O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte




Márcia Junges e Leslie Chaves| Tradução: Vanise Dresch 


Figura subjetiva do capitalismo contemporâneo, o “homem endividado” é uma das engrenagens que, junto do Estado e do sistema político, colaboram para a produção e reprodução da máquina de guerra do Capital, afirma Maurizio Lazzarato

Antes as dívidas eram contraídas junto à comunidade, aos deuses ou antepassados. Hoje, nosso endividamento se dá junto ao “deus” Capital, provoca Maurizio Lazzarato na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. “O ‘homem endividado’ é submetido a uma relação de poder credor-devedor que o acompanha durante toda a vida, desde o nascimento até a morte”. E completa: “Através das dívidas soberanas, toda a população acaba endividada e deve pagá-las, qualquer que seja sua situação: desempregado, trabalhador, aposentado, etc. Carregamos dentro de nossos bolsos a relação credor/devedor, pois ela está inscrita no cartão de crédito”.

Para Lazzarato, o que hoje se verifica não é uma hegemonia da economia sobre a política, mas, antes, uma “reconfiguração da relação entre economia e política. O capital (e não a economia!) construiu uma máquina de guerra, da qual o Estado e o sistema político são apenas articulações. O Estado e o sistema político intervêm para a produção e a reprodução da máquina de guerra do Capital, não sendo realidades alheias ao seu funcionamento, e sim engrenagens essenciais”. A moeda converteu-se no próprio capital, assinala, a “forma mais abstrata, mais móvel e mais eficaz do mandamento do capitalismo. Ela dita regras, condutas, comportamentos a populações inteiras, como está acontecendo na Grécia e em toda a Europa atualmente”.

Lazzarato é sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. Participa de ações e reflexões sobre os “intermitentes do espetáculo” no âmbito da CIP-idf (Coordination des intermittents et précaires d’Île-de-France), onde coordena uma “pesquisa-ação” sobre o estatuto dos trabalhadores e profissionais do espetáculo e do mundo das artes, além de outros trabalhadores precários. Junto com Antonio Negri é um dos fundadores da revista Multitudes.

De suas obras publicadas destacamos Trabalho imaterial (Rio de Janeiro: DP&A, 2001), escrita com Toni Negri, e La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale (Paris: Editions Amsterdam, 2011). Lazzarato estará na Unisinos como conferencista do V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica, III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação e XVII Simpósio Internacional IHU Saberes e práticas na constituição dos sujeitos na contemporaneidade. 

No dia 23 de setembro, ele proferirá a conferência Noopolítica e trabalho imaterial.

Confira a entrevista.



IHU On-Line - Em que medida podemos falar de uma financeirização que atinge todos os setores de nossa vida? Quais são suas implicações fundamentais?

Maurizio Lazzarato - O neoliberalismo governa através de uma variedade de relações de poder: credor-devedor, capital-trabalho, welfare -usuário, consumidor-empresa, etc. Mas a dívida é uma relação de poder universal, uma vez que todo mundo está incluído nela: até mesmo aqueles que são pobres demais para terem acesso ao crédito devem pagar juros a credores pelo reembolso da dívida pública; até mesmo os países pobres demais para se dotarem de um Estado de bem-estar social devem pagar suas dívidas. 

Através das dívidas soberanas, toda a população acaba endividada e deve pagá-las, qualquer que seja sua situação: desempregado, trabalhador, aposentado, etc. Carregamos dentro de nossos bolsos a relação credor/devedor, pois ela está inscrita no cartão de crédito. Cada compra paga com cartão de crédito nos introduz no circuito financeiro. 

A relação credor-devedor atinge a população atual em sua totalidade, mas também as populações futuras. Os economistas nos dizem que cada novo bebê francês já nasce com 22 mil euros em dívidas. Não é mais o pecado original que nos é transmitido no nascimento, mas a dívida contraída pelas gerações anteriores. O “homem endividado” é submetido a uma relação de poder credor-devedor que o acompanha durante toda a vida, desde o nascimento até a morte. Se, outrora, nossas dívidas eram para com a comunidade, os deuses, os antepassados, agora, estamos endividados junto ao “deus” Capital.



IHU On-Line - A partir do conceito de economia da dívida, como analisa a hegemonia da economia sobre a política em nosso tempo? 

Maurizio Lazzarato - Não há hegemonia, mas, sim, uma reconfiguração da relação entre economia e política. O capital (e não a economia!) construiu uma máquina de guerra, da qual o Estado e o sistema político são apenas articulações. O Estado e o sistema político intervêm para a produção e a reprodução da máquina de guerra do Capital, não sendo realidades alheias ao seu funcionamento, e sim engrenagens essenciais. 



IHU On-Line - Como se pode crer na veracidade de uma entidade virtual como o dinheiro que é negociado na bolsa de valores, por exemplo? Como é possível compreender que tal recurso comande decisões de empresas, governos e nações?

Maurizio Lazzarato - A moeda não deriva da troca, da simples circulação, da mercadoria; ela também não constitui o sinal ou a representação do trabalho, mas expressa uma assimetria de forças, um poder de prescrever e impor modos de exploração, de dominação e de sujeição futuros. A moeda é, primeiramente, moeda-dívida, criada ex nihilo , sem nenhum equivalente material fora de uma potência de destruição/criação das relações sociais e, notadamente, dos modos de subjetivação.

A moeda é o próprio capital, a forma mais abstrata, mais móvel e mais eficaz do mandamento do capitalismo. Ela dita regras, condutas, comportamentos a populações inteiras, como está acontecendo na Grécia e em toda a Europa atualmente.



IHU On-Line - Poderia recuperar alguns aspectos da contribuição de Nietzsche para compreendermos a genealogia da dívida?

Maurizio Lazzarato - Nietzsche já havia dito o essencial acerca deste assunto. Na segunda dissertação de Genealogia da Moral (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), ele arrasa de uma só vez todas as ciências sociais: a formação da sociedade e o adestramento do homem (extrair do homem-fera um animal adestrado e civilizado, um animal doméstico em suma”) não resultam nem das trocas econômicas (indo de encontro à tese apresentada por toda a tradição da economia política, desde os fisiocratas até Marx , passando por Adam Smith ), nem das trocas simbólicas (indo de encontro às tradições teóricas antropológicas e psicanalíticas), mas, sim, da relação entre credor e devedor. Nietzsche faz, assim, do crédito o paradigma da relação social, descartando toda e qualquer explicação “à moda inglesa”, ou seja, pela troca ou o interesse.



IHU On-Line - Qual é a importância do mecanismo da dívida no capitalismo financeirizado?

Maurizio Lazzarato - Aquilo a que as mídias chamam de “especulação” constitui uma máquina de captura ou predação da mais-valia nas condições da acumulação capitalista atual, na qual é impossível distinguir a renda do lucro. O processo de mudança das funções de direção da produção e de propriedade do capital, que começou a se desenvolver na época de Marx, atingiu, hoje, sua forma plena. O “capitalista realmente ativo” transforma-se, já dizia Marx, em “um simples dirigente e administrador do capital”, e os “proprietários do capital”, em capitalistas financeiros ou beneficiários de rendas. A finança, os bancos, os investidores institucionais não são simples especuladores, mas os (representantes dos) “proprietários” do capital, enquanto estes, que eram, outrora, os “capitalistas industriais”, os empreendedores que arriscavam seus próprios capitais, são reduzidos a serem simples “funcionários” (“assalariados” ou pagos em ações) da valorização financeira.



IHU On-Line - Como pode ser definida a figura do homem endividado? Em que aspectos essa figura está aprisionada ao sistema econômico vigente?

Maurizio Lazzarato - A economia neoliberal é uma economia subjetiva, isto é, uma economia que requer e gera processos de subjetivação cujo modelo deixou de ser aquele, como na economia clássica, do homem que realiza trocas e do homem que produz. Durante as décadas de 1980 e 1990, esse modelo foi representado pelo empreendedor (de si mesmo), segundo a definição de Michel Foucault , que resumia nesse conceito a mobilização, o engajamento e a ativação da subjetividade pelas técnicas de gerenciamento empresarial e de governo social. Desde o início das sucessivas crises financeiras, a figura subjetiva do capitalismo contemporâneo parece antes ser representada pelo “homem endividado”. Essa condição, que já existia, uma vez que está no cerne da estratégia neoliberal, ocupa agora todo o espaço público. Todas as designações da divisão social do trabalho nas sociedades neoliberais (“consumidor”, “usuário”, “trabalhador”, “autoempreendedor”, “desempregado”, “turista” etc.) são atravessadas pela figura subjetiva do “homem endividado”, a qual metamorfoseia todas as figuras anteriores em consumidor endividado, usuário endividado e, por fim, como está acontecendo na Grécia, em cidadão endividado. Se não é a dívida individual, é a dívida pública que, literalmente, pesa na vida de cada um, já que cada um deve assumi-la.



IHU On-Line - Em que aspectos a recusa do pagamento das dívidas a países credores é uma forma de resistência contra um dispositivo de poder econômico? Nesse sentido, como analisa o caso da Grécia?

Maurizio Lazzarato - Para fazerem da dívida um terreno de confronto estratégico, os governados devem efetuar uma ruptura subjetiva, condição indispensável para saírem de sua postura de governados. Para enfrentar os credores, não como governantes da economia do mundo, mas como adversários, os governados devem passar por uma transformação subjetiva, realizando uma reconversão de si mesmos. Desse ponto de vista, a Europa é, em ordem cronológica, o último palco, depois da Ásia e da América Latina, dessas modalidades de governo pela dívida, de sua reversibilidade e de seu modo de subjetivação.

Na “crise” atual, somente a longa sequência das mobilizações contra as políticas da dívida na Grécia efetuou essa ruptura subjetiva nos governados, transformando as relações de poder em confrontos estratégicos. Essas transformações subjetivas modificaram profundamente o contexto no qual se desenrolam a ação das políticas da dívida e as lutas (as eleições também) que a ela se opõem. O “governo” recentemente eleito na Grécia toma decisões no novo contexto de confrontos estratégicos determinado pela ruptura subjetiva, e não mais, como os governos anteriores, no contexto de oposição governantes/governados. Em países como Itália, França, Portugal e outros, as resistências, as oposições, as lutas permanecem dentro da dinâmica governantes/governados. 

A primeira tarefa da luta contra a dívida é impor o confronto estratégico aos credores, que, ao mesmo tempo em que travam a guerra civil por outros meios, negam definitivamente sua existência. O axioma de toda governamentalidade é negar a existência da guerra civil, dos confrontos estratégicos. ■

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