Por Yvonne Maggie para G1
Ando muito impressionada com o que tenho ouvido de muitas pessoas sobre as causas da doença e da morte. Explico. Há dois anos tive um câncer e fui operada por uma equipe extremamente competente e tratada por um oncologista de primeira linha. Tenho o privilégio de ter um bom plano de saúde e pude fazer todas as terapias necessárias em uma clínica com os recursos mais modernos. Confio nos médicos que passaram anos estudando e em contato com os mais avançados centros de oncologia do mundo, sigo suas recomendações com a maior dedicação possível e faço todos os exames de rotina com zelo.
Não digo que seja fácil passar pela via crucis de exames médicos, laboratoriais e de imagem, sofrer as consequências da radioterapia e da quimioterapia, e ficar com o medo da doença que dizem ser de difícil controle. Passei por tudo isso consciente de que precisava ser tratada com os melhores recursos científicos de que dispomos no momento. Confiei desde o primeiro momento que a medicina poderia me curar, porque o câncer, no meu caso é curável.
Muitas pessoas queridas de perto e de longe, mães e pais-de-santo, médiuns e espíritas me telefonaram dizendo que era trabalho feito, daqueles perigosos e mandado pelos meus inimigos. Aconselharam muitas rezas e recursos espirituais como passes com pessoas especialmente recomendadas. Tenho enorme agradecimento a todos os que se preocuparam comigo.
Depois de passado os meses de tratamento, o mais surpreendente. Amigos que me acompanharam a vida inteira no mundo acadêmico, parentes, amigos de parentes, gente de todas as classes, ao me encontrarem mais ou menos refeita diziam: “Eu tinha certeza de que você sairia dessa, você põe seus sentimentos para fora; já fulano, com aquela depressão…” Em muitos momentos me senti perdida e até ofendida, pois depois de tanto sofrimento, segundo essas pessoas, se eu me deprimisse poderia ter uma recidiva.
O tempo passou, mas como a vida não para, nesses últimos tempos muitos conhecidos foram acometidos pelo câncer e outros faleceram de doenças várias. Inúmeras pessoas deram explicações mágico-psicológicas para mortes e doenças. Segundo suas visões, a doença e a morte esperam uma fraqueza do espírito para atacar o indivíduo ou são resultado de uma vida de “estresse” e até de maus pensamentos. Desejar o mal, por exemplo, é muito perigoso porque pode produzir um tumor fatal. Esse ethos que explica a causa das doenças por “meios psicológicos” ou pelo que chamam de “energia”, de traumas, ou até de infelicidade é quase universal na sociedade brasileira. As pessoas parecem não acreditar que a morte e a doença são produzidas por causas naturais.
Estava imersa em meus pensamentos sobre a teoria da causalidade no Brasil quando pensei nos azande, povo do Sudão, estudado por um dos fundadores da antropologia, Sir Edward E. Evans-Pritchard durante a década de 1920. Para os azande tudo se explica pela bruxaria.
Sir Eward E. Evans-Pritchard conta que um dia, quando estava em uma aldeia, um celeiro, comido pelos cupins, ruiu e caiu em cima de um zande, matando-o. Todos disseram que era bruxaria. O antropólogo perguntou se a causa da morte não havia sido o peso do celeiro sobre a pessoa. Os azande responderam que sim, a morte tinha sido causada pela queda do celeiro, mas a bruxaria era a segunda lança, aquela que, na caça, atinge mortalmente o animal e que explica porque exatamente aquele indivíduo estava ali, justo no momento em que o celeiro caiu. Só a bruxaria, segundo eles, podia explicar essa coincidência.
No Brasil do século XXI, da mesma maneira, o infortúnio e a coincidência são explicadas pela magia, mesmo que revestida de uma linguagem científica, como se os significados atribuídos aos acontecimentos tivessem a força de produzi-los.
Hoje confirmei esta percepção. Muitas pessoas comentavam a morte de um amigo explicando-a por sua forte depressão e pelo fato de viver sozinho. Assustada, afirmei: “Ele tinha uma doença grave!” Os amigos não se deram por vencidos e rebateram: “Mas então como explicar a morte tão repentina de uma pessoa tão jovem?” Meu amigo beirava os 70 anos.
Sir Edward E. Evans-Pritchard descobriu a lógica da bruxaria como sistema de conhecimento ao fazer a etnografia magistral do povo zande. A magia é uma explicação que corre paralela às explicações dadas pela ciência. Ambas são sistemas de causalidade. A primeira tenta esclarecer o imponderável, o porquê aconteceu nesse momento e não em outro, com o meu amigo e não com uma pessoa distante. A ciência procura acertar na estrutura da natureza para descobrir as causas mais gerais daquela doença e, portanto, da morte. Meu amigo se foi porque estava doente, mas deixou todos perplexos: “Por que se foi tão cedo?” Apenas as explicações ditas “psicanalíticas” ou “psicológicas”, empregadas ao estilo da lógica da bruxaria, aplacam a dor diante do caos, do imponderável da vida humana.
O grande problema é que nem sempre as causas naturais são curáveis e a morte faz parte da vida. Talvez por isso seja quase impossível fugir desses fundamentos que explicam até as falhas da magia. Como disse o sociólogo Robert Merton: “As representações são profecias que se cumprem por si mesmas”. Segundo esta lógica me salvei da doença porque não guardo raiva nem rancor, sou otimista e não sou deprimida. Se tivesse sucumbido à doença a depressão, o trabalho feito, o peso da vida etc, explicariam meu terrível infortúnio. Certamente, a lógica ultradeterminística da explicação mágica é bem mais reconfortante.
Yvonne Maggie ~ Professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Autora dos livros "Guerra de orixá", editado pela Zahar e "Medo do feitiço", publicado pelo Arquivo Nacional. Coautora dos livros "Raça como retórica" e "Divisões perigosas", ambos pela Civilização Brasileira. Agraciada em 2008 com a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico do Governo do Brasil. Pesquisadora do CNPq e bolsista Cientista do Nosso Estado pela Faperj.
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