Primeira Nobre Verdade

Por Yongey Mingyur Rinpoche

A primeira das Quatro Nobres Verdades é conhecida como a Verdade do Sofrimento. [...]
À primeira vista, pode parecer bem depressivo. Ao ouvir ou ler sobre isso muitas pessoas acabam desconsiderando o budismo como algo indevidamente pessimista. “Ah, esses budistas estão sempre reclamando que a vida é miserável. A única maneira de ser feliz é renunciar ao mundo e partir para alguma montanha, meditando o dia todo. Que tédio! Não sou miserável. Minha vida é maravilhosa!”.

É importante, antes de tudo, notar que os ensinamentos budistas não dizem que, para encontrar verdadeira liberdade, as pessoas precisam abandonar suas casas, empregos, carros e qualquer posse material. Como sua história de vida demonstra, o próprio Buda tentou uma vida de extrema austeridade sem encontrar a paz que buscava.

Além disso, não há como negar que, para algumas pessoas, as circunstâncias podem se juntar por um tempo de tal modo que parece impossível uma vida melhor. Já encontrei muitas pessoas que pareciam bem satisfeitas com suas vidas. Se perguntasse como estão, elas responderiam: “Bem!” ou “Ótimo!”. Até, obviamente, ficarem doentes, perderem o emprego ou seus filhos chegarem na adolescência e, de repente, se transformarem de seres afetuosos e alegres em impacientes estranhos mal-humorados que não querem mais nada com os pais.

Então, se eu perguntar como vão as coisas, a resposta muda um pouco: “Estou bem, tirando o fato de que…” ou “Tudo está ótimo, mas…”.

Essa é, talvez, a mensagem essencial da Primeira Nobre Verdade: a vida costuma interromper as coisas, causando mesmo entre os mais contentes surpresas momentâneas. Tais surpresas — junto com experiências mais sutis e menos perceptíveis como as dores que vêm com a velhice ou a frustração de esperar numa fila na padaria ou simplesmente chegar atrasado em um compromisso — podem ser todas compreendidas como manifestações do sofrimento.

No entanto, entendo porque essa perspectiva mais abrangente pode ser difícil de compreender. “Sofrimento”, usado nas traduções da Primeira Nobre Verdade, é um termo carregado.

Quando as pessoas leem ou escutam isso tendem a pensar que só se refere a dor extrema ou angústia crônica.

Mas “dukkha”, a palavra usada nos sutras, na verdade é mais próxima de termos de uso comum no mundo moderno como “inquietação”, “mal estar”, “desconforto” e “insatisfação”. [...]
Então, enquanto o sofrimento — ou dukkha — se refere sim a condições extremas, o termo [...] é melhor compreendido como um sentimento constante de que “algo ainda não está perfeito”: que a vida seria melhor caso as circunstâncias fossem diferentes; que seríamos mais felizes se fôssemos mais jovens, magros ou ricos, se estivéssemos em um relacionamento ou então fora dele. A lista de angústias não tem fim.

Dukkha assim abraça todo o raio de condições, desde algo tão simples como uma coceira a experiências mais traumáticas como dor crônica ou doenças fatais. Talvez algum dia a palavra dukkha seja aceita em muitas culturas e línguas diferentes, do mesmo modo que a palavra sânscrita “karma”, nos dando uma compreensão mais ampla da palavra que costuma ser traduzida como “sofrimento”.

Assim como ter um médico que identifique os sintomas é o primeiro passo para tratar uma doença, compreender dukkha como a condição básica da vida é o primeiro passo para se livrar do desconforto e inquietação. Na verdade, para algumas pessoas, apenas ouvir a Primeira Nobre Verdade pode ser uma experiência libertadora em si mesma. Um antigo aluno meu recentemente admitiu que por toda sua infância e adolescência sempre se sentiu alienado de todos ao redor. Eles eram mais espertos que ele, se vestiam melhor, pareciam interagir sem qualquer esforço. Parecia que todas as outras pessoas tinham ganhado um “Manual da Felicidade” ao nascer e esqueceram de dar um a ele.

Mais tarde, quando estudou filosofia oriental na faculdade, se deparou com as Quatro Nobres Verdades, e toda sua percepção começou a mudar. Ele compreendeu que não estava sozinho em seu desconforto. Na verdade, inaptidão e alienação são experiências compartilhadas pelas pessoas há séculos. Ele pôde largar aquela triste história sobre não ter um “Manual da Felicidade” e simplesmente apenas ser exatamente como era.

Não que não houvesse trabalho a ser feito, mas pelo menos ele poderia parar de fingir que pertencia, sendo que na verdade se sentia de outro jeito. Ele pôde começar a trabalhar com seu sentimento básico de inadequação não como um estranho solitário, mas como alguém que tem um traço em comum com o restante da humanidade. Também passou a ter menos chances de ser pego desprevenido quando sentia suas maneiras particulares de sofrimento [...].

Yongey Mingyur Rinpoche (Nepal, 1975 ~)

Um comentário:

Maranganha disse...

Talvez as 4 nobres verdades sejam superestimadas, assim como a felicidade e a infelicidade sejam também superestimados. Aliás, a superestimação das coisas parece ser comum a todos os egos, que querem se situar em algum lugar, tempo o quantidade.

Bom o texto, apesar de discordar de algumas coisas de Rinpoche, outras coisas dele fazem sentido.

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