Pesquisadora da UFRGS é premiada por cartografia de territórios negros nos mapas históricos de Porto Alegre

Pesquisadora da UFRGS é premiada por cartografia de territórios negros nos mapas históricos de Porto Alegre




Areal da Baronesa, Ilhota, Parque da Redenção, Bacia do Mont’Serrat e Colônia Africana – atual bairro Rio Branco. Esses são alguns dos territórios de Porto Alegre onde entre os anos 1800 e 1970 existiram espaços de moradia, de trabalho, de manifestações de práticas culturais, como carnavais e batuques, e de lazer das populações negras da Capital. Apesar desse conhecimento, informações mais detalhadas sobre esses territórios ainda são inexistentes e os povos negros seguem ocultados das narrativas oficiais sobre o processo de construção da Capital.

Para mudar o cenário de invisibilização desses espaços, a professora de Geografia da Prefeitura Municipal de Porto Alegre Daniele Vieira decidiu usar seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para elaborar uma cartografia dos locais que foram ocupados pela população negra na cidade e recuperar a história desses territórios. Segundo ela, a falta de representação visual em mapas faz com que esses espaços fiquem perdidos dentro do imaginário da cidade ou até mesmo tenham localizações distorcidas e minimizadas em relação à importância que tiveram no processo de construção do espaço urbano porto-alegrense.
“Eu sou geógrafa e queria saber onde esses territórios estavam localizados, porque eu tinha informações muito difusas. Tinham perguntas como: onde eles estavam, que área eles ocupavam dentro da cidade e quando eles existiram. Não sabia se era no século 19 ou no século 20, se eles duraram cinco ou 40 anos. As pessoas sempre falavam, por exemplo, que a Ilhota era ‘mais ou menos na região do [Ginásio] Tesourinha’. Tá, sim, mas eu me perguntava o quanto na região do Tesourinha. Era uma rua ou eram duas quadras? Conforme eu fui pesquisando, vi que alguns espaços chegavam a ser praticamente um bairro inteiro”, relatou Daniele ao Sul21.
Daniele durante o recebimento do Prêmio de melhor dissertação nacional na área Planejamento Urbano e Regional. Foto: Arquivo pessoal
De acordo com a professora, a contribuição principal da sua dissertação, que recebeu o nome de “Territórios negros em Porto Alegre (1800-1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano”, foi mostrar para as pessoas que onde hoje existem certos bairros na cidade, antigamente existiram territórios negros que foram importantes para a cultura e para a história da população negra da Capital. “A principal contribuição é que as pessoas consigam enxergar que onde hoje tem o Rio Branco existia um bairro chamado Colônia Africana, que as pessoas consigam ver onde estão esses espaços; saber que o Mont’serra era majoritariamente negro e saber o que acontecia nesses espaços”, disse.
Daniele afirma que talvez tenha sido esse o motivo que fez com que seu trabalho fosse premiado duas vezes neste ano. Em maio, a dissertação ganhou o XI Prêmio Brasileiro “Política e Planejamento Urbano Regional”, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur), na categoria Dissertação de Mestrado. Já no dia 5 de setembro, a pesquisa recebeu honrosa de dissertação do Prêmio Maurício de Almeida Abreu, na área de Geografia Humana, durante o XIII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege).

Ruptura com a narrativa de marginalização

Embora tenham existidos outros locais de moradia da população negra na Capital desde o período colonial, a professora decidiu abordar em sua dissertação somente esses quatro territórios e a região do Centro Histórico por se tratar de locais onde essas pessoas viviam, mas também por todo o contexto histórico-cultural que os cerca. “Não se caracterizaram só por serem locais de moradia de populações negras, mas devido às atividades que aconteciam ali, como carnaval, batuque, futebol, salões de baile”, explica Daniele.
Segundo a pesquisa da professora, os territórios negros em Porto Alegre foram submetidos a um “deslocamento para as bordas da cidade”, devido a processos de branqueamento da região central da cidade e de transformações do espaço urbano, como o início da modernização do espaço central, que aconteceu na virada do século 19 para o século 20, a remodelação do centro entre os anos de 1924 e 1937 e as grandes obras no entorno da região central, como a canalização do Arroio Dilúvio e o aterro da Praia de Belas, nos anos 1941 e 1970.
Uma das preocupações de Daniele ao longo do processo de construção de sua dissertação foi romper com a narrativa que aborda apenas os processos de expulsão das populações negras de seus territórios. “É muito mais fácil falar do deslocamento, da segregação e desses processos que já sabemos que aconteceram, que é a expulsão das populações pobres e negras para periferia, mas não era o que eu queria fazer. Eu queria falar desses territórios a partir deles mesmos e romper a narrativa de espaços enquanto oprimidos, segregados e subjugados”, explicou.
Nesse contexto, a professora afirma que seu trabalho procurou destacar a história desses territórios por meio das atividades e dos costumes que eram praticados pelas populações que ali viviam.
“As pessoas também estavam preocupadas com o exercício da intelectualidade. Então, eu queria marcar na memória das pessoas uma Porto Alegre negra a partir de referenciais positivos, que são o carnaval e o batuque, mas que também são berços de intelectuais negros. Quis mostrar a visualização da organização desses espaços a partir das pessoas que moravam neles”, afirmou Daniele.

Região Central

Para Daniele, algumas histórias foram as que mais lhe marcaram. Dentre elas está a da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada na Rua do Rosário, atual Rua Vigário José Inácio, no Centro Histórico. Segundo a professora, esse é um um dos espaços mais emblemáticos na história dos territórios negros que eram localizados na região central da cidade.
De acordo com a pesquisa da professora, a Igreja foi construída em 1818 pela irmandade ‘Os Irmãos do Rosário’, formada por cerca de 200 pessoas negras, entre livres e escravizados, a mais de 100 anos antes da abolição da escravatura no Brasil.
“A imagem que temos na cabeça é que pessoas negras no período da escravidão eram apenas escravas. Aí eu acabei me deparando com a história de que existiu um grupo de 200 pessoas negras formando uma irmandade, que uns 30 anos depois de sua formação criou essa igreja”, relata Daniele. Segundo a professora, a Irmandade do Rosário, além de gerir a Igreja, foi responsáveis por lutar pelo direito da comunidade negra durante o século 18, buscando elevar as condições de vida dessas populações.
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário existiu até as primeiras décadas do século 20. Em 1893, o prédio foi demolido para a construção da edificação que existe hoje no local, que também é chamada Igreja do Rosário. Na virada do século 20, a Irmandade do Rosário havia perdido força e, portanto, parou de gerir a igreja.
Ilhota
Na dissertação, Daniele relata que a região que era conhecida por Ilhota costumava ser uma “zona empobrecida, habitada por uma população majoritariamente negra”. “Circundada pelo Arroio Dilúvio tinha sua ligação com o entorno feita através de pontes de madeira. A Ilhota era uma pequena área, totalmente circundada por uma das curvas do Arroio Dilúvio, após o seu encontro com o Arroio Cascatinha”, diz o estudo da professora.
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A Ilhota ficava localizada no espaço onde hoje existe a Praça Garibaldi e a Avenida Ipiranga, assim como onde atualmente há a Avenida General Lima e Silva e a Avenida Getúlio Vargas. De acordo com Daniele, a origem da Ilhota remonta à 1905, período em que o Arroio Dilúvio ainda não havia sido canalizado e passava pelo bairro Cidade Baixa até desembocar na Ponte de Pedra. Nesse contexto, a região, que existia em uma zona de revelo baixo, era como uma ilha no meio de Porto Alegre e estava frequentemente sujeita a inundações, uma vez que era planície de alagamento do Arroio Dilúvio.
Foto: Reprodução
Daniele afirma que a canalização do Arroio Dilúvio foi o ponto principal para que a Ilhota deixasse de existir, uma vez que as obras geraram uma valorização econômica dos terrenos, afetando os alugueis locais. “A obra de retificação do canal do Arroio Dilúvio correndo alinhado pela Av. Ipiranga, fez desaparecer o Arroio que circundava a Ilhota. Essa mudança na fisionomia abriu caminho para a urbanização da área, o que foi acompanhado da remoção dos seus moradores”, afirmou a pesquisadora em sua dissertação.
Segundo Daniele, isso fez com que até o final da década de 1960 grande parte dos antigos moradores da Ilhota tenham sido removidos para o bairro Restinga, que fica à cerca de 26 km do centro de Porto Alegre, e com que a região da Ilhota deixasse de existir.

Areal da Baronesa

Assim como a Ilhota, o Areal da Baronesa também foi um território negro que foi impactado pela canalização do Arroio Dilúvio e o consequente aumento no valor dos alugueis.  Conforme a dissertação de Daniele, formavam o Areal da Baronesa as áreas que atualmente fazem parte dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus. A  professora aponta que a presença de moradores negros na região do Areal da Baronesa é datada de 1870.
O território era muito conhecido como um “bairro 100% carnavalesco” devido ao famoso carnaval que acontecia ali. “A animação do carnaval do Areal da Baronesa era tamanha que frequentemente ganhava destaque nas páginas dos jornais e revistas”, relata Daniele na dissertação.  Segundo a professora, ainda é possível visualizar nas avenidas e travessas da região o estilo de vida dos antigos moradores do local, uma vez que ele está “materializado nas casas antigas, nas relações de vizinhança, na resistente presença de “avenidas” e travessas, que são resquícios daquele Areal da Baronesa que a princípio já não existiria mais”.

Redenção

A Redenção passou a ter esse nome quando houve a libertação dos escravos no terceiro distrito de Porto Alegre, em 1884, conforme relata Daniele. Porém, a professora afirma que a nomenclatura não se trata de uma homenagem à abolição da escravatura, mas sim às pessoas que eram escravizadas e receberam a redenção ao serem libertos.
Na época, a Redenção era um terreno de várzea cercado por importantes locais de manifestações culturais do povo negro: o batuque da Mãe Rita, que foi uma das primeiras mães de santo de Porto Alegre, e os Batuques da Várzea, que aconteciam ao ar livre na região.
A pesquisa da professora aponta que o batuque da Mãe Rita acontecia nas imediações da esquina da atual Rua do Avaí com a Avenida João Pessoa. Já os batuques ao ar livre costumavam acontecer do outro lado da Redenção, no antigo Caminho do Meio, atual Avenida Osvaldo Aranha. O Campo do Bom Fim, que era um dos mais famosos, acontecia em frente à Capelinha do Bom Fim, que na época ainda estava em construção.
Foto: Reprodução
“A histórica relação do grupo negro com este espaço da cidade é tão marcante que o nome pelo qual continua a ser popularmente chamado – Parque da Redenção ou simplesmente Redenção – advém desta relação e resiste ao tempo. Embora a nomenclatura oficial do parque tenha sido alterada para Parque Farroupilha em 1935 (nas comemorações do centenário Farroupilha), este espaço continua sendo chamado de Redenção, rememorando a presença negra que ali conseguiu manter seus batuques”, afirmou Daniele em sua dissertação.

Mont’Serrat

Segundo a pesquisa de Daniele, o bairro Mont’Serrat foi um dos territórios negros da cidade de Porto Alegre na primeira metade do século 20 onde existiam casas de religião de matriz africana, salões de baile e apresentações de carnaval. De acordo com a professora, relatos apontam que chegava a existir sete casas de religião em uma mesma rua do território.
Por estar localizado em uma região cujo revelo era formado por uma parte baixa em seu centro e ladeado por partes altas, o território era conhecido por Bacia do Mont’Serrat. “Era como uma grande bacia no meio de duas grandes avenidas”, explicou Daniele.
Imagens na dissertação de Daniele mostram estilo das moradias da Colônia Africana e do atual bairro Mont’Serrat. Foto: Reprodução
Assim como outros territórios negros, o Bacia do Mont’Serrat deixou de existir em grande parte pelas transformações sécio econômicas pelas quais o bairro passou nas últimas décadas. “Mas ainda há uma presença negra que resiste a vertiginosa verticalização e elitização do bairro. Na atualidade o bairro é um dos mais “nobres” da cidade de Porto Alegre”, afirmou a professora na pesquisa.

Colônia Africana

A Colônia Africana foi um território negro que por cinco décadas existiu na região que hoje é chamada de Rio Branco e, além de espaço de moradia, era conhecido pelos carnavais realizados no local. De acordo com a pesquisa de Daniele, a Colônia iniciou na Rua Ramiro Barcelos estendendo-se até a Rua Maria, atual Avenida Coronel Lucas de Oliveira, no sentido oeste-leste e da Rua Castro Alves até a Avenida Protásio Alves, no sentido norte-sul.
“Colônia Africana tem sua ocupação inicial relacionada a famílias negras que ali se instalaram por volta da época da abolição da escravatura, perdurando até pelo menos os anos 40 do século XX”, relata Daniele na pesquisa.
Segundo a professora, relatos mostram que é provável que a Colônia Africana tenha surgido por volta do período abolicionista, “quando os negros libertos teriam se instalado nas bordas dos casarões do que hoje conhecemos por Av. Independência e chácaras existentes nas imediações do atual bairro Rio Branco”.
Conforme a pesquisa o território foi afetado pelo processo de aumento de impostos nas regiões das ruas Ramiro Barcelos e Mariente e, a medida que terrenos da Colônia Africana passavam a ser valorizados economicamente, os povos negros foram expulsos do local em que viviam ou tiveram que vender suas propriedades. Esse processo fez com que a Colônia Africana fosse deixando de existir e que, em 1913, a região passasse a ser chamada oficialmente de bairro Rio Branco.

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