De acordo com a visão científica, a origem do Universo, da vida e da mente são processos naturais, que obedecem a leis e a princípios materiais. O fato de eles serem complexos e ainda obscuros não compromete o fato de as questões terem cunho científico e não religioso.
Minha intenção é apenas levantar alguns pontos que, espero, poderão inspirar debates sobre o assunto.
Minha intenção é apenas levantar alguns pontos que, espero, poderão inspirar debates sobre o assunto.
O não saber é a mola propulsora da criatividade humana.
Mas até que ponto a ciência pode resolver essas questões?
A Vida
Estamos longe de compreender cabalmente a origem da vida. Mas (e o mas é importantíssimo...então reforço:) "mas", com todo o arcabouço de informações juntadas nos últimos 100 anos de ciência, nos parece que a transição da não vida para a vida obedeceu a uma complexificação crescente das reações químicas que ocorriam na Terra primitiva: sistemas de compostos químicos tornaram-se autossuficientes e, isolados em protocélulas, foram capazes de absorver energia do ambiente e de se reproduzir de forma eficiente.
Sem dúvida, ainda não sabemos como isso se deu e, provavelmente, nunca saberemos exatamente o que ocorreu na Terra bilhões de anos atrás. No máximo, produziremos cenários viáveis de como a vida pode ter surgido aqui, dadas as condições na vigente Terra primitiva. Talvez seja possível recriar a vida no laboratório, mas não saberemos se foi assim que a vida surgiu aqui -a menos que seja demonstrado que só há um caminho bioquímico para a vida, o que acho pouco provável.
O que torna a questão da origem da vida mais "fácil" (ou mais tratável) é o nível de controle que temos sobre ela. Cientistas podem simular sistemas bioquímicos no laboratório (e vêm fazendo isso com resultados extraordinários), tanto começando com moléculas simples, como aminoácidos, como usando já o RNA e DNA do nosso código genético e testando suas propriedades em condições diversas.
Usando células, podem retirar material genético até chegar à célula "mínima" capaz de ser considerada viva. Mesmo que o caminho exato que a vida seguiu na Terra seja inacessível, a questão da origem da vida é tratável, mesmo se complexa e interdisciplinar.
Mesmo que seja impossível saber exatamente como a vida surgiu na Terra, podemos investigar os possíveis caminhos bioquímicos que levam a não vida à vida. No caso do Cosmo e da mente, as coisas são mais sutis.
O Universo
Na visão científica, a origem do Universo faz parte da cosmologia. Imediatamente, encontramos dificuldades: se, em ciência, todo efeito é resultado de uma causa, podemos voltar ao passado até chegarmos na causa primeira.
Mas o que causou essa causa? Aristóteles, por exemplo, usou uma divindade, "o-que-move-sem-ser-movido", que não precisa de uma causa. Ou seja, usou a intervenção divina. Como as observações atuais apontam para um Universo com um início no passado, o desafio dos modelos científicos de origem do Cosmo é justamente tentar driblar a questão da causa primeira.
Porém, mesmo supondo que isso seja possível, será que a resposta é aceitável ou definitiva? Se o Universo surgiu de uma flutuação quântica aleatória, resolvemos a questão da causa. No mundo quântico, processos ocorrem espontaneamente, como no decaimento de núcleos radioativos. Juntando a isso o balanço entre a energia positiva da matéria e a energia negativa da gravidade, essa flutuação pode ter energia nula: o Cosmo surge do "nada".
Esse é o resultado de que tanto se vangloriam Stephen Hawking, Lawrence Krauss, Mikio Kaku e outros físicos. Mas não deveriam. É óbvio que esse nada quântico é muito diferente de um nada absoluto. Qualquer modelo científico pressupõe toda uma estrutura conceitual: energia, espaço, tempo, equações, leis...
Fora isso, hipóteses precisam ser testáveis e não sabemos como fazer isso com uma flutuação primordial. Não podemos sair do Universo e testar outras versões no laboratório. No máximo, modelos como esse chegam a uma compatibilidade com o que observamos.
A questão de por que este Universo e não outro continuará em aberto. O fato de a ciência oferecer tantas respostas não significa que ela deva responder a tudo.
A Mente
Foi Descartes quem, no século 17, famosamente escreveu "penso, logo existo". Para ele, mente e matéria eram coisas separadas. Nossa capacidade de reflexão não poderia ser reduzida a processos meramente materiais. A essência da razão é o pensamento e a da matéria é a extensão.
E já que a física lida com processos materiais, a mente não é uma entidade física. O dualismo de Descartes garante que a física pode ser aplicada à matéria sem se enrolar tentando explicar a mente.
Hoje, essa separação não vinga. Existe apenas matéria, ou pelo menos não temos razão para supor que exista uma entidade imaterial capaz de interagir com a matéria. Do ponto de vista científico, algo imaterial não pode interagir com a matéria. Se existe uma interação, deve ser descrita pelas leis da física. Num exemplo meio prosaico, se alguém crê ter visto um fantasma, esse fantasma emitiu radiação eletromagnética no visível. Para ser visto, o fantasma interagiu com seu sistema visual e é uma entidade física, não tendo nada de sobrenatural.
Nosso cérebro, pesando em torno de 1,3 kg e com 86 bilhões de neurônios- um número que, graças à pesquisa de Suzanna Herculano-Houzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é bem menor do que os populares 100 bilhões- é a entidade mais complexa que conhecemos. A questão central das ciências cognitivas é saber como a rede neuronal, coligada através de trilhões de sinapses, gera a mente. Outra, é saber como a mente gera a consciência, que pode ser definida como a capacidade que temos de refletir sobre nós mesmos.
De certa forma, existe um paralelo entre a origem da mente e a da vida. Podemos entender a vida como uma propriedade emergente da matéria, algo que ocorre quando as reações químicas em um volume isolado (a célula) tornam-se capazes de se alimentar e de se reproduzir de forma autônoma. Seguindo o paralelo, a mente é uma propriedade emergente do cérebro, que ocorre quando o cérebro atinge um certo nível de complexidade neuronal. Ninguém sabe como ainda.
Existe também o aspecto evolucionário, as mudanças no cérebro desde espécies mais primitivas até o homem. A inteligência atua em níveis diversos, e defini-la é um problema. Existe o conceito de inteligência coletiva (formigas e abelhas), inteligência emocional e inteligência como capacidade de adquirir e aplicar conhecimento. A inteligência vem da arquitetura cerebral e está relacionada de forma não óbvia com o tamanho e nível de atividade neuronal. Se entendêssemos inteligência, já teríamos fabricado inteligência artificial.
O desafio que a mente nos apresenta é que, tal como o Cosmo, não podemos investigá-la de fora para dentro. A mente tem que entender a si própria. Mas atualmente não sabemos nem menos se a mente começa e termina no indivíduo ou se existem ligações entre indivíduos ou mesmo entre o indivíduo e o Cosmo. Mas isso fica para mais adiante.
O texto acima é uma colagem não autorizada com os textos publicados por Marcelo Gleiser em jornais como a Folha. Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".
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