o segundo evento ocorre por causa do primeiro.
Esta não é uma diferença sutil demais?
Não, é uma coisa muito importante. Hume
insiste em que a expectativa de que um evento se suceda ao outro não está nas
coisas em si, mas em nossa mente. Novamente, a criança não arregalaria os olhos
de espanto se uma bola atingisse a outra e ambas ficassem paradas sobre a mesa.
Quando falamos de “leis da natureza” ou de “causa e efeito” estamos falando na verdade de hábitos humanos e não de algo racional. As leis da natureza
não são racionais nem irracionais. Elas simplesmente são. A expectativa de que
a bola branca de bilhar entre em movimento quando atingida pela preta não é,
portanto, uma coisa inata. Não nascemos com expectativas já prontas acerca de
como o mundo é, ou de como as coisas se comportam no mundo. O mundo é como é, e
nós vamos experimentando isto pouco a pouco.
Começo a ter novamente a sensação de
que isto tudo não é assim tão importante.
Mas isto pode ser importante quando,
movidos por nossas expectativas, somos tentados a tirar conclusões
precipitadas. Hume não rejeita o fato de existirem leis naturais imutáveis. Só
que como não somos capazes de experimentar tais leis em si, podemos facilmente
tirar conclusões erradas.
Você poderia citar alguns exemplos?
O fato de eu ver uma manada de cavalos
pretos não significa que todos os cavalos sejam pretos.
Nesse ponto você tem razão.
E mesmo o fato de durante toda a minha
vida eu só ter visto corvos pretos não significa que não haja corvos brancos.
Para um filósofo e para um cientista pode ser importante provar que não existem
corvos brancos. Se quiser, você pode até dizer que a procura por um corvo
branco é a tarefa mais importante de toda a ciência.
Entendo.
Quando se trata da relação entre causa
e efeito, é provável que muitos considerem o raio a causa do trovão, pois o
trovão sempre se segue ao raio. Este exemplo não é muito diferente do exemplo
das bolas de bilhar. Mas será que o raio é mesmo a causa do trovão?
Não exatamente.
De fato, o raio e o trovão acontecem ao mesmo tempo. Pois tanto
o raio quanto o trovão
são
conseqüências
de uma descarga elétrica.
Mesmo tendo sempre experimentado que o trovão se segue ao raio, isto não significa que o raio é a causa do trovão. Na verdade, ambos
são provocados por um terceiro fator.
Entendo.
Um empírico de nosso século [XX],
Bertrand Russell, deu um exemplo um pouco mais grotesco: um pintinho, que todos
os dias vive a experiência de ganhar comida quando o avicultor vem ao
galinheiro, vai acabar tirando a conclusão de que existe uma relação entre os
passos do avicultor no galinheiro e a comida na tigela.
Mas um dia ele não aprende a achar seu
próprio alimento?
Um dia o avicultor entra no galinheiro
e torce o pescoço
do frango.
Ui, que horror!
O fato de as coisas se sucederem
temporalmente às outras não significa, portanto, que exista uma relação de
causa e efeito entre elas. Uma das mais importantes tarefas da filosofia é
advertir as pessoas quanto ao perigo das conclusões precipitadas. Além disso,
as conclusões precipitadas podem levar a várias formas de superstição.
Como?
Você vê um gato preto atravessando a
rua. Neste mesmo dia, um pouco mais tarde, você tropeça, cai e quebra o braço.
Isto não significa que exista uma relação de causa e efeito entre os dois
eventos. Também na ciência é muito importante não tirar conclusões
precipitadas. Embora muitas pessoas fiquem curadas depois de tomar determinado medicamento,
isto não significa que foi o medicamento que as curou. Por isso precisamos ter
um grupo de controle formado por indivíduos que acreditam estar tomando o mesmo
medicamento, quando na verdade estão tomando bolinhas de farinha e água. Se
estas pessoas também se curarem, então deve haver um terceiro fator que as
curou: por exemplo, a fé no poder de cura do medicamento.
Acho que aos poucos estou entendendo o
que significa empirismo.
Também no âmbito da ética e da moral
Hume se opôs ao pensamento racionalista. Os racionalistas consideravam uma
qualidade inata da razão humana o fato de ela poder distinguir entre certo e
errado. Esta idéia do chamado direito natural nós já a encontramos em muitos
filósofos, de Sócrates a Locke. Mas Hume não acredita que a razão determina o
que dizemos e fazemos.
Se não é ela, o que seria?
Nossos sentimentos. Quando você decide
ajudar um necessitado, foram os sentimentos que levaram você a isto, e não a
razão.
E se eu não tiver vontade de ajudar?
Também nesse caso os sentimentos são
decisivos. Não ajudar um necessitado não é uma coisa nem racional, nem
irracional, mas pode ser uma coisa impiedosa.
Contudo, certamente deve haver um
limite em algum lugar. Todos nós sabemos que não é certo matar uma pessoa.
Segundo Hume, todos nós temos um sentimento acerca do
bem-estar e do mal-estar dos outros. Temos, portanto, a capacidade de sentir
compaixão pelos outros. Mas nada disso tem a ver com a razão.
Não sei se estou bem certa sobre isto.
Nem sempre é um ato de irracionalidade
tirar alguém de nosso caminho, Sofia. Quando se quer conseguir alguma coisa,
esta pode ser uma boa forma de se atingir este objetivo.
Francamente! Protesto!
Então me explique por que não podemos
eliminar alguém que nos estorva.
O outro também ama a vida. Por isso não
podemos eliminá-lo.
Isto é uma explicação lógica?
Não faço a menor idéia.
O que você fez foi derivar de uma
oração descritiva, como “O
outro também
ama a vida”,
uma oração
normativa: “Por
isso não
podemos eliminá-lo.” Do ponto de vista estritamente
racional, isto é
um absurdo. Do mesmo modo, do fato de que muitas pessoas sonegam impostos você poderia concluir que também pode e deve sonegar. Hume deixou
claro que as conclusões
não
devem ser tiradas saltando-se de sentenças do ser para sentenças do dever ser.
Não obstante, isto acontece com muita freqüência, inclusive em artigos de
jornal, programas de partidos e discursos de parlamentares. Você gostaria de
ouvir alguns exemplos?
Sim.
Cada vez mais pessoas viajam de avião.
Por esta razão, é preciso construir mais aeroportos.” Você acha a conclusão convincente?
Não. É uma conclusão idiota, pois temos
de pensar também no meio ambiente. Pessoalmente, acho que seria preferível
ampliar a rede de trilhos das ferroviárias.
Veja outro exemplo: “A ampliação dos poços de petróleo vai aumentar em 10% o padrão de vida da população. Por esta razão, é preciso abrir o quanto antes novos poços de petróleo”.
Absurdo. Também neste caso é preciso
pensar no meio ambiente. Além disso, nosso padrão de vida já é elevado o
suficiente.
Outro exemplo muito comum: “Esta lei foi promulgada pelo Parlamento
e por isso todos os cidadãos
têm
de respeitá-la”. Acontece que não são raros os casos em que a observância de leis que
são “baixadas” contraria as convicções mais profundas das pessoas.
Entendo.
Vimos, portanto, que não podemos
demonstrar por meio da razão como devemos nos comportar. Quando agimos cientes
de nossa responsabilidade, isto não significa que estamos aguçando nossa razão,
mas que estamos aguçando nossos sentimentos pelo bem-estar dos outros.
Hume costumava dizer que, do ponto de
vista da razão, preferir a destruição do mundo a um arranhão no dedo era algo
que se justificava.
Que afirmação mais terrível!
E pode ser mais terrível ainda. Você
sabe que os nazistas eliminaram milhões de judeus. O que você diria que não
estava certo com os nazistas: sua razão ou o seu sentimento?
Acho que não havia alguma coisa certa
era com o sentimento deles.
Pois é. Em muitos casos, tratava-se de
pessoas mentalmente sãs. Aliás, não são raras as vezes em que encontramos um
frio calculismo por trás de decisões as mais insensíveis. Depois da guerra,
muitos nazistas foram condenados, mas não por terem sido irracionais. Foram
condenados por sua crueldade. E o oposto também é possível: acontece de pessoas
mentalmente perturbadas serem absolvidas por seus crimes. Chamamos isto de “inimputabilidade no momento da ação”. Por outro lado, nunca ninguém foi absolvido por “falta de sentimento” no momento do crime.
Só faltava essa!
Mas não precisamos recorrer aos
exemplos mais grotescos. Depois de uma grande enchente, por exemplo, quando há
milhares de desabrigados precisando de ajuda, são os nossos sentimentos que
decidem se vamos ajudar ou não. Se fôssemos pessoas insensíveis e deixássemos
esta decisão à “frieza
da razão”, poderíamos pensar que num mundo que sofre com a
superpopulação
até
que seria bom se alguns milhares de pessoas morressem.
Fico furiosa quando me passa pela
cabeça que alguém possa pensar assim.
E neste caso não é a sua razão que fica
furiosa. —
Acho que podemos parar por aqui.
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