Negligência disfarçada de conformismo...

Na quinta-feira, dia 6, o mundo relembra a explosão da bomba no porto japonês de Hiroshima, o primeiro artefato nuclear usado em uma guerra. 

A explosão destruiu a cidade e matou imediatamente entre 130 mil e 150 mil pessoas. 

Três dias depois, uma segunda bomba, em Nagasaki, selou o fim da Segunda Guerra. 

Somando os quatro meses que se seguiram, em Nagasaki morreram mais de 90 mil pessoas vitimadas por essa bomba.

Muito se discutirá sobre os horrores da guerra, a corrida armamentista (as superpotências acumulam quase 4 mil ogivas nucleares múltiplas vezes mais potentes do que as lançadas sobre o Japão) e, principalmente, sobre como a existência de uma arma tão mortífera mudou a nossa visão de mundo. Nos percebemos mais frágeis, mais impotentes às decisões dos poderosos, menos capazes de assegurar que nossos filhos terão dias melhores que os nossos.

Nesta semana também, o Brasil registrará oficialmente a morte número 100.000...

...mas por Covid-19. 

Entre agosto e setembro, os relatórios oficiais mostrarão que mais brasileiros morreram de Covid-19 do que japoneses em Hiroshima. Em outubro e novembro, devemos ultrapassar as 200 mil vítimas de Hiroshima e Nagasaki somadas. E muito pouco está sendo feito para evitar essa tragédia.

Na sexta-feira (31/07), em Bagé, um recém-recuperado Jair Bolsonaro respondeu assim às perguntas sobre o combate ao coronavírus: “Eu sabia que um dia ia pegar. Infelizmente, acho que quase todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do quê? Enfrenta!”, disse o presidente, após causar aglomeração, tirar a máscara e segurar crianças durante sua passagem pela cidade gaúcha para inaugurar uma escola cívico-militar e entregar as chaves de residências populares. “Lamento. Lamento as mortes. Morre gente todos os dias de uma série de causas. É a vida, é a vida.”

A negligência disfarçada de conformismo é a marca da política sanitária de Bolsonaro. Em julho, morreu mais gente por Covid-19 no Brasil do que em outro país (32.912 ante 23.851 nos EUA e 18.854 na Índia). Os gráficos de mortos no Brasil aumentam mês a mês e desde julho a média é de 7 mil vítimas a cada semana. É como se todo dia, repito todo dia, quatro aviões lotados caíssem, sem sobreviventes.

E tudo o que o presidente tem a dizer é “enfrenta”. E como o governo ajuda os brasileiros a enfrentar? Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) descobriu que o Ministério da Saúde gastou somente 29% do dinheiro que recebeu para as ações de combate ao coronavírus entre março o final de junho. Menos de R$ 12 bilhões de um total de R$ 40 bilhões aprovados pelo Congresso.

Seria possível supor que a dificuldade do governo em NÃO gastar as verbas em saúde é decorrente de burocracias. Mas como apontou a procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane, a desculpa não se sustenta. No dia 15 de julho, depois de o ministro Gilmar Mendes afirmar que o Exército poderia ser acusado de “genocídio” pela cumplicidade com a desastrosa gestão da pandemia, o Ministério liberou R$4,977 bilhões. Em um único dia o Ministério repassou para Estados mais do que havia liberado em um mês.

O relatório do TCU revelou ainda que o Ministério da Saúde passou semanas sem repassar nada aos Estados durante as duas trocas de ministros, não demonstrou quais os critérios de liberação e na repartição de verbas prejudicou o Pará e o Rio de Janeiro, governados por opositores ao presidente.

Em 25 de maio, quando os dados oficiais registravam 23,4 mil mortes por Covid-19, o comitê técnico do Ministério da Saúde alertou o general Eduardo Pazuello de que sem isolamento social o país poderia levar até dois anos para controlar a pandemia. Pazuello não apenas ignorou o alerta, como seguiu a ordem presidencial de incentivar o fim das quarentenas e pedir a reabertura das empresas.

Desde maio, o Ministério da Saúde recebe alertas das secretarias estaduais sobre a falta de medicamentos essenciais para tratamento da Covid-19 em UTIs, como sedativos e analgésicos usados na intubação de pacientes graves. Demorou um mês para o Ministério aceitar coordenar a compra desses fármacos, com Estados e municípios, medida padrão em todos os governos desde a volta da democracia. Relatório de julho mostra que relaxantes e sedativos necessários para entubar pacientes estão em falta em treze Estados.

Em paralelo, o governo federal priorizou a distribuição de cloroquina, droga sem eficácia comprovada contra a Covid-19. Mais de 4,7 milhões de comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina foram distribuídos mesmo para Estados que não pediram o medicamento.

Em março e abril, o Ministério da Saúde prometeu entrega milhões de testes de diagnóstico aos Estados, além de abrir leitos de UTI em hospitais federais e ajudar na compra de respiradores. Em 17 de junho, na reunião do Centro de Operações de Emergência, já sob a gestão interina do general Eduardo Pazuello, o ministério passou a negar pedidos de ajuda. O documento sugere “deixar claro” que o ministério “não tem a responsabilidade de fornecer respiradores e equipamentos para proteção individual”.

A tragédia do Covid-19 não é um acaso. É um projeto. Hiroshima fica aqui.

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