5 DIAS NO MAIS PROFUNDO SILÊNCIO


Texto na íntegra, retirado da revista VIDA SIMPLES. 


5 DIAS NO MAIS PROFUNDO SILÊNCIO 

~ por Jhony Arai


Nesse retiro, os participantes não devem falar. Apenas meditar sentados, várias vezes ao dia, de frente para uma parede branca. O objetivo é fazer a mente também calar. Será possível?

Feriadão prolongado, com previsão de sol. Vou passar meus próximos cinco dias sentado em uma sala de meditação encarando uma parede branca. Do acordar ao dormir, a proposta é permanecer em completo silêncio. Não, não é um castigo. É um retiro espiritual, um período de treinamento intensivo (sesshin) na Comunidade Zen Budista do Brasil, liderada pela monja Coen. Durante o retiro, vamos escutar apenas a voz da monja ensinando a filosofia budista enquanto permanecemos em meditação (zazen). Vamos entoar os sutras sagrados em uníssomo. No mais, silêncio. Somos 23 pessoas em silêncio, olhando para a parede branca.

Primeiro dia. A rotina é ascética. Às 4h30, o sino de despertar toca. Às 5 horas, começamos o zazen. Sessões de 30 minutos são intercaladas com uma meditação andando (kinhin) de dez minutos. Por dia, dez sessões, 300 minutos, 5 horas de zazen. Os horários são seguidos à risca. Os sons dos sinos indicam o início e o final de cada atividade. Não há falas. Se houver, são como os avisos nos ônibus: fale com o motorista apenas quando necessário. Minha preocupação é aprender os rituais de cada atividade – que não são poucos. Até para se comer há formalidades e cerimônias. O café da manhã e o almoço são servidos dentro da própria sala de meditação. Há até uma tarefa que nunca esperei encontrar em um retiro: fazer a limpeza de banheiros, sala, cozinha, jardins. Às 18 horas é servido o jantar, a refeição mais descontraída já que não comemos na sala de meditação, mas em mesas montadas no jardim. Às 20 horas, recomeçamos a sessão de meditação. Às 22 horas, as luzes se apagam. Dormimos.

Segundo dia. Minhas pernas estão em frangalhos. Já havia lido no livro Sempre Zen, da mestre zen Charlotte Joko Beck, que os retiros causam dores e desconforto mesmo em monges experientes. “O que existe em um retiro zen é, em geral, muito cansaço, tédio e dor nas pernas. O que aprendemos com o ficar obrigatoriamente sentados em silêncio suportando todo esse desconforto é tão valioso que, se não existisse, deveria ser criado. Quando sentimos dor, não entramos na vertigem mental. Temos que ficar com a dor. Não há para onde ir.”

Mas quanta diferença entre a dor que você lê e a que se sente. A dor vai aumentando, como se um caminhão tivesse passado por cima delas. Será que vou ter que amputar minhas pernas? Tento me ajeitar na almofada, mas nada parece funcionar. A dor persiste. A parede branca incomoda. Estar em silêncio incomoda. Quando ficamos em silêncio, ficamos a sós. Por que é tão incômodo ficar comigo mesmo? Minha dor. Dói. Eu vim para cá sentir dor? Não estava buscando justamente o contrário? Vou embora. Preciso embora agora. O que estou fazendo aqui? O sol lá fora... Ai, ai, minhas pernas. Não há silêncio dentro de mim. Percebo o turbilhão desenfreado da minha mente, como se um cachorro louco morasse dentro de mim.

Terceiro dia. A parede branca na minha frente, intransponível. A dor nas minhas pernas, intransferível. Quem é o cachorro louco que habita em mim? Sou eu? Quem sou eu debaixo de todas essas camadas de “eu” que se formaram nestes anos todos? O que vai se revelar quando o verniz for arrancado? Quero mesmo encarar minha versão sem brilho? O que minha mente tem a dizer? Quem ela revela sem esse manto de sorriso e polidez que demonstro na superfície? Quem é esse “eu” que tenta sempre agradar o outro. Mas nunca está satisfeito consigo mesmo? Nunca o que faço é o suficiente. Percebo uma voz interna autoritária que se autopune o tempo todo. Uma voz severa, incapaz de se perdoar. Onde está o silêncio? 

A hora de limpeza até parece um alento, já que é um momento de esticar as pernas. Vim aqui para um retiro espiritual e acabo limpando banheiro? Não lavo o nem o da minha casa! O terceiro dia parece ser mais longo. Sinto vontade de ir embora, aproveitar a vida lá fora. Mas insisto. Em zazen. Eu e a parede branca. Eu e a parede branca.

“Nossa mente parece um copo d’ água misturada à terra”, diz a monja Coen. “Cultive o silêncio e, aos poucos, a sujeira vai se assentar e seremos capazes de enxergar a transparência da nossa mente, de nosso ser”. Em silêncio aprendemos a ouvir. “Sabe quando os mestres identificam o ponto ideal da fervura da água para realizar a cerimônia do chá?”, ela pergunta. “Quando a água emite o som do vento nos pinheirais.” 

Dormimos. Sonho que estou em um velho ônibus que sobe lentamente uma estrada de terra e pedra nas Cordilheiras dos Andes. À medida que o ônibus avança cordilheira acima, a estrada se torna mais estreita. O pneu passa rente ao penhasco. Tenho a sensação de que o ônibus pode despencar a qualquer momento. Mas, por alguma razão inexplicável, o motorista sabe que precisa seguir em frente. Quem está dirigindo o ônibus? Sou eu.

Quarto dia. Sinto-me estranhamente leve. Na sala de meditação, as almofadas (zafu) pretas já estão no exato lugar do dia anterior. Vamos começar o zazen. Pernas dobradas na posição de semilotus. Coluna ereta. Palma da mão direita levemente encostada sobre a esquerda, formando um semicírculo. Polegares se tocam. Olhos semicerrados miram 45 graus. À minha frente, apenas a parede branca. Respirar e expirar. A dor na perna não me incomoda mais. Ou será que não doía tanto quanto eu achei que estava doendo? Os pensamentos hostis não parecem mais tão pesados nem grudam como chiclete na sola do sapato. Elas vem. Elas vão.

O sino toca. A meditação caminhando é feita em passos bem lentos, seguindo a respiração. Enquanto caminho, a fumaça do incenso passa por mim, como se estivesse dançando na minha frente. Acompanho com o olhar a fumaça até o altar budista, onde repousa uma vela acesa. Suas chamas também dançam, formando um coreografia envolvente. Vejo a cena no intervalo de um passo. Continuo a caminhar, invadido por um contentamento. Sinto-me incrivelmente vivo. Vivendo o presente. O aqui e agora, que tanto se fala – e nunca tinha experimentado. Sesshin siginifica unificar, tocar, conectar, harmonizar a mente. 

Há silêncio fora – e dentro. Os detalhes de cada ritual tornam-se mais intensos. Seguro as tigelas onde a refeição da manhã é servida. No cardápio, sempre vegetariano, legumes cozidos, frutas, sopa de soja (missoshiru) e um mingau de arroz. Não se deve comer nem muito lento, nem muito rápido. Precisamos sentir o ritmo do grupo para acabarmos juntos. Recomenda-se não fazer barulho nem para movimentar as tigelas. Cada praticante lava as suas tigelas seguindo um outro ritual, sentado na sala de meditação.

É a hora da limpeza. Como nos mosteiros zen do Japão, o chão deve ser limpo com as mãos, que ficam paralelas sobre o pano úmido. Com o corpo agachado, empurro o pano em linha reta. É um exercício de humildade. Apenas faço. Sem reclamar. Aceito.Agora o retiro (sesshin) começa a fazer sentido. As sessões intermináveis de zazen, a limpeza do Zendo, os rituais para se comer, os sutras entoados em uníssomo. O silêncio. Em tempos de “interagir”, “curtir”, “compartilhar”, o retiro zen propõe o recolhimento. É uma mudança de perspectiva. 

Após o descanso do almoço, voltamos à sala de meditação. A parede branca não me parece tão intransponível. Ela não é mais “chata”, “angustiante”, “entediante” como eu julgava. Ela é apenas uma parede branca. É o que é. “Quando desistimos dessa mente vertiginosa [...] vemos tudo. Vemos o que somos: nosso esforço para parecermos bons, para sermos os primeiros ou para sermos os últimos. Vemos nossa raiva, nossa ansiedade, nossa arrogância e nossa pseudo-espiritualidade”, diz o trecho do livro da mestre Charlotte Joko Beck.

O sino toca. Levantamos para a meditação caminhando. Vejo um sabiá pousar na varanda, dar seis pulinhos até um bebedouro de pedra construído especialmente para os pássaros. Mergulha a cabeça três vezes na água, agita as asas e alça vôo. Apenas testemunho, compartilho.

O dia passa no seu ritmo.

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