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Da Visão e do Enigma


Capítulo “Da Visão e do Enigma“, da Terceira Parte de “Assim Falou Zarathustra ~ Um Livro Para Todos e Para Ninguém” (Also sprach Zarathustra, 1885), célebre livro do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) que inspirou diversos filósofos pelo mundo, como Heidegger e Wittgenstein, psicólogos como Carl G Jung, além de músicas, como o clássico homônimo do compositor alemão Richard Strauss. Neste capítulo, Zarathustra explora a visão da culpa e do peso da consciência, “vertendo chumbo nos meus ouvidos e destilando pensamentos de chumbo no meu cérebro”. Enigmático já no título, esse capítulo traz o pensamento simbólico de Nietzsche sobre o valor, ou os valores mortalmente sufocantes (a cobra) de nós e sobre nós, homens contemporâneos (pastor), uma provável crítica aos desdobramentos da antiga cultura judaico-cristã sobre o viver humano.

Segue o capítulo, em português, transcrito da Wikisource.

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“Da Visão e do Enigma” (Capítulo de “Assim Falou Zarathustra”)
Por Friedrich Nietzsche

“Quando os marinheiros souberam que Zaratustra se encontrava no barco — porque, ao mesmo tempo que ele, fora a bordo um homem das Ilhas Bem-aventuradas; houve grande curiosidade e grande expectação. 
Zaratustra, porém, conservou-se em silêncio, durante dois dias, e permaneceu frio e surdo, simplesmente triste; de forma que não respondia aos olhares nem às perguntas. 
Na noite do segundo dia abriram-se-lhe de novo os ouvidos, conquanto permanecesse calado: porque naquele barco que vinha de longe e que ainda queria ir mais longe, se podia ouvir uma porção de coisas estranhas e perigosas. 
Zaratustra, porém, era amigo de todos os que fazem grandes viagens e de quem não sabe viver sem perigo. Por fim escutando, desatou-se-lhe a língua e quebrou-se-lhe o gelo do coração. Então começou a falar assim: 
“A vós outros, quem quer que sejais, intrépidos exploradores e aventureiros que embarcasteis com velas astutas em mares temíveis. 
A vós, ébrios de enigmas, gozosos das penumbras, almas atraídas por flautas a todas as voragens ilusórias. 
Porque não quereis seguir às cegas e com mão medrosa um fio condutor; e onde quer que podeis adivinhar aborreceis concluir. 
Somente a vós conto o enigma que vi, a visão do mais solitário. 
Sombrio atravessei ultimamente o pálido crepúsculo — sombrio e duro, com os lábios contraídos. — Mais de um sol se pusera para mim. 
Um sendeiro que subia com ar de desafio por entre despenhadeiros, um sendeiro perverso e solitário que já não queria erva nem brenhas, um sendeiro de montanha rechinava ante o repto dos meus passos. 
Mudos no meio do irônico ranger dos calhaus, pisando a pedra que os fazia resvalar, os meus pés pugnavam para cima. 
Para cima, embora gravitasse sobre mim esse espirito, a puxar para o abismo: a despeito do espírito do pesadelo, meu demônio e mortal inimigo. 
Para cima, embora gravitasse sobre mim esse espirito, entre anão e míope, paralisado e paralisador, vertendo chumbo nos meus ouvidos e destilando pensamentos de chumbo no meu cérebro. 
“Ó Zaratustra! — me segredava em tom chocarreiro, batendo as sílabas. — Pedra da sabedoria! atiraste-te ao alto, mas toda a pedra atirada tem… que tornar a cair. 
Condenado a ti mesmo e à tua própria lapidação, ó! Zaratustra! atiraste muito longe a pedra… mas, tornará a cair em cima de ti!” 
Aqui se calou o anão, e muito tempo decorreu; mas o seu silêncio oprimia-me: quando uma pessoa se desdobra em duas encontra-se mais insulada do que quando é uma só! 
Eu subi, subi mais, sonhando e pensando: mas tudo me oprimia. Assemelhava-me a um enfermo prostrado pela agudeza do seu sofrimento, e a quem um pesadelo desperta do seu torpor. 
Eu, porém, tenho qualquer coisa a que chamo valor, qualquer coisa que até agora matou em mim todo o humor sombrio. Esse valor me fez deter por fim e dizer: “Anão! ou tu ou eu!” 
O valor é o melhor dos matadores: o valor que ataca, porque sempre se ataca ao rufar do tambor. 
É o homem o animal mais valoroso: por isso venceu todos os outros animais. Ao rufar do tambor triunfou de todas as dores: e a dor humana é a dor mais profunda. 
O valor mata também a vertigem à beira dos abismos! E onde não estará o homem à beira dos abismos? Mesmo olhar… não será olhar abismos? 
O valor é o melhor dos matadores: também mata a compaixão. E a compaixão é o abismo mais profundo: tão fundo quanto o homem vê na vida, assim fundo vê no sofrimento. 
Mas o valor, o valor que ataca é o melhor dos matadores; mata a própria morte, porque diz: “Que? Era isto a vida? Então tornemos a começar!” 
Nesta sentença ressoa muito o tambor de guerra. Quem tiver ouvidos que ouça.”

II 
“Alto, anão! — disse. — Ou eu ou tu! Eu, porém, sou o mais forte dos dois: tu não conheces o meu mais profundo pensamento. Esse… não mo poderias tirar!” 
Nisto se me aliviou a carga, porque o indiscreto anão me saltou dos ombros. 
Acaçapou-se numa pedra diante de mim. No sítio em que paramos, encontrava-se como por casualidade um pórtico. 
“Anão! — prossegui. — Olha para este pórtico! Tem duas caras. Aqui se reúnem dois caminhos: ainda ninguém os seguiu até o fim. 
Esta rua larga que desce, dura uma eternidade… e essa outra longa rua que sobe… é outra eternidade.. . 
Estes caminhos são contrários, opõem-se um ao outro, e encontram-se aqui neste pórtico. O nome do pórtico, está escrito em cima; chama-se “instante”. 
Se alguém, todavia, seguisse sempre, cada vez mais longe, por um destes caminhos, acaso julgas, anão, que eles eternamente se oporiam?” 
“Tudo quanto é reto mente — murmurou com desdém o anão. — Toda a verdade é sinuosa; o próprio tempo é um círculo”. 
“Espírito do pesadelo! — disse eu irado! — Não aprecies tão ao de leve as coisas! — ou te deixo onde estás acaçapado, e olha que fui eu quem te trouxe cá acima! 
Olha para este instante! — continuei. — Deste pórtico de momento segue para trás uma larga e eterna rua; detrás de nós há uma eternidade. 
Tudo quanto é capaz de correr não deve já ter percorrido alguma vez esta rua? 
Tudo o que pode suceder não deve ter sucedido, ocorrido, já alguma vez? 
E se tudo existiu já por aqui, que pensas tu, anão, deste instante? Esse pórtico não deve também… ter existido por aqui? 
E aquela aranha preguiçosa que se assusta à luz da lua, tanto atrai após si o seguinte? Por conseqüência… até a si mesmo? 
Porque tudo quanto é capaz de correr deve percorrer também mais uma vez esta larga rua que sobe! 
E aquela aranha preguiçosa que se assusta à luz da lua é a mesma luz da lua, e eu e tu, que nos encontramos agora aqui juntos no pórtico, segredando sobre coisas eternas, não devemos ter passado já por aqui, e tornar a correr pela outra rua que sobe? Não devemos tornar eternamente por essa larga e lúgubre rua? 
Assim falava eu, em voz cada vez mais baixa, porque me assustavam os meus próprios pensamentos e a sua oculta intenção, quando de súbito ouvi uivar um cão ali perto. Não ouvira, já uma vez, uivar assim um cão? E vi-o também, com o pêlo eriçado, a cabeça erguida, trêmulo no meio da noite silenciosa, quando até os cães acreditam em fantasmas. 
E tive pena dele. Acabava de aparecer silenciosamente a lua cheia por cima da casa: detivera-se com o disco incendiado, sobre a alta abóbada, como em propriedade alheia. 
Foi isso que despertou o cão. Que os cães acreditam em ladrões e fantasmas. 
E quando o tornei a ouvir uivar, tornei a sentir dó dele. Que fora feito, entretanto, do anão, do pórtico, da aranha e dos segredos? Teria sonhado? Teria acordado? 
Encontrei-me de repente entre agrestes brenhas, sozinho, abandonado à luz da solitária lua. 
Mas ali jazia um homem! E o cão, a saltar e a gemer, com o pêlo eriçado — via-me caminhar — começou a uivar outra vez, e pôs-se a gritar. Nunca ouvira um cão pedir socorro assim. 
Nunca vi nada semelhante ao que ali presenciei. Vi um moço pastor a contorcer-se anelante e convulso, com o semblante desfigurado, e uma forte serpente negra pendendo-lhe da boca. 
Quando vira eu tal repugnância e pálido terror num semblante? Adormecera, de certo, e a serpente introduziu-se-lhe na garganta, aferrando-se ali? 
A minha mão começou a tirar a serpente, a tirar… mas em vão! Não conseguia arrancá-la da garganta. Então saiu de mim um grito: “Morde! Morde! Arranca-lhe a cabeça! Morde!” Assim gritava qualquer coisa em mim; o meu espanto, o meu ódio, a minha repugnância, a minha compaixão, todo o meu bem e o meu mal se puseram a gritar em mim num só grito. 
Valentes que me rodeiais! Exploradores, aventureiros! Vós outros que apreciais os enigmas, adivinhais o enigma que eu vi então e explicai-me a visão do mais solitário. 
Que foi uma visão e uma previsão: que símbolo foi o que vi naquele momento? E quem é aquele que ainda deve chegar? 
Quem é o pastor em cuja garganta se introduziu a serpente? Quem é o homem em cuja garganta se atravessara assim o mais negro e mais pesado que existe? 
O pastor, porém, começou a morder como o meu grito lhe aconselhava: deu uma dentada firme! Cuspiu para longe de si a cabeça da serpente e saltou para o ar. 
Já não era homem nem pastor; estava transformado, radiante; ria! Nunca houve homem na terra que risse como ele! 
Ó! meus irmãos! Ouvi uma risada que não era risada de homem… e agora devora-me uma sede, uma ânsia que nunca se aplacará. 
Devora-me a ânsia daquele riso. Ó! Como pude eu viver ainda? E como poderia agora morrer?”

Assim falava Zaratustra.

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