O Giro da Roda do Dharma
Em uma palestra do Monge Genshô no Rio de Janeiro, um dos presentes lhe fez uma pergunta mais ou menos assim:
"Não é contraditório que existam essas regras e hierarquia no Zen?"
Ele provavelmente fez essa
pergunta em função da abordagem não-conceitual no Zen (como sugerido no
título do livro de D.T. Suzuki, "A doutrina zen da não-mente"), e talvez
influenciado por alguma escola não-buddhista que pregue a ausência de
regras e hierarquia.
Monge Genshô lhe respondeu que
não, pelo contrário, e que o treinamento Zen era principalmente um
treinamento de "forma", ou de regras bem definidas. Ele inclusive contou
que um de seus professores no templo de Yokoji baseava o treinamento
principalmente nisso: forma, forma, forma até a exaustão. Também que a
necessidade e o sentido dessas regras, muitas vezes incompreendidas a
princípio, acabavam por revelarem-se pouco a pouco com a prática.
Não me lembro exatamente toda a
explicação, mas provavelmente apontou até que, se não houvesse um método
de treinamento (que por definição precisa de regras), provavelmente não
sobraria muita coisa que pudesse ser chamada de Zen. O que remete ao
dito "com esforço não se consegue nada, mas sem esforço aí mesmo é que
não se vai a lugar algum", o que poderia ser adaptado para algo como
"com treinamento não se consegue nada, mas sem treinamento não se vai a
lugar algum".
Isso talvez cause confusão em
algumas pessoas, é um tanto paradoxal, e confesso, provavelmente me
falte clareza o suficiente para explicar a compatibilidade entre "a
doutrina zen da não-mente" e as inúmeras regras de treinamento no Zen.
Mas um interessante "causo" do mundo da informática talvez ponha um pouco de luz à essa questão. Os personagens são Marvin Minsky, um dos pioneiros na área de inteligência artificial e redes neurais, pesquisador e professor do MIT, e seu então aluno, Gerald Sussman, atualmente também pesquisador e professor na mesma área.
"Então Sussman começou a
trabalhar em um programa. Não muito tempo depois, um cara meio esquisito
e careca apareceu. Sussman imaginou que o cara iria expulsá-lo da sala,
mas ao invés disso o homem sentou-se, perguntando - Ei, o que você está
fazendo? Sussman conversou sobre o programa com o homem, Marvin Minsky.
Em certo ponto da discussão, Sussman disse a Minsky que ele estava
usando uma certa técnica de randomização em seu programa porque ele não
queria que a máquina tivesse noções pré-concebidas. Minsky lhe disse: -
Bem, ela as tem [noções pré-concebidas], a diferença é que você não sabe
quais elas são. Foi a coisa mais profunda que Gerry Sussman jamais
havia ouvido. E Minsky continuou, dizendo a ele que o mundo é feito de
certa forma, e que a coisa mais importante que podemos fazer com o mundo
é evitar a aleatoriedade, e imaginar maneiras pelas quais as coisas
possam ser planejadas. Sabedoria como aquela teve forte efeito no
calouro de dezessete anos, e dali então Sussman estava capturado."
Marvin Minsky talvez seja um dos
seres humanos vivos mais inteligentes, e fica claro na história acima
que ele não estava falando somente de programas de computador, mas de
mentes humanas também. O ponto que ele levanta é muitíssimo
interessante.
Sabe-se que no Budismo, não
somente o fim do sofrimento pessoal é importante - infinitamente mais
importante é o fim do sofrimento de todos os seres. Ainda que uma pessoa
tenha a imensurável boa sorte (ou melhor, as inúmeras condições
apropriadas) de conseguir eliminar todo o sofrimento na primeira vez que
sente em meditação, é necessário um esforço imensamente maior e mais
elaborado para eliminar o sofrimento de todos os seres nas dez direções,
de seus respectivos pontos de vista relativos. E é claro, para aqueles
que como eu que não conseguiram tal façanha, é preciso um esforço e
método continuados de prática, que por sua vez é proporcionado por um
grande número de amigos que nos ajudam nessa empreitada.
Quem já participou de sesshins já
pode ter percebido que trata-se de uma estratégia cuidadosamente
planejada para criar o máximo de condições propícias para levar os
participantes a uma experiência de esclarecimento, ou em outras
palavras, ao início do fim do sofrimento. Essa estratégia é composta por
um grande número de regras, cada uma com sua importância, que aos
poucos vamos compreendendo. E é claro, a estratégia é executada por
atores, que somos nós, os praticantes.
E quem foi o grande estrategista
que ensinou o Caminho e criou as inúmeras regras monásticas e leigas
iniciais que resultaram nas diversas escolas e métodos budistas que
temos hoje? Ninguém menos que Shakyamuni Buddha. A esse grande e
maravilhoso impulso chamamos de "O Giro da Roda do Dharma".
(Nesse texto, "Zen" refere-se às escolas Zen Budistas tradicionais, e provavelmente à maioria das escolas Budistas.)
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