Budismo e Ciência Como Ferramentas Para Uma Sociedade Plenamente Atenta

Nesta entrevista, Kabat-Zinn explica aos ocidentais que usufruir os benefícios da meditação não é algo raro e para poucos. Compreender o seu processo e sua utilização no simples dia-a-dia pode nos levar a uma compreensão ampla de nós mesmos enquanto inseridos na humanidade que somos.





A Atenção Plena (Mindfulness) vai além de simplesmente cultivar nossa atenção?

O que a Atenção Plena promete de mais importante é muito mais do que isso, muito mais profundo. Essa prática nos ajuda a entender que a nossa visão convencional sobre nós mesmos, e até mesmo sobre o que queremos dizer com “eu”, é incompleta em alguns aspectos muito importantes. 

A Atenção Plena nos ajuda a reconhecermos como e porque tomamos erroneamente a realidade das coisas por uma história que criamos, e então torna possível traçar um caminho para uma maior sanidade, um maior bem-estar e propósito.


Por que você acha que a abordagem científica é importante para disseminar a prática da Atenção Plena?

Eu não estou de fato interessado em “espalhar” a prática da Atenção Plena, tanto quanto estou interessado em inflamar a paixão das pessoas por aquilo que é mais profundo e melhor dentro de todos nós, mas que normalmente está escondido e raramente acessível. A ciência é um modo particular de entender o mundo, que permite que algumas pessoas tenham contato com coisas que de outra forma evitariam e, por isso, pode ser usado como um meio hábil para abrir a mente das pessoas. Ao aproximarmos a ciência da meditação, estamos começando a encontrar novos caminhos, em uma linguagem que as pessoas possam entender, para demonstrar os benefícios de treinar e se familiarizar com o funcionamento da própria mente, de uma forma que gere uma maior compreensão e clareza.

A ciência também está demonstrando benefícios importantes e interessantes dessas práticas e treinamentos mente-corpo para a saúde, e agora está começando a elucidar os vários caminhos pelos quais a Atenção Plena exerce seus efeitos sobre o cérebro (regulação emocional, controle cognitivo, atenção, ativação de mapas somáticos específicos, espessamento cortical em regiões específicas) e sobre o corpo (redução de sintomas, maior bem-estar físico, melhora da imunidade, regulação epigenética de atividade em um grande número de genes). Também está se demonstrando que a meditação pode trazer um senso de significado e propósito para a vida, com base na compreensão da não-separação entre si mesmo e o outro. Dada a condição em que nos encontramos hoje em dia no planeta, entender nossa interconexão não é um luxo espiritual, é um imperativo social.

Três ou quatro séculos atrás, não muito tempo, as pessoas praticavam a meditação sob condições razoavelmente isoladas, principalmente em monastérios. Agora a meditação está sendo praticada e estudada em laboratórios, hospitais e clínicas, e até mesmo em escolas primárias e secundárias. As pessoas que ensinam e pesquisam estão, em muitos casos, envolvidos com as práticas de Atenção Plena há 10, 20, 30 ou mais. Eles não estão simplesmente aderindo a algum movimento novo. O trabalho dessas pessoas resultou em muitos profissionais sendo atraídos para a prática de Atenção Plena, pela primeira vez. Isso em si é um fenômeno maravilhoso, desde que se entenda que a Atenção Plena não é apenas um “conceito” bom, mas uma maneira de ser ortogonal, que requer prática e cultivo constantes.


Quais são as novas fronteiras da Atenção Plena nos últimos anos?

O trabalho com Atenção Plena está se espalhando em áreas além da medicina e da saúde e também para além da psicologia e da neurociência. Está se estendendo a programas sobre parto e paternidade, educação, negócios, atletismo e esportes profissionais, direito, justiça criminal e até mesmo política. Por exemplo, Tim Ryan, um deputado democrata de Ohio, tornou-se um grande defensor de um maior apoio para pesquisa e implementação de programas de Atenção Plena, tanto na saúde quanto na educação, com base em suas próprias experiências com a prática contínua. Em muitas áreas diferentes, está se reconhecendo o quanto mente e corpo são e sempre foram axiomáticos. Precisamos aprender a ser muito mais sintonizados com esse diálogo e participar ativamente, se quisermos que funcione efetivamente e otimize a nossa saúde e bem-estar.


A sincronização entre mente e corpo pode trazer mais benefícios do que funcionar de forma eficaz?

A consciência da qual estamos falando quando estamos usando o termo “Atenção Plena” abrange também as motivações de nossas ações, por exemplo, as maneiras pelas quais somos movidos por auto-engrandecimento ou ganância. Na crise financeira de 2008-2009, vimos os efeitos da ganância em grande escala nos bancos e companhias de seguros. Para curar essa doença não será suficiente apenas prestar socorro, pacotes de estímulo, e magicamente criar maior confiança na economia. Precisamos criar um tipo diferente de confiança e um novo tipo de economia, uma que não se baseie em gastos sem sentido, mas em direcionar recursos para o bem maior de cada um, da sociedade e do planeta. A Atenção Plena pode ajudar a abrir as portas para isso, ajudando-nos a ir além das abordagens que se baseiam apenas no pensamento conceitual e que são movidos pela ganância sem limites e legalmente sancionada.

Parece que a noção de que seremos capazes de pensar uma saída para nossos grandes problemas tem perdido o prestígio recentemente.

Esse é um ponto chave. Até mesmo pessoas muito, muito inteligentes – e há um monte delas ao nosso redor – estão começando a reconhecer que o pensamento é apenas uma das muitas formas de inteligência. Se não reconhecermos as múltiplas dimensões da inteligência, estaremos prejudicando nossa capacidade de encontrar soluções criativas e resultados para problemas que não admitem correções estreitas. É como ter uma visão linear na medicina que vê os cuidados de saúde apenas como “consertar pessoas” – um modelo de mecânico de automóveis para o corpo, que não compreende cura e transformação, não entende o que acontece quando você harmoniza corpo e mente. O elemento que está faltando nessa compreensão mecânica é a consciência.

A consciência genuína pode modular o nosso pensamento, e assim nos tornamos menos impulsionados por motivações não examinadas de nos colocarmos em primeiro lugar, de controlarmos as coisas para amenizar o nosso medo, de sempre oferecermos nossas respostas brilhantes. Podemos criar uma enorme quantidade de dano, por exemplo, por não ouvir outras pessoas que podem ter diferentes pontos de vista e idéias. Felizmente, atualmente nós temos uma grande oportunidade para equilibrar o cultivo do pensar com o cultivo da consciência. Qualquer um pode restaurar algum grau de equilíbrio entre o pensamento e a consciência, neste exato momento, que é o único momento que qualquer um de nós tem sempre, de qualquer maneira. Os resultados potenciais de aprender a habitar a consciência e trazer maior equilíbrio ao pensar são extremamente positivos e saudáveis para nós mesmos e para o mundo em geral.
Por outro lado, continuar a dominar o planeta como a nossa espécie tem feito nos últimos seis ou sete mil anos poderá ser muito pouco saudável. A despeito da beleza advinda da civilização, poderemos seguir em um caminho de transtornos colossais que, basicamente, resultam de uma mente humana que não faz as pazes consigo mesma – guerra, genocídio, fome, respostas grosseiramente inadequadas a desastres naturais. Esses transtornos podem destruir tudo o que nos é mais caro.


Anteriormente, você falou sobre a promessa de a Atenção Plena ser muito mais do que simplesmente focar a atenção. Poderia comentar quais são as chaves para obtermos os efeitos mais profundos dessa prática?

Em última análise, o caminho é incerto. Tudo o que podemos fazer é escutar profundamente o chamado de nossos próprios corações e do mundo, e fazer o melhor que pudermos. Eu enfatizo a universalidade do poder da Atenção Plena e da consciência, mas eu não estou falando de uma igreja universal ou um movimento religioso universal. Estou falando de compreender a natureza do que significa ser humano. Eu nem gosto de usar a palavra “espiritual”.

Podemos simplesmente abordar o que significa ser humano – a partir de um ponto de vista evolutivo, de um ponto de vista histórico? O quê está disponível para nós neste breve momento em que o universo surge sob a forma de um corpo humano e de um ser sensível, e vive 70, 80, ou 90 anos (se tanto), e depois volta a nos dissolver em um oceano indiferenciado de potencial? Uma grande parte do tempo nos tornamos tão egoístas, tão preocupados, que não buscamos o tipo de investigação fundamental proposta por Aristóteles quando fez o comentário de que “Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”.

Além de desenvolver um vocabulário universal, não religioso, tentei enfatizar a importância crítica do aspecto não-dual da meditação, enfatizando que não se trata de chegar a qualquer outro lugar. Isto, é claro, imediatamente traz uma grande perplexidade para as pessoas, porque quase tudo o que fazemos parece ser uma tentativa de chegar a um outro lugar. Por que diabos você quer chegar em outro lugar? Se você sente muita dor, ou se você tem algum tipo de doença ou o que seja, você sempre quer voltar para o ponto em que estava, ou ir para algum lugar melhor no futuro. Parece quase anti-americano apenas de se contentar com o que é da forma que é, mas isso é uma compreensão equivocada do potencial de viver o momento presente. Não é uma questão de resolver. É uma questão de reconhecer que, em algum sentido, ele nunca fica melhor do que isso.


O que quer dizer?

De forma bem simples, o futuro não está aqui, mesmo que criemos tantas ilusões quantas quisermos. O passado já terminou. Temos de lidar com as coisas como elas são no momento. Então, é mais eficaz lidar com elas, se não perpetrarmos ilusões sobre a natureza de nossa experiência, e, em seguida, nos iludirmos ou termos ambições que nos levam a criar mais mal do que bem.

Quando nós nos iludimos sobre a verdadeira natureza da nossa experiência, não prejudicamos apenas outras pessoas. Nós também prejudicamos a nós mesmos, porque não fazemos as pazes com alguns elementos que compõem o que somos, nossa conexão básica com os outros e com o nosso meio ambiente. Isso é muito triste e muito insatisfatório. Cura e transformação são possíveis a partir do momento que aceitamos a realidade das coisas como elas são – boas, ruins, ou feias – e depois agimos com base nesse entendimento com a imaginação, a bondade e a intencionalidade. Isto não é fácil ou indolor, de forma alguma, mas é ao mesmo tempo uma forma de realização e um caminho para a sabedoria e para a paz.

Neste sentido, estamos tentando criar uma maneira de falar da Atenção Plena como uma prática, um modo de ser, e também como a culminação da prática que em um determinado momento seja tão familiar que as pessoas irão dizer: “É claro, faz sentido. Faz sentido estar no momento presente, para ser um pouco menos crítico, ou pelo menos para estar ciente do quanto eu sou crítico. Como eu não percebi isso antes? É tão óbvio.”


Em quem podemos nos apoiar para levar esta mensagem a mais pessoas?

Este é um grande desafio, considerando o quanto estamos aprisionados e cegos pelo nosso próprio condicionamento. Simplesmente não há bons professores o suficiente. Além disso, nem todo mundo os ouve na linguagem dos veículos tradicionais de meditação. Então talvez precisemos de muitos professores de meditação altamente dedicados e habilidosos, mergulhados em sua própria prática, para atender a necessidade que está esperando lá fora. Há muito sofrimento no mundo. Quem somos nós para não respondermos a isso de alguma forma? É por isso que fazemos muitos esforços para colocar o MBSR como formação profissional, para o desenvolvimento de toda uma nova geração de pessoas profundamente embasada nessa expressão universal do Darma e comprometida em trazer isso para o mundo de várias maneiras, como um meio hábil para a cura e transformação em um tempo em que o mundo está clamando por bondade e sabedoria.


O quê é necessário para ensinar a prática da Atenção Plena além de um bom coração?

Se estamos ensinando Atenção Plena em um segmento ou em outro, é realmente necessário que esteja baseado em nossa própria experiência, em primeira pessoa. Precisa ser fundamentada na humildade e no não-saber, uma abertura para a possibilidade, mas também em uma profunda visão de si mesmo e do outro. Uma vez que está disponível para todos, não é realmente um grande negócio ou uma posse privada especial.

Claro, algumas pessoas vão tomar a Atenção Plenas e outras práticas e colocar seu próprio selo sobre elas. Algumas pessoas vão fazer disso uma grande campanha, sem realmente entender sua profundidade, ou tendo uma compreensão apenas parcial. A possibilidade inevitável de que algumas pessoas se aproximem e explorem esses ensinamentos e práticas de forma equivocada é parte do preço do sucesso de trazer a Atenção Plena para uma cultura maior.

Uma das grandes responsabilidades daqueles de nós que estão fazendo este trabalho é nutrir e orientar os mais jovens e aqueles que estão chegando. 

Podemos lembrá-los, ou esclarecer a eles, que tornar-se um professor de Atenção Plena não é apenas uma moda passageira ou meramente um passo na carreira. O valor da Atenção Plena é profundo e único. Demanda que tenhamos um olhar profundo sobre a natureza da experiência em si, e sobre a natureza das nossas próprias mentes e corações. Este é um tipo de investigação científica, uma vez que a mente é realmente um mistério enorme do ponto de vista científico.

Todo esse trabalho depende de apreciar como a consciência pode equilibrar o pensamento. Não há nada de errado com o pensamento. Muito do que é belo brota do pensamento e das nossas emoções. Mas, se o nosso pensamento não for equilibrado com a consciência, podemos acabar deludidos, perpetuamente perdidos em pensamentos e fora de nossas mentes, justamente quando mais precisamos delas.


Jon Kabat-Zinn é professor Emérito de Medicina e director fundador da Clínica de Redução do Stress e do Centro de Atenção Plena em Medicina, na Escola Médica da Universidade de Massachusetts. Kabat-Zinn estudou budismo zen e é membro fundador do Centro Zen de Cambridge. Passou a integrar os seus conhecimentos budistas e prática de ioga na ciência médica ocidental.



Postado por Fernanda de Aquino

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