Um Método Perigoso | Crítica
David Cronenberg trata de interlocução, inconsciente coletivo e Holocausto em sua obra mais reflexiva
Marcelo Hessel
17 de Outubro de 2011
17 de Outubro de 2011
Um Método Perigoso
A Dangerous Method
Canadá / Alemanha / Suiça / Reino Unido , 2011 - 99 minutos
Drama
Canadá / Alemanha / Suiça / Reino Unido , 2011 - 99 minutos
Drama
Direção:
David Cronenberg
David Cronenberg
Roteiro:
Christopher Hampton, John Kerr
Christopher Hampton, John Kerr
Elenco:
Michael Fassbender, Keira Knightley, Viggo Mortensen, Vincent Cassel, Sarah Gadon
Michael Fassbender, Keira Knightley, Viggo Mortensen, Vincent Cassel, Sarah Gadon
São necessárias duas pessoas para testemunhar o inconsciente.
Essa é uma das bases da psicanálise, a cura pelo diálogo, e é em busca desse diálogo que David Cronenberg está. O diretor que sempre serviu de "testemunha" em seus filmes, observando de cima como o inconsciente se manifesta de forma sexual, violenta e frequentemente deformadora em seus personagens, agora assume uma posição mais neutra - e deixa que os próprios criadores da psicanálise, Carl Jung e Sigmund Freud, observem a si mesmos.
Só por isso já dá pra antever que Um Método Perigoso (A Dangerous Method) é uma criatura atípica dentro da obra de Cronenberg. O cineasta - que enquanto mero observador não estabelecia, de fato, um diálogo com seus personagens - faz aqui um exame mais complexo da natureza humana. É o seu filme mais reflexivo, mas não menos perturbador que obras-primas como A Mosca eMarcas da Violência.
Tanto o livro A Most Dangerous Method, de John Kerr, quanto a peça The Talking Cure, de Christopher Hampton, servem de base para o roteiro. Nele, o jovem suíço Carl Jung (Michael Fassbender) começa a colocar em prática a psicanálise que o austríaco Freud (Viggo Mortensen) havia formulado em teoria. A tese do médico judeu, de que o desejo sexual é o motor do nosso comportamento, é comprovada por Jung em uma das suas primeiras pacientes: a judia russa Sabina Spielrein (Keira Knightley), que se sentia atraída pelos castigos físicos de seu pai.
Estudiosos defendem que Spielrein - que depois de ser paciente de Jung em 1904 e 1905 tornou-se sua assistente, antes de filiar-se a Freud - ajudou a formular o conceito de pulsão de morte, que depois seria atribuído ao austríaco. É essa versão dos fatos que o filme encampa (e que são em boa parte escudados pelas correspondências de Spielrein encontradas nos anos 1970), para colocar Sabina como catalisadora das diferenças entre Jung e Freud.
Um Método Perigoso já seria um filme notável se apenas expusesse as idiossincrasias que terminaram afastando o mentor e seu mais notável pupilo. Freud inveja a riqueza do "ariano" Jung, que por sua vez ressente-se do judeu que não lhe conta um sonho que teve, "porque isso acabaria com a minha autoridade", justifica Freud. Sabina Spielrein, que na superfície é aquela que mais se parece com uma personagem típica de Cronenberg (até o overacting habitual de Keira Knightley vira um lance de autor aqui), com seus "desvios" de comportamento manifestos fisicamente, no fim é a pessoa, dentro do trio, que melhor lida com sua personalidade.
Já seria notável, enfim, por toda essa observação. Mas o que transforma o filme de fato em uma obra desestabilizadora - muito além da simples curiosidade diante dos caprichos dos pais da psicanálise - é o que Cronenberg e o corroteirista Hampton (que adapta o roteiro de forma bastante fiel à sua peça) têm a dizer sobre o Holocausto.
Há referências demais à tragédia do século, ao longo do filme, para que elas sejam ignoradas. Está nos diálogos: "Os anjos falam alemão", diz Jung, enquanto Freud, já absorto em sua preocupação com o antissemitismo, diz a Sabina que fica feliz por ela desistir de seu "príncipe ariano". Está nas situações: a plateia congelada enquanto Jung toca Richard Wagner em um experimento. E, finalmente, está nas entrelinhas: na pulsão de morte da teoria da judia masoquista Sabina e na preocupação de Jung com "um pouco de repressão que seja saudável à sociedade" e com "um ato inominável que permita continuar vivendo".
São referências espalhadas muito pontualmente (em uma narrativa repleta de elipses como a de Um Método Perigoso, toda cena é crucial), e tirar uma conclusão delas exige ver o filme mais de uma vez. O que não há dúvidas é que aqui está em curso aquilo que Freud chamou de "trabalho de luto": transformar o incomunicável em verbo, em uma articulação, para superar o trauma dessa vivência incomunicável - que neste caso seria o Holocausto.
Desequilíbrio de interlocução
Com ou sem essa interpretação (martelada até os créditos finais, que mencionam a Segunda Guerra), o fato é que Cronenberg faz aqui alguns comentários sobre o inconsciente coletivo europeu (o inconsciente coletivo é um conceito junguiano, aliás) e um assombroso estudo de personagens sobre interlocução e o tal testemunho do insconsciente.
Quem melhor analisou a questão da interlocução no filme até agora foi a crítica Amy Taubin na edição de setembro/outubro deste ano da revista FilmComment. Ela defende que a mise en scèneeconômica de Cronenberg ajuda a expor o desequilíbrio da reciprocidade. Cronenberg usa uma lente grande-angular para destacar ainda mais quem está no primeiro plano e afastar a pessoa que está no segundo plano. Dá pra notar a eficiência desse procedimento nas cenas em que Sabina se consulta com Jung; Knightley e seus olhos esbugalhados ficam mais salientes, enquanto de Fassbender, desfocado no fundo, não conseguimos ver a verdadeira reação.
Esses momentos, em que a interferência do cineasta se dá de forma bastante discreta, a olhos apressados podem parecer desapaixonados, despojados demais. Não se engane: Um Método Perigoso é filme de um autor na maturidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário